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O NARRATÁRIO INTERPELADO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 86-89)

Antes de se apropriar da concepção de narratário interpelado de Vincent Jouve, é interessante refletir em torno da figura do leitor. No século XIX o texto literário no Brasil e no mundo considerou a relação entre a obra e o público, ainda num diálogo artificial. A teoria somente conseguiu refletir com intensidade esta comunicação a partir da estética da recepção, por meio das ideias estabelecidas por Jauss e Iser na Alemanha dos anos 1970. As simulações de diálogos com os leitores são levadas ao extremo pelos narradores machadianos nos textos aqui observados, com a função principal de intensificar a reflexão autoteórica. Ainda que artificializada, a relação entre texto e leitor defendida por Jauss e argumentada por Iser num outro viés, muitos anos

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

mais tarde, é representada nos romances de maneira peculiar e curiosa.

As razões desta distância entre a teoria e a abordagem machadiana podem ser diversas. No entanto, é necessário considerar que a representação dos leitores dos romances clássicos dialoga de alguma maneira com os estudos das teorias da leitura, contemporaneamente reconhecidos. Talvez porque estes narratários interpelados, ou “leitores ficcionais”, representem de alguma maneira os leitores empíricos, os quais se pretendia alcançar com os romances de Machado de Assis.

Ao considerar este diálogo entre a autoteorização encontrada nos romances machadianos e uma concepção específica de Vincent Jouve, apresentada em A leitura, pretende-se analisar algumas destas interpelações dos narradores de Dom casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. Para que se entenda o procedimento aqui discutido, é necessário expressar o conceito do teórico francês.

O segundo tipo é o ―narratário interpelado‖. Trata-se desse leitor anônimo, sem verdadeira identidade interpelado pelo narrador durante a narrativa. (...). Esse narratário interpelado não é uma personagem (não intervém como ator, na história). Diderot o utiliza com a intenção de parodiar, para evidenciar o caráter arbitrário das narrativas e tornar ridículas as expectativas codificadas do leitor. (JOUVE, 2002, p. 41)

Defende-se aqui que este “leitor ficcional” condiciona a reflexão autoteórica nos romances de Machado de Assis. Ele funciona, portanto, como uma ferramenta que estimula o texto a discorrer sobre literatura. Neste sentido, é interessante notar que estas diretas ao leitor contribuem consideravelmente à autorreflexão em Dom casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. O aceno constante do narrador a estes narratários interpelados funciona, em certa medida, como uma ruptura na narrativa para lembrar o leitor (empírico) que se trata de uma ficção.

Pode-se pensar que estas interpelações entre o narrador e o “leitor ficcional” são estruturadas para atingir os leitores empíricos dos romances, numa tentativa de intensificar a comunicação diferida3 entre o autor e o público. As interrupções funcionam como cortes no pacto ficcional4 das histórias contadas pelos narradores: os romances entre Bentinho e Capitu e Brás Cubas e Virgília. Ainda sobre este prisma, é necessário resgatar os pensamentos da Professora Karen Volobuef, para que se entenda a função do narratário interpelado, tendo em vista o caráter autorreflexivo na obra literária.

3 Segundo Jouve, a comunicação diferida é promovida pelo texto, tendo em vista a condição assimétrica entre o autor e o leitor.

4 Segundo Eco, pacto ficcional é um contrato que o leitor, no momento do ato da leitura, faz com a obra, sem duvidar de sua proposta ficcional, sem compará-la a todo instante com a realidade.

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A ironia romântica, conforme se vê nos exemplos citados, não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se destina a fomentar uma constante discussão e reflexão participa. Essa participação na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para como o texto foi construído. (VOLOBUEF, 1999, p. 99)

Apesar de utilizar nomenclaturas diferentes e se referir ao Romantismo Alemão, a estudiosa ratifica a ideia de autoteorização até aqui abordada, reconhecendo o papel do narratário interpelado para as discussões que se realizarão sobre literatura nessas obras. Vale salientar ainda, que Volobuef toca numa questão bastante importante para este estudo. Trata-se da atenção do leitor (empírico, possivelmente) para a construção artificial da obra. Este raciocínio ganha relevância neste estudo quando se argumenta que as obras machadianas foram construídas para que se negassem as fórmulas tradicionais do romance romântico.

Logo no primeiro capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas é apresentada ao leitor a fórmula do texto. A obra trata, assim, da dimensão do público do próprio romance, discorrendo sobre o tamanho do prólogo e a complexidade do mesmo.

Refletem-se, neste sentido, os possíveis anseios destes “leitores ficcionais”, teorizando a respeito da recepção, do estilo e da autoridade do narrador de maneira irônica, inovadora e autorreflexiva:

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo:

se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago- te com um piparote, e adeus. (ASSIS, 1960, p. 19)

É interessante notar que o narrador não procura ser simpático aos leitores ficcionais e, por consequência, aos leitores empíricos ali representados. Seu humor é irônico e instável, o narrador se coloca ao julgamento do leitor, mas deixa claro que esta sentença pouco importa. Ele assume uma condição humana, de um narrador parcial e afetado pela história, fator que será recorrente em todo o romance, revelando maior importância quando este elemento textual é colocado em oposição ao narrador

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onisciente, plano e imparcial.

Uma das primeiras vezes que o narrador se refere ao leitor em Dom casmurro, nota-se uma discussão autoteórica. O texto brinca com o conceito de verossimilhança e simultaneamente joga em relação ao tempo da narrativa. Trata-se de um momento importante do texto, no qual o protagonista reconhece os primeiros arroubos de seu sentimento por Capitu. É possível pensar neste destaque de interpelação, não somente sob a perspectiva de quebra do pacto ficcional, mas também como uma maneira de suspender a narrativa:

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. (ASSIS, 1971, p. 18)

Ao projetar um provável leitor empírico dos romances românticos, acostumados à progressão narrativa e a sucessão dos acontecimentos ficcionais, o narrador suspende o pacto, interrompendo a narrativa, no intuito de brincar com a ideia de suspensão e clímax. Anteriormente ao exposto acima, o narrador discursa sobre a comparação entre a vida e a ópera durante um capítulo todo: uma metáfora para se falar sobre a vida e a literatura. Ao terminar, ensaia o retorno ao caso de amor, adiando mais um instante a história entre ele e Capitu.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 86-89)