• Nenhum resultado encontrado

DE COMO DOIS ESTILOS E DUAS ÉPOCAS PODEM SE UNIR

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 119-125)

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

jeito, era muito sofrer, não estava para morrer de xodó, que é a morte pior de todas”

(AMADO, 1959, p. 35). Pode-se notar aqui uma concepção romântica da morte, já que, dentre todas as formas de morrer, a pior é quando se morre de amor. É dessa ideia que partimos para a segunda parte deste trabalho, a qual visa relacionar o conto de Jorge Amado em questão com a literatura de cordel, que tem, dentre suas características principais, a atmosfera romântica enaltecida.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

O cordel como crônica poética e história popular é a narração em versos do ―poeta do povo‖ no seu meio, ―o jornal do povo‖. Trata-se de crônica popular porque expressa a cosmovisão das massas de origem nordestina e as raízes do Nordeste na linguagem do povo. É história popular porque relata os eventos que fizeram a História a partir de uma perspectiva popular. Seus poetas são do povo e o representam nos seus versos. (CURRAN, 1998, p. 20)

Além da antecipação de fatos – a qual frequentemente ocorre por meio de uma figura desenvolvida em técnica de xilogravura (com escavações na madeira) ou pelo título da obra – também estão presentes no cordel outras características: exagero (hipérbole); presença de comentários pessoais do narrador; uso de linguagem popular e tom coloquial; paixão e heroísmo exaltados; heróis e heroínas perseguidos e glorificados, no final da história; e equilíbrio sempre atingido ao fim da narrativa.

O conto analisado neste artigo não é classificado como uma obra de cordel, nem muito menos Jorge Amado é um cordelista. O que há, sem dúvida, é a presença de certos traços particulares da literatura de cordel, aliadas ao estilo marcante do autor baiano. Além do título, que nos traz antecipação de um fato importante da história, há ilustrações em forma de xilogravura, que também se referem aos acontecimentos narrados:

Figura 1: Gringo (AMADO, 1959, p.10)

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

Figura 2: Maria do Véu (AMADO, 1959, p. 35)

A ocorrência da hipérbole nos relatos é constante durante o conto, assim como as opiniões do narrador, que participa da história: “(...) soube da boca de Tibéria, pessoa do maior respeito e a melhor dona de casa de rapariga que já teve na Bahia” (AMADO, 1959, p. 21); “Não é por ser ela minha comadre que louvo sua conduta, ela não precisa disso, quem não conhece Tibéria e não respeita seus predicados?” (p.

21). O uso de linguagem simples e popular, representando exatamente como o povo se comportava em sua rotina, surge por meio de um tom coloquial, de conversa de bar:

“Por isso eu gosto de caso narrado por ele: o mulato nem pra se beneficiar torce o acontecido. Bem podia dizer que tinha comido ela, e muitas vezes até” (p. 26). Destaca- se, acima de tudo, a paixão engrandecida pela perseguição e pelo sofrimento que heróis e heroínas enfrentam durante a trama e que os levam a ser glorificados e enaltecidos ao final, a exemplo do que acontece com Porciúncula e Maria do Véu, durante o conto em questão. Finalmente, não se pode esquecer que, mesmo sendo uma narrativa em prosa, há momentos de rima e poesia que só fazem aumentar o teor lírico da história: “Quem estava enrabichado era mesmo o mulato Porciúncula, não passava noite sem procurar Maria na beira do mar, espiando seu requebrar, nela querendo naufragar” (p. 32).

A publicação de Gabriela, cravo e canela, em 1958, representa o marco que dá início a uma nova fase na obra romanesca de Jorge Amado. Anteriormente a essa obra, o autor baiano imprimia um discurso político muito mais veemente, posicionando-se crítica e diretamente em relação a diversos fatores sociais negativos da sociedade brasileira, como o racismo, a desvalorização da mulher, a pobreza extrema, o latifúndio e a exploração da mão de obra cacaueira no nordeste, entre outros.

Já com Gabriela, cravo e canela, inicia em 1958 uma outra fase que se estende até os dias de hoje e na qual o engajamento ideologicamente monódico recua para os fundos de quadro, sob a forma de um populismo entre sentimental e folclórico, deixando o proscênio livre para a polifonia das vozes sociais enfim representadas no seu complexo dialogismo. (PAES, 1991, p. 9, ênfase no original)

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

Assim, as características da literatura de cordel destacadas e presentes no conto de 1959 nos dão a oportunidade de afirmar que Jorge Amado, a exemplo dos cordelistas dos séculos XVII a XIX, pode e deve ser considerado como um

“jornalista de seu povo”, pois não somente relata, mas também comove seu púbico, a partir de histórias de fundo verídico e carregadas de elementos da cultura brasileira. De acordo com Alexandre Lôbo:

Jorge Amado imprime em cada personagem de seus livros, e por consequência, em cada indivíduo com que eles se identificam nesta projeção, dentro e fora dos diversos grupos sociais, a marca significante da sociedade brasileira, que se molda com verdades construídas por um polo social de amores, crenças e poder. (LÔBO, 2009, p. 10)

Mesmo sem o aspecto físico e literal do cordel - ou seja, sem os folhetos, barbantes e a poesia marcada em estrofes de seis, oito ou dez versos – o conto De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto traz a união de outras características do cordelismo com as principais marcas estilísticas de Jorge Amado. O cordel, que tinha como objetivo narrar e divulgar mazelas populares, acontecimentos e notícias da rotina do povo, apresenta-se mais atualizado do que nunca, por meio de uma narrativa que, embora sentimental, não deixa de denunciar a prostituição, a discriminação e os maus tratos à mulher, o latifúndio e seus absurdos, entre outros problemas sociais brasileiros.

CONCLUSÃO

Representando e construindo uma identidade brasileira indubitavelmente popular e mestiça, Jorge Amado, desde o início de sua produção romanesca, vem denunciando abusos, criticando as condições de pobreza e exploração especialmente do povo nordestino, desafiando a administração política do país, por meio de seus textos.

Em outra época, mais precisamente entre os séculos XVII e XIX, houve um tipo de literatura muito popular no nordeste brasileiro – o cordel – que também visava à crítica, à denúncia, à informação e à conscientização do povo a respeito dos acontecimentos da sociedade. Além disso, o poeta nordestino foi incorporando à literatura de cordel fatos mais próximos do público, ocorridos em seu ambiente social:

façanhas de cangaceiros, acontecimentos políticos, catástrofes, milagres e até mesmo a propaganda, com fins religiosos e comerciais. As xilogravuras que ilustram as capas dos

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

folhetos são uma manifestação da criatividade do artista popular, com suas soluções plásticas sintéticas, em que se destaca o traço forte, de rude e bela expressividade.

Até hoje a literatura de cordel é valorizada como expressão poética de alta significação e continua a motivar estudos e pesquisas nas áreas de Antropologia, Folclore, Linguística, Literatura, História, entre outras. Mas seria possível um estilo literário do século XVII ser atualizado no século XX? Foi o que fez o autor baiano, ao escrever o conto De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto, em 1959.

Unindo suas estratégias autorais aos traços peculiares da literatura cordel, o escritor produz uma narrativa curta e simples, porém romântica e envolvente, que nos faz refletir a respeito da morte, da vida, do amor e das escolhas que fazemos durante nossa jornada. Sem esquecer a crítica social, Jorge Amado consegue nos transportar para um mundo místico, onde os heróis e o amor sempre vencem, assim como acontece também no cordel.

Por meio do conto De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto, foi possível analisar uma questão recorrente na obra de Jorge Amado como um todo: a morte. Para o ser humano, o ato de morrer, além de um acontecimento biológico natural, contém intrinsecamente uma dimensão simbólica, caracterizando-se como um fenômeno impregnado de valores e significados dependentes do contexto sociocultural e histórico em que se manifesta.

Apesar de a palavra “morte” remeter a algo relativamente finito, ao desfecho, ao desenlace, ou à partida, na verdade a ideia pode ainda representar algo muito variável, se compararmos as diferentes sociedades existentes atualmente. Para as comunidades ocidentais modernas, essencialmente individualistas - nas quais o desenvolvimento do capitalismo transformou o corpo humano em um instrumento de produção - adoecer significa deixar de produzir, o que traz a vergonha da inatividade, devendo ser ocultada do mundo social. Assim, a morte passou a ser sinônimo de fracasso, impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito não é atingido, ela é escondida e negada. Por outro lado, hoje, há também sociedades inseridas em contextos relacionais, que valorizam os cultos e rituais relacionados à morte, como uma maneira de manter o defunto sempre por perto, prolongando as relações entre quem já morreu e quem continua vivo. Pode-se dizer, por exemplo, que a sociedade brasileira encaixa-se nessa categoria, pois, em geral, dá grande importância aos ritos de passagem e às lembranças dos mortos.

Dessa forma, a morte teria então diferentes definições e formas de abordagem. No referido conto, observa-se exatamente essa diversidade, já que temos os estereótipos estrangeiro e brasileiro, demonstrando claramente as visões individualista e relacional, respectivamente: o personagem Gringo, estrangeiro, que claramente se recusa a falar dos acontecimentos de morte que lhe cercam; e o brasileiro Porciúncula, que narra todas as lembranças e histórias de sua amada e falecida Maria do Véu, numa tentativa de mantê-la presente em sua vida por mais tempo.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

REFERÊNCIAS

AMADO, J. De como o mulato Porciúncula descarregou seu defunto. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.

CURRAN, M. História do Brasil em cordel. São Paulo: EDUSP, 1998.

DAMATTA, R. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREYRE, G. Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1992.

LÔBO, A. O Brasil de Jorge Amado: Breve mirada sociológica. Rio de Janeiro: Quártica, 2009.

PAES, J. P. De “Cacau” a “Gabriela”: Um percurso pastoral. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991.

_____________________________________________________________________________________________________

Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 119-125)