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A MOCINHA, O HERÓI E O FINAL FELIZ

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 94-100)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

conceber e constituir a literatura.

Em Dom casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas constitui-se uma literatura não linear, ficcionalizada a partir de um labirinto temporal, com a ordem dos elementos narrativos às avessas, com narradores parciais e subjetivos, com personagens profundos e aparentemente independentes. Estas obras, já na estrutura do texto, explicitam a concepção de autorreflexividade: o potencial da obra literária em teorizar sobre a própria literatura.

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como é que foi ao teatro pela primeira vez, há dois meses? D. Glória não queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se? (ASSIS, 1971, p. 28)

Virgília, por sua vez, quando podia se casar e “ser feliz para sempre” na companhia de Brás Cubas, o equivalente ao herói romântico apresentado em Memórias póstumas, aborrece-se já no primeiro deslize do pretendente. Ela nota na sequência Lobo Neves, percebe vantagens numa comparação calculada a Brás Cubas, assumindo sua escolha pelo outro. Esta escolha de Virgília é muito significativa para a ideia de desconstrução do romance romântico, elaborada nas duas obras de maneira diferente. Não há o encantamento pelo herói, tampouco a dependência de que ele tenha alguma atitude. A escolha está tomada e Brás Cubas se lamenta por isso, não pelo desprezo da mulher amada, mas pelo ego de pavão, como ele mesmo descreve:

Virgília replicou:

— Promete que algum dia me fará baronesa?

— Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário. (ASSIS, 1960, p. 111)

Virgília se portará assim no decorrer de todo o romance. A mocinha prefere a segurança das relações sociais à exposição do “grande amor proibido”. Não há a possibilidade que o seu sentimento, posteriormente adúltero por Brás Cubas, venha a público. Virgília cede à pressão social que a condenaria sem piedade, neste aspecto é autônoma e independente como Capitu.

As heroínas dos romances não pensam simplesmente em agradar os heróis. Elas têm vontade própria, posicionamentos políticos próprios e saem da posição rasa de objeto de conquista, que sofreriam por não ficar com seus amados. A distância entre os amantes acontece nos dois romances, mas não se têm as lágrimas irremediáveis e infantilizadas das mocinhas presentes no romance tradicional. Virgília e Capitu deslumbram, mas também incomodam, causam despeito aos heróis que as amam. Este incômodo, de alguma maneira, expõe o conflito de gêneros presente nas obras aqui analisadas. Machado de Assis constrói um discurso machista dos narradores personagens, que encontram seu contraponto nas atitudes, na inércia, ou no não dito sobre a sofreguidão de Virgília e Capitu.

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O comportamento dos heróis nos romances também é bastante considerável, sobre o aspecto da negação romântica. Bentinho é um herói medroso, sem objetividade, imaginativo e oscilante. Ele não conduz as suas próprias ações, como senhor de si. Submisso, revela aos poucos a origem do mal que o atormentará mais tarde, na velhice solitária. Ele é influenciado por todos que o cercam, inclusive Capitu, objeto de seu desejo, de sua posse e, de sua obsessão, de acordo com o momento da narrativa. É um herói que considera sim sua donzela, mas não tem forças de evitar o distanciamento de sua amada. Cede aos obstáculos apresentados ao casal e cria o maior obstáculo entre ele e Capitu: o ciúme, evitando assim, a felicidade idealizada dos romances românticos:

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê. (ASSIS, 1971, p. 139)

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, além do despeito, não se percebe nada em relação à primeira perda de Virgília. Uma história de desencontros, traição e melancolia. Brás Cubas se sente atraído por Eugênia e por Marcela, antes mesmo de se apaixonar por Virgília. Mais tarde, torna-se amante da última, estabelecendo um relacionamento adúltero entre os “heróis românticos” da trama. Trata- se, portanto, de um encontro amoroso que acontece a partir da traição, a partir da ideia de rompimento com o amor romântico, perfeito e eterno. Virgília e Brás Cubas se escondem numa casinha e vivem o amor proibido, impossível nos romances tradicionais.

Este amor ideal é então escondido, vergonhoso e negado no romance machadiano:

Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta;

— dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior,

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excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, — um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, — a unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias. (ASSIS, 1960, p. 152)

A ideia de final feliz é completamente desconstruída nas duas histórias. Depois da candidatura de Lobo Neves, Virgília e Brás Cubas estiveram em contato, mas o texto nega novamente, neste aspecto, a ideia de romance romântico:

herói e mocinha não mais se encontram amorosamente. O leitor fica com as impressões de uma vida repleta de reminiscências do defunto autor: sua carreira política, seu emplasto, Quincas Borba, Marcela etc. Virgília vai aos poucos se tornando coadjuvante num romance individualista sobre Brás Cubas, que por sua vez, não possui grandes conquistas, como mostrado pelo narrador no último capítulo do livro, rompendo categoricamente, com o ideário romântico de final feliz:

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.

Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (ASSIS, 1960, p. 291)

Em Dom casmurro acontece a aproximação de Bentinho e Sancha, e de Capitu e Escobar, conforme as impressões narradas pelo velho solitário. Nasce o filho tão desejável. De sonho, Ezequiel torna-se pesadelo, pois os cacoetes do menino lembram Escobar. Rompe-se o casamento e conclui-se a traição, esta hipótese isola Bento Santiago do mundo que o rodeia. O narrador novamente justifica sua solidão, por meio das aproximações não frutíferas ao passado, e o jovem Bentinho se torna o recluso e verborrágico Dom casmurro, num fim melancólico, que nada se relaciona com os finais triunfais do ideal romântico:

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é

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êste propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios. (ASSIS, 1971 p. 170-171)

CONCLUSÃO

É possível considerar a partir das reflexões até aqui constituídas, que Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom casmurro não são romances que podemos tratar simplesmente como realistas. É claro que muitos estudiosos, pela necessidade de classificá-los, reduzem as obras a estes termos. Contudo, é necessário entender o que estes textos propõem de fato, no momento em que são publicados: uma nova concepção de romance. A proposta de Machado de Assis nega absolutamente o caráter romântico adotado até então no Brasil, propondo, por conseguinte, uma nova concepção de literatura, que bebeu na fonte de Sterne, de Garret, de Xavier de Maistre, de Diderrot, os quais o autor homenageou quando oportuno.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, esta negação é mais declarada, as reflexões autoteóricas são mais evidentes. Alguns capítulos, como O velho diálogo de Adão e Eva, Epitáfio, ou ainda os inúmeros capítulos, suposta ou realmente suprimidos, levam as proposições autorreflexivas ao extremo, afetando inclusive a forma do romance. Deixa-se claro, assim, o objetivo de desconstrução do romance romântico, por meio de uma linguagem irônica e melancólica, machadiana e autoteórica por excelência.

Diante desta abundância autorreflexiva, Dom casmurro, talvez menos radical em ua proposta formal - igualmente autoteórico, constitui a premissa de um amor romântico. O romance se dá diante do amadurecimento entre os dois jovens apaixonados frente à mediocridade da vida adulta, com obrigações e monotonia, temperado pelas cismas do narrador. A história perde o brilho romântico e ganha o tom acinzentado de uma vida moderna, sem momentos triunfantes. Capitu neste labirinto

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impressionista do narrador ganha nuanças de dissimulações e mistério numa névoa ciumenta. A partir das complicações entre Bentinho e Capitu, esta obra utiliza a linguagem como o principal artifício para que se reflita a complexidade da literatura.

REFERÊNCIAS

ASSIS, J. M. M. de. Dom casmurro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1971.

_____. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Sedegra, 1960.

_____. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ciranda Cultural, 2007.

CULLER, J. O que é literatura e tem ela importância. In:_____. Teoria literária: Uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999, p. 26-47.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ISER, W. O ato da leitura: Uma teoria do efeito estético, v. 1. São Paulo: 34, 1996.

_____. O ato da leitura: Uma teoria do efeito estético, v. 2. São Paulo: 34, 1996.

JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

JOUVE, V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.

VOLOBUEF, K. A prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. In: _____.

Ironia romântica. São Paulo: UNESP, 1999, p. 90-99.

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O EFEITO ESTÉTICO EM O IMORTAL, DE MACHADO DE

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