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DESAFIO DA MODERNIDADE AO REALISMO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 153-159)

O modernismo apresenta o homem como um ser isolado e solitário, incapaz de dar um sentido a totalidade da vida. É justamente essa fuga para a esfera da subjetividade que apaga a diferença entre possibilidade concreta e a possibilidade abstrata. Se o mundo objetivo é apagado, nunca será possível identificar a forças materiais que determinam o papel social que o homem representa, nisto consiste

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exatamente a alienação. Negar a realidade da opressão é a consequência lógica de uma filosofia que sustenta que o mundo real é inexplicável. Essa filosofia é produto da ideologia burguesa que impede a compreensão dos processos ordenadores do mundo capitalista.

Corolário da modernidade, a perspectiva de negação da possibilidade de um conhecimento verdadeiro sobre o real é um dos subprodutos mais duradouros de seu zeitgeist. A pós-modernidade herda esse relativismo epistemológico e faz dele seu mais distintivo traço, a ponto da palavra “verdade” ser utilizada apenas com grandes introduções e ressalvas. A pós-modernidade é o tempo da impossibilidade da verdade, e não por acaso, diria Lukács.

Vivemos o triunfo da ideologia burguesa, que derrotou no século XX seus dois desafiadores, o mundo do fascismo e o socialismo real, logo, o ponto de vista dominante é o de que o real é incognoscível. Resta lamentar o sem sentido da vida humana e se consolar fazendo algumas compras. Ou tratar a melancolia como uma doença da alma, com algumas sessões de análise, não como um possível reflexo de um mundo injusto.

Em um mundo, onde a verdade é impossível, a própria religião, elemento fundador da experiência do real durante maior parte da história humana é relegada a condição de “escolha pessoal”, portando de natureza puramente subjetiva, e afirmar uma verdade revelada é considerada uma manifestação de intolerância e falta de educação. Neste cenário, que sentido pode fazer a defesa empreendida por Lukács de uma literatura realista? Salvo no ambiente acadêmico de inspiração marxista, essa defesa do realismo soa bastante anacrônica. Muito mais pertinente ao espírito pós- moderno é a desconstrução derridadiana de toda verdade que a busca por um espelho da verdade, e a busca por um espelho da verdade justamente no mundo da ficção.

Entretanto, se nos guiarmos pelo modelo teórico de Lukács, podemos defender, com alguma razão, uma posição contrária a sustentada por ele com relação ao estatuto realista da obra de Brecht, particularmente no texto de Um homem é um homem. Acreditamos que é pertinente (dado o marco teórico esboçado) considerar que Brecht leva a cabo uma representação realista da situação social do período entre guerras na medida em que descreve a subjetividade típica desse período histórico.

Se um homem pode ser trocado por outro, ou equivale a outro (na tradução inglesa: Man Equals Man) a particularidade irredutível de uma personalidade é negada. Um homem se torna apenas um exemplar de um gênero que pode ser modelado, trocado por outro, ou descartado. Ao demonstrar esse estado de coisas, Brecht figura a relação dialética entre a subjetividade esvaziada do homem moderno e as forças objetivas que o determinam. Galy Gay seria, portanto, um personagem típico e realista no exato sentido em que Lukács emprega os termos.

Vale lembrar, finalmente, o conceito brechtiano de realismo, que significa: “(...) destacar a rede causal da sociedade, mostrando o ponto de vista

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dominante como o ponto de vista dos dominadores, escrevendo do ponto de vista da classe mais preparada para dar solução aos problemas que afligem a sociedade e enfatizando a lógica de seu desenvolvimento” (CLARKE, 1970, p. 95), uma concepção que, em linhas gerais, está plenamente de acordo com a de Lukács.

A tipicidade de Galy Gay está em seu caráter desmontável. A peça demonstra exemplarmente como o núcleo da personalidade do sujeito moderno não resiste à investida das violentas forças modeladoras do capitalismo, da técnica, da ordem burocrática. Brecht escolhe um corpo do exército britânico na Índia para figurar esse fenômeno, mas o cenário poderia ser uma fábrica ou uma grande corporação financeira, lugares onde os traços marcantes da subjetividade moldada do período ficam evidentes.

A dominação burocrática, no sentido com que Weber emprega este conceito, significa que o papel do homem é determinado por sua função dentro de uma estrutura social organizada racionalmente. Um homem vale pelo desempenho correto da sua função na estrutura social, que visa sempre um fim objetivo e verificável, como a produção industrial, ou o sucesso na batalha em um corpo militar. Portanto, não é mais o sangue ou a origem que determinam quem um homem deve ser, é o triunfo da Society sobre o Volk como diz Heidegger, mas seu fazer, sua produção, definem seu ser. A sociedade racional, que tem como valores organização e eficiência, organiza-se em um quadro de funções ou papéis que podem ser ocupados por diferentes atores, uma vez que o que vale de fato é o resultado, isto é, a produção. Na linha de montagem clássica, criada por Ford, os operários se posicionam lado a lado para a repetição mecânica de uma função, cada operário é perfeitamente cambiável por outro, e o resultado dessa impessoalidade na organização do trabalho, em que cada operário equivale a outro da mesma qualificação técnica, é a produção em larga escala. As linhas de produção fordistas operavam a pleno vapor quando Brecht escrevia Um homem é um homem, nos anos 1920 (BRECHT, 1991).

A linha de montagem é um exemplo radical do que Weber denomina dominação racional, é uma lógica que organiza a produção capitalista e se espalha por todos os campos do agir humano, notadamente também no campo militar, em que, mais radicalmente que em uma fábrica, um homem equivale a outro, um soldado que tomba é logo substituído por um companheiro que tombará em seguida: “(...) um é nenhum”

(BRECHT, 1991, p. 157).

“Um é nenhum” (BRECHT, 1991, p. 157) como diz Uria à viúva Begbick, porque um homem, por si, nada vale, mas apenas enquanto um soldado do exercito britânico ou operário da Ford Motors. E o que garante o reconhecimento da subjetividade, do papel de um homem no mundo, não é a autoconsciência, mas a formalidade da ordem burocrática. Cumprindo-se a forma, o conteúdo é indiferente: por isso um passaporte é tudo o que é preciso para que Galy Gay seja reconhecido como Jip,

“um passaporte é o que basta para fabricar um novo Jip” (p. 162), diz Uria.

A personalidade moderna é a de um homem sem conteúdo (ou sem qualidades, como escreveu Musil) e que talvez por isso não saiba dizer não. Vale indicar

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que os soldados escolhem Galy para assumir o papel de Jip exatamente porque ele é esse “homem que não sabe dizer não” (BRECHT, 1991, p. 163), como o próprio Galy diz de si mesmo em outras passagens. Não saber dizer não significa não poder ser opor, ou não ter o que opor, às forças de organização do mundo moderno (a política de colonização imperial no caso da Índia) que deslocam o homem de seu ambiente e modo de vida original.

CONCLUSÃO

Parece bastante plausível considerar que Brecht escreveu um texto realista no exato sentido que Lukács dá ao termo: figura a tipicidade da época e essa figuração pode ter um sentido de esclarecimento para o leitor. Essa finalidade é inclusive, no desenrolar da peça, deixada clara pelo autor quando a viúva Begbick se dirige ao público em nome de Brecht:

(...) que qualquer um pode fazer com um homem o que desejar, está noite, aqui, um homem será desmontado como se fosse um automóvel e depois, sem que dele nada se perca será remontado. (...). E sem dureza mas com energia, a ele pediremos que saiba às leis do mundo se conformar e que deixe seu peixe tranqüilo nadar, não importa no que venha a ser transformado, para sua nova função estará plenamente adaptado, mas se não o vigiarmos ele poderá se transformar da noite para o dia em assassino vulgar. O senhor Brecht espera que observem o solo em que pisam como neve se derreter sob os pés. E que vendo Galy Gay, finalmente compreendam como é perigoso viver nesse mundo. (BRECHT, 1991, p.152)

Neste trecho encontramos um eco da famosa frase de Marx, tomada de empréstimo da peça A tempestade de Shakespeare, referindo-se à modernidade como um tempo em que tudo o que é sólido desmancha no ar, como neve sob os pés. Fica claro que o perigo de viver nesse mundo não se deve ao exército britânico e seus soldados, apesar de que “são o pior tipo de gente que existe” (BRECHT, 1991, p. 157), mas é a um outro perigo que alude o autor. O perigo de não saber mais quem se é. Se um homem não sabe quem é, ou em outras palavras, se séculos de cultura humanística europeia são deixados de lado, cresce o perigo de ele ceder ao apelo da vulgaridade e da violência. Cresce a possibilidade inclusive de que se torne um assassino, como Galy Gay se torna de fato. O estivador que saiu de casa para comprar peixe, logo depois atira,

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matando, e com grande gosto pela coisa: “(...) já sinto em mim o desejo de enfiar meus dentes na garganta do inimigo” (p. 159).

Encontrou-se nessa passagem, como em muitos autores do período entre as guerras, a forte premonição do que viria: a transformação, pela militarização forçada, de pessoas comuns em assassinos. Está nas origens do fascismo a concepção de que o homem individualmente é fraco, mas em grupo, no feixe, que é o sentido da palavra facio, como um feixe de gravetos, é forte. Daí o ideal fascista de perda da identidade individual em favor de uniformização e dissolução do particular no grupo, no corpo da nação.

O fascismo não é um acidente histórico, segundo a interpretação marxista, mas um fenômeno explicado pelo esvaziamento que o domínio técnico racional do capitalismo impõe à subjetividade do homem na medida em que lhe priva das raízes seculares no campo e nos ofícios urbanos para então engajá-lo em um sistema de produção e organização social impessoal, levando às últimas consequências a alienação do trabalhador face ao objeto do seu trabalho, que Marx havia apontado como característica marcante do modo de produção capitalista. Tanto o fascismo como a sociedade de consumo das democracias ocidentais, que acabaram vencendo o confronto, são desenvolvimentos particulares do capitalismo que produzem um mesmo sujeito alienado do seu fazer. A vitória dos aliados nos salvou, portanto, do culto do estado, mas ofereceu em troca o culto do consumo.

A peça trata, portanto, de “um acontecimento histórico” (BRECHT, 1991, p. 162), como diz Jesse à viúva Begbick. Ilustra o surgimento de uma forma de subjetividade em que os discursos tradicionais, a religião, por exemplo, que davam sustentação e significado a vida do homem são atropelados pelas conquistas da ciência e da técnica e perdem o seu poder fundador. Jesse diz:

(...) o que é que afirma Copérnico? O que é que gira? É a terra! A terra, e portanto o homem. Ou seja, o homem não está no centro. É histórico, o homem não é nada! a ciência moderna demonstrou que tudo é relativo. A mesa, o banco, a água, a calçadeira, tudo relativo. A senhora, viúva Begbick, eu... relativo. O homem está no centro, mas só relativamente. (BRECHT, 1991, p. 167)

O homem moderno é um estranho no mundo, é indeterminado e sem referenciais, por isso pode ser cooptado pelos movimentos de massa, seja o fascismo ou a sociedade de consumo.

A tipicidade do zeitgeist da época é bem reconhecível em uma carta de Rilke a um amigo, de logo antes da guerra, o poeta lamenta as “coisas sem vida” que chegam da América, e que em nada se comparam com as coisas tal como eram conhecidas pela geração anterior “quase cada coisa um vaso onde encontravam o

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humano e ainda acumulavam mais do humano” (RILKE, citado em AGAMBEM, 2012, p.

73) da América chegam “coisas sem vida, simulacros de vida, coisas vazias e indiferentes” (p. 74). Essas coisas são mercadorias, um bem imaterial e abstrato, “cujo gozo apenas é possível através da troca” (p. 74), como diz Giorgio Agambem.

O gozo da coisa é vivido no momento em que é trocada por outra, e a outra atrai pelo simples fato de ser outra, uma novidade que logo envelhece e é trocada novamente. A mercadoria não pode “acumular o humano”, como uma antiga casa carrega, além das lembranças, as marcas materiais dos que a habitaram, a mercadoria é desumanizante. O homem que habita o mundo da mercadoria é um homem sem pátria, como diz Heidegger, já é impossível entender o que significa ter uma terra natal.

O “acontecimento histórico” do surgimento da subjetividade moderna não pode ser indicado com precisão de data e local, mas suas características gerais são perceptíveis na literatura realista, e alguns elementos essenciais como os que brevemente apontamos são nítidos neste texto de Brecht: a equivalência rasa entre os homens, a impossibilidade de se opor às forças racionalizantes, e à tentação da violência.

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, G. Estâncias. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

_____. The man without content. Los Angeles: Stanford University Press, 1999.

BRECHT, B. Um homem é um homem. Tradução de Fernando Peixoto. In: _____. Teatro completo, v. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 145-232.

CLARKE, R. Georg Lukacs, art and objective truth. London: Merlin, 1970.

COUTINHO, C. N. Lukács, Proust e Kafka. São Paulo: Civilização Brasileira, 2005.

EAGLETON, T. Marxismo e crítica literária. São Paulo: EDUSP, 1976.

KIRALYFALVI, B. The aesthetic effect: A search for common grounds between Brecht and Lukacs. Journal of dramatic theory and criticism, v. 6, Kansas, mar. 1990, p. 19-30.

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A ANCESTRALIDADE FAMILIAR COMO MICROCOSMO DA

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