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ISILDA E SUA VIVÊNCIA DAS GUERRAS

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 174-178)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as casas do passado. No oposto da casa natal trabalha a imagem da casa sonhada” (BACHELARD, 1993, p. 74).

A mudança da casa senhorial, na baixa do Cassanje, para a casa de Alvalade, em Luanda, e depois para o apartamento, na Casa de Ajuda, em Portugal, mostra o processo de afrouxamento dos laços familiares, favorecendo o afastamento dos avós, pais, irmãos e criados (escravos). Não ocorrem o amadurecimento e a união entre os irmãos, quando se afastam dos outros membros da família ou quando aprendem a viver por si. Ao contrário, isso apenas aumenta o sentimento do exílio, que é trabalhado de forma particular por cada um.

O desejo de celebrar o Natal, data em que a narrativa se inicia, tem um caráter dúbio e transgressor. Símbolo de união familiar em torno do nascimento de Jesus, ele, na verdade, apresenta-se pelas memórias, como o começo e o fim da ancestralidade.

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Essa atitude de Isilda, de coragem em busca da preservação da propriedade rural, bem como a sua condição de administradora da fazenda, devido a não ter irmãos, o que decreta a “desintegração do sistema patriarcal” (FREIRE, 1998, p. 56), e o fato de seu marido Amadeu ser alcoólatra, o que foge da condição social de homem protetor e provedor, dão a ela uma personalidade masculina. A personagem só volta a sua condição feminina, quando ela se vê subjugada pelo comandante da polícia.

Lasch tem a “percepção da vida como um conflito” (LASCH, 1999, p.

52) com relação ao antagonismo entre os sexos, o qual, segundo ele, é uma característica universal desde os primórdios da humanidade. Contudo, não é somente entre os sexos que ocorre o conflito entre os opostos. Bakhtin fala sobre a “dualidade do mundo” (BAKHTIN, 1993, p. 5-6), tendo como exemplos as compreensões antagônicas e conflituosas a respeito do mundo, observadas na Idade Média. Assim, Isilda personifica a autoridade policial e, com isso, a própria nação portuguesa, ao defender a terra (pátria), a família (povo português) e a riqueza da pátria (produção de algodão). Todavia, ao ser explorada pelo comandante da polícia, ela retorna à condição social feminina, o que reforça e legitima as diferenças e desigualdades entre classes e principalmente entre o povo colonizador e o colonizado. Essa metáfora mostra a sua passagem de povo colonizador a colonizado, estigma que os portugueses degredados, ou “angolano- portugueses”, irão carregar por toda sua vida, não sendo considerados cidadãos portugueses de maior valia pelos portugueses nascidos no Império.

A personalidade ambígua de Isilda, entre masculino e feminino, colonizador e colonizado, é construída desde a sua infância, quando, influenciada pela mãe, preocupava-se com vestes, chapéus e a sedução, e, quando influenciada pelo pai e pelo padrinho, seu interesse volta-se para as longas caçadas pela selva africana.

Ela é consciente dessa duplicidade e do papel social que deve exercer, tanto que, quando relata suas memórias e reflexões a respeito da guerra, assume naturalmente a posição aristocrática do colonizador.

Um fato que justifica esse posicionamento é o momento em que Isilda teve de ceder sua própria cama e “o resto da casa para a tropa fandanga do Governo ou de que os africanos adoram chamar Governo para pensar que o têm na ilusão de não obedecerem aos russos e aos cubanos” (ANTUNES, 1999, p. 247).

Quando Isilda é obrigada a fugir em direção à cidade de Marimba, ela vivência o seu exílio interior. Nele, em consciência, ela entrega tudo o que considera seu aos guerrilheiros, ou melhor, aos partidários dos movimentos de libertação:

(…) oferecendo-se numa inocência trêmula aos crocodilos do rio como a minha família e os restantes fazendeiros do Cassanje se ofereciam, sem um queixume aos angolanos, tome, matem-nos se lhe apetecer, tomem, o meu girassol, o meu algodão, o meu milho, a minha casa, o meu trabalho, o trabalho dos meus pais, o trabalho dos

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pais dos meus pais antes dos meus pais, o lugar dos meus defuntos, tomem, os que mandam em Lisboa decidiram que a minha vida e, mais que a minha vida, a razão dela vos pertencem porque os americanos e os russos dizem que vos pertencem e eles obedecem como vocês nos obedeciam a nós com idêntica passividade e idêntica submissão portanto tomem o que me custou os olhos da cara e os olhos da cara da minha família, o meu gado, o meu café, o meu tabaco, as minhas máquinas, o meu dinheiro no banco, tomem, degolem-nos um a um ou enxotem-nos para os barcos de Lisboa, roubem-nos o que não temos no caís (...). (ANTUNES, 1999, p. 276)

No trecho acima, Isilda fala com a voz do colonizador, e por isso utiliza muito o pronome possessivo “meu”, mesmo sabendo que toda a sua riqueza é fruto da exploração de Angola. Ela reconhece a ancestralidade e a história da família e, com isso, reconhece também a própria história da colonização portuguesa, que agora passa pela perspectiva de “independência” da colônia, a qual passará a servir aos interesses estrangeiros, como antes servia a Portugal.

As tribos ancestrais angolanas (Cipaios, Mussequeiros, Bailundos, entre outras), verdadeiras herdeiras de Angola, assim como Isilda, também se sentem exiladas em seu próprio território. Todas perderem sua identidade, em meio à manipulação exercida pela colonização portuguesa, algo que será contumaz, quando essa passar a ser desempenhada pelos americanos, russos, franceses e ingleses, que incentivaram a independência em nome de um novo modelo de exploração da mão-de- obra e dos recursos naturais, dentre os quais se destacam os minérios e o petróleo.

CONCLUSÃO

Escrito por António Lobo Antunes, O esplendor de Portugal apresenta três gerações de uma família que vive em Angola, país colônia de Portugal. Cada época é vivenciada pelo leitor a partir das memórias das personagens, as quais se desenvolvem entre o Natal de 1995 e a década de 1970, relatando dramas pessoais, que se tornam universais, quando se pensa na divisão entre culturas e classes.

A ancestralidade dessa família é um espelho que reflete a própria história de Portugal, ao mostrar o contexto histórico e social em que viveram tanto os portugueses “de fato” como os portugueses nascidos em Angola. Nesse microcosmo vive uma família marcada pela culpa histórica e relacionada aos ancestrais, portugueses condenados ao degredo, devido a uma transgressão social.

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A transgressão social acompanha as sucessivas gerações da família, por meio de relacionamentos extraconjugais, que também rompem com a divisão social entre classes, do alcoolismo e do aborto. Tudo isso suplanta a visão romântica da família como base social para a felicidade e coloca as personagens numa situação de exílio pessoal, pois a sensação de pertença e conforto, sustentada pela figura da família, é substituída pela destruição dos laços familiares, promovida pelas atitudes transgressoras.

Com isso, o foco da ancestralidade aponta para a desterritorialização sofrida por Portugal, nas guerras civis que culminaram com a independência de Angola. O rompimento dos laços da colônia com o seu país colonizador fez com que o império português tivesse que se adaptar à nova realidade econômica, agora sem as divisas trazidas pela exploração das riquezas coloniais, bem como à realidade social, que empurrou os descendentes dos antigos portugueses degredados de volta a Portugal.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, A. L. O esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo:

HUCITEC/UNESP, 1990.

_____. A cultura popular na idade média e no renascimento: O contexto de François Rabelais. 3. ed. São Paulo: HUCITEC, 1993.

FREIRE, G. Sobrados e mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LASCH, C. A mulher e a vida cotidiana: Amor, casamento e feminismo. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1999.

LISPECTOR, C. Água viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.

SIMMEL, G. Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.

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PARA ALÉM DO SADISMO: RETOMADA DA POTÊNCIA EM

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