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DUAS MARGENS – DOIS RIOS

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 127-133)

A literatura toma novos rumos com as mudanças nas cidades, pois ao mudar esteticamente, há também a mudança de seus cidadãos, desenvolvida entre a estética e a falência dos valores.

Esse é o caso do conto História porto-alegrense, do escritor gaúcho Moacyr Scliar. O texto apresenta a realidade da cidade de Porto Alegre inserida na ficção e nos faz repensar a condição do ser humano no processo de desenvolvimento das cidades, no qual o indivíduo não encontra lugar para crescimento pessoal. No entanto, como afirma Antonio Candido, as sugestões e influências sociais tornam-se, ao adentrarem a literatura, elementos ficcionais:

A ligação entre literatura e sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos descobrir como as sugestões e influências do meio que se incorporam à estrutura da obra de modo tão visual que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato criador. (CANDIDO, 1989, p. 163-164)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 12, 2014.

Enquanto a personagem-protagonista, mulher anônima, descreve a cidade, vai, a partir da memória, descrevendo etapas de sua vida. É através da narrativa desses elementos que ela encontra uma possível voz, ineficaz, no entanto, pela impossibilidade de alcançar o receptor, ou seja, o protagonista masculino do conto.

As modificações visuais que ocorrem na cidade formam a narrativa, ao apontar acontecimentos sequenciais na vida da personagem. É como se essas modificações fossem também um roteiro a ser seguido, lugar em que o leitor, ao organizar as imagens de acordo com suas referências pessoais, organiza também o sentido do texto. Conforme Adriana Antunes Almeida, devemos ficar atentos à descrição desses espaços:

E preciso não ceder, porém a tentação de ver o espaço apenas como um conjunto de histórias e lugares facilmente acessíveis por meio de uma aproximação empírica, ou mesmo supor que a cidade possa ser um texto estático que já está escrito nas suas ruas; o que há não é uma simples reprodução da cidade na obra de Scliar, mas sim uma deformação. (ALMEIDA, 2012, s/p)

Dessa forma, o autor, ao recriar o espaço da cidade, também cria o espaço da ficção. Ao apresentar sua personagem, relembrado sua história nas ruas e bairros de Porto Alegre, Scliar nos mostra que seu texto procura se integrar aos lugares apontados. A transformação da cidade, por sua vez, leva-nos à reflexão de temas da modernidade na literatura. Voltando a Baudelaire, em Quadros parisienses (o cisne), vemos essa mesma exaltação da cidade:

Andrômaca, em vós penso! Esse rio de água turva Desse simples espelho onde já resplendeu A imensa majestade da dor de viúva,

O Simeonte mendaz que dos prantos se encheu (...). (BAUDELAIRE, 2011, p. 107)

Assim como Baudelaire, em seu poema, coloca Paris no centro da modernidade, Scliar também o faz ao traçar o mapa urbano da cidade, com suas peculiaridades, seus personagens e seus vícios, desconstruindo, dessa forma, o passado:

(...) Petrópolis nem existia, Três Figueiras era mato. Os bondes eram poucos... – Te lembras dos bondes? Bem. Eu era a modesta caixeirinha de um armarinho da Cidade Baixa. Tu, o garboso estudante que varava as madrugadas no Café Central ou no Alto da

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Bronze, declamando em voz alta os teus poemas. (SCLIAR, 2000, p.

115)

Scliar, ao dar voz a sua personagem, o faz para que, ao falar de si, ela também fale do outro, como se ela própria não fizesse parte da história, mas fosse apenas a sombra da existência do outro. Mas, será que esse outro, cuja focalização é feita pela narradora, também não é mais um elemento colocado à terceira margem, essa margem de pessoas que não encontram o seu destino em tantas e sucessivas mudanças de suas vidas?

Em Guimarães Rosa, escritor mineiro, a narrativa do personagem caracteriza a construção com o caos que se instala ao seu redor. A força das palavras busca o sentido para definir os fatos passados e do tempo presente, para, só assim, se estender até o futuro. Essa inquietude percorre toda a narrativa, demonstrando que o narrador procura alguma palavra para definir seus sentimentos. O que notamos é a desconstrução da linguagem, através da construção inovadora das palavras e com isso a ampliação da descoberta de novos significados. Dessa forma, nós leitores somos levados a penetrar no emaranhado linguístico do narrador para obtermos nossos próprios significados. Qual será essa palavra que o narrador procura?

É com essas indagações que percorremos a narrativa, pois o caminho apontado pelo narrador permite transpassar os limites na organização do texto. Dessa forma a tensão se dá na construção dedicada da palavra para em seguida desconstruí-la:

“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?” (ROSA, 2005, p. 81).

Nas duas narrativas o personagem narrador está em primeira pessoa, portanto os personagens a norteiam de acordo com suas impressões, sem neutralidade.

Os dois narradores, vão dando sua voz a outros personagens, quer seja na observação da vida e transformações da cidade, como em Scliar, ou na tensão da vida dos personagens, na busca de Rosa. É por meio da linguagem que o narrador de Rosa recompõe para si e para o leitor o tempo decorrido na narrativa ao questionar sobre o seu futuro: “Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento?” (ROSA, 2005, p. 82).

A narrativa de Guimarães Rosa possui duas vertentes: o antes e o depois. É o momento de confluência entre o vivido e o que se vive. É construída com verbos no passado e só nos dois últimos parágrafos encontramos verbos no presente, sugerindo assim essa descontinuidade entre a razão e a realidade, da qual iremos abordar mais adiante.

A personagem de Scliar, sutil, usa de ironia em sua narrativa: “Teu pai pagava tudo. Teu pai, o rico fazendeiro, achava que o filho tinha direitos de macho, não importava o que dissessem. Ou o que custasse. Pagava tudo” (SCLIAR, 2000, p.

116). A personagem parece estar de acordo com tudo que vai sucedendo a sua volta.

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Entretanto, a solidão e a angústia que sente são evidentes na frase: “Mas eu gostava de ti”, frase esta que permeia toda a narrativa e encontra um desabafo no grito de liberdade que a fecha: “Lembro-me que gritei, não! Não vou abandonar a minha cidade!” (p. 118).

O personagem de Rosa mostra a espera e a paciência: o filho que passa a vida a contemplar o pai. De forma semelhante ao personagem de Scliar, no final da narrativa de Rosa, há o grito de perdão na fuga do filho ao ver seu pai se aproximar da margem, essa margem que representa para o filho a própria vida. “Porquanto que ele me pareceu vir:

da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão” (ROSA, 2005, p. 82).

Em Scliar o narrador sente prazer em observar as pessoas, examinando-as de acordo a sua classe social, enquanto descreve as transformações e o desenvolvimento ocorridos. A narrativa está repleta de referências e detalhes e vai nomeando ruas, praças, e o rio Guaíba de Porto Alegre. Há uma apresentação da cidade, do seu desenvolvimento e dos problemas que o crescimento acarreta para a personagem, num sucessivo desenrolar de ganhos e perdas: “Um paraíso que durou pouco... Decidiste que eu deveria me mudar. Gostavas da casa, e a querias para ti, de modo que tive de sair” (SCLIAR, 2000, p. 116). Ao ser “empurrada” para a periferia, a narradora-protagonista não só caracteriza o crescimento da cidade, como também reflete sobre os conflitos de sua existência. O narrador de Rosa, também observa as pessoas a sua volta e ao usar, desde a primeira frase, o possessivo “nosso” e “nossa”, para se referir ao pai, à mãe e à casa, parece levar o leitor para junto de si, de sua contemplação sobre a vida e sua finitude.

A narrativa de Rosa não nomeia locais. Portanto, não sabemos o lugar em que ela se passa a não ser que se situa às margens de um rio, o qual também não possui nome: “Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua (...)” (ROSA, 2005, p. 77). Os demais personagens das duas narrativas não têm nome, podendo representar qualquer morador daqueles locais. Em Scliar, apenas a prima é nomeada e dessa forma ela passa a ter destaque na narrativa, passa a ser o elemento que afasta gradativamente o personagem masculino da protagonista:

Casaste com a tua prima Rosa Maria e assumiste um cargo na direção da firma do pai dela. E ai começaste a aparecer cada vez menos; a vida de um homem de negócios é muito atarefada, dizias.

Eu concordava, me lembrando da loja de armarinhos. (SCLIAR, 2000, p. 116-117)

Ao ler esse trecho, percebemos os trágicos acontecimentos que acontecem à narradora, que se agarra à esperança para fugir das angústias de sua vida.

A lembrança da loja de armarinhos equivale à proteção do passado perdida no transcorrer da vida, como afirma Gaston Bachelard:

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É porque vive em nós uma casa onírica que elegemos um canto escuro da casa natal, um aposento mais secreto. A casa natal nos interessa desde a mais longínqua infância por dar testemunho de uma proteção mais remota. (BACHELARD, 2003, p. 80)

Ambos os narradores possuem a característica de estar sempre à espera de algo que imaginam irá acontecer em suas vidas. Enquanto descreve a cidade de Porto Alegre, a narradora de Scliar vaga sem destino pelas ruas do bairro, na sucessiva mudança de casas, enquanto o narrador de Rosa passa os dias na inércia da contemplação do pai no rio.

Nas duas narrativas encontramos a canoa escolhida como o refúgio para a última morada. Em Rosa:

Encomendou uma canoa especial, de pau vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. (ROSA, 2005, p. 77)

Em Scliar:

Me mandaste morar numa espécie de casa-barco que estava atracada no Guaíba, num lugar deserto, perto do Porto das Pombas.

Interessante a casa–barco. (...) era uma simples cabina de madeira coberta com uma lona. (SCLIAR, 2000, p. 117-118)

Essa canoa em Rosa e casa-barco em Scliar parecem representar a última morada. Dessa forma os autores estão criando esse espaço para empreender a

“última viagem.”

Em seu ensaio sobre a simbologia da água, Bachelard descreve a morte como uma viagem.

(...) a função de um simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte. Por mais que atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é guardião de um mistério. (BACHELARD, 1997, p. 80-81)

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Caronte, originário da mitologia grega, tinha como função fazer as almas atravessarem os rios Estige e Aqueronte, rios esses, que fazem a separação entre a vida e a morte. Ele era um velho barbudo, de rosto triste, usando um boné e com um remo em suas mãos. O mesmo velho que vemos presente em Rosa: “(...) nosso pai encalçou o chapéu (...) eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto do sol e dos pelos, com o aspecto de bicho (...)”

(ROSA, 2005, p. 77-80). Como Caronte era filho de Nyx, a divindade da noite, as narrativas apontam para a escuridão, como o caos e as forças ocultas que se instalam na vida dos dois personagens.

Ao longo da história diversos mitos vão sendo recriados e servem de base para a construção literária. Podemos encontrar esse símbolo náutico em poemas que estão na base da literatura ocidental, como é o caso, entre outros: da Ilíada, da Odisséia de Homero e do Inferno de Dante, na Divina Comédia, em que a viagem se dá pelo mundo dos mortos. Em todos há a barca do inferno e o seu comandante é o velho Caronte. Essa mesma travessia será empreendida pelo narrador de Scliar: “(...) a vida não tinha mais sentido para ti, que eu deveria soltar as amarras do barco e deixar que as correntes do Guaíba me levassem ao sabor do destino” (SCLIAR, 2000, p. 118). E pelo narrador de Rosa: “Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida, longa” (ROSA, 2005, p.

78).

O rio marca a passagem do tempo nas duas narrativas. É o fluir da água nos espaços silenciosos do próprio texto. Como fluir do tempo, a água pode significar o fim e a morte. Segundo Bachelard: “A água, substância da vida, é também substância da morte para o devaneio ambivalente: (...) só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água (...)” (BACHELARD, 1997, p. 75-77).

Bachelard, ao citar Ofélia de Hamlet, acrescenta:

A água é o elemento da morte sem vingança, do suicídio masoquista.

A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente afogados em lágrimas.

(BACHELARD, 1997, p. 85)

E é essa mulher que vamos encontrar em Scliar. Em Rosa, o rio é colocado como o espelho da alma do narrador que vai sofrendo transformações e com o fluir do tempo vai se espelhando no pai: “(...) o rio por aí se estendendo, grande, fundo, calado que sempre. Largo de não se poder ver a forma de outra beira” (ROSA, 2005, p.

77).

As duas narrativas oscilam entre o passado e o presente. Entre o que os narradores vivenciam agora e o que viveram no passado. Dessa forma, elas estão ligadas à memória e lembrança dos narradores. A narradora de Scliar apoia-se em

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lembranças de imagens da cidade para reconstruir os fatos que narra. O narrador de Rosa apoia-se na lembrança para reconstituir os fatos na tentativa de manter a existência do pai e, consequentemente, a sua, como guardião da vida de seu pai que é.

Por meio das palavras do filho, ficamos sabendo que o tempo passou e que ele próprio já está velho: “Eu sofria já o começo da velhice. (...). Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo” (ROSA, 2005, p. 81). O narrador de Scliar da mesma forma faz alusão ao tempo que passou: “Passavas por uma fase de profunda depressão, de angústia existencial. Que é o dinheiro? – me perguntavas.

Estávamos os dois com sessenta anos” (SCLIAR, 2000, p. 117).

A memória pode ser concebida como uma volta ao passado, por meio da qual fatos também passados serão resgatados no presente. Podemos entender a memória presente nos dois contos como o efeito de desconstrução já que tem no passado um ponto de interrogação para o presente.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 127-133)