• Nenhum resultado encontrado

Mana vol.5 número1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Mana vol.5 número1"

Copied!
28
0
0

Texto

(1)

De b aix o d a ob e d iê n cia d as trê s p e ssoas d a S an tíssim a Trin d ad e e u p e ço lice n ça p ara com u n icar-m e com os e sp íritos d os se te Cab oclos e d as se te Cab oclas, cu rad ore s e cu rad oras. Ó alm as b e n d itas d os cab oclos e d as cab o-clas, v ós fôste s com o e u e e u se re i com o v ós. (O ra çã o d os Se te C a b oclos — ap u d C â m a ra C a scu d o 1951).

N a h o r a d a p o s s e s s ã o , m a s t a m b é m n a s d is c u s s õ e s in fo r m a is e n t r e in te g ra n te s d os cu ltos d e p osse ssã o b ra sile iros u rb a n os, n ã o é ra ra a r e fe r ê n c ia a u m p e r s o n a g e m fa m ilia r : o c a b o c lo . D u r a n t e a s c h a m a d a s se ssõe s d e te rre iro, ca d a m é d iu m re p re se n ta n d o u m ca b oclo d ife -re n te e scu ta os p e d id os d os con su le n te s -re la tivos à sa ú d e d e ficie n te , situ a çã o fa m ilia r in stá ve l ou e m p re g o p re cá rio. Em re torn o, tod os re ce -b e m c o n s e lh o s d e fir m e z a e p e r s e v e r a n ç a , à s v e z e s fo r m u la d o s e m tom irôn ico, ou tra s ve ze s e n u n cia d os com com p a ixã o. Aq u e le s q u e , se g u n d o u m p ossu íd o, n ã o com p a re ce m com a ssid u id a d e a o te rre iro, p od e m se r a lvo d e u m a a p óstrofe n e m se m p re a g ra d á ve l, a ssim com o t a m b é m p o d e r ia m s ê - lo o s n o v o s c lie n t e s q u e , e s t r a n h a n d o p o r n ã o r e c o n h e c e r e m n a q u e le m é d iu m o “ c a b o c lo ” q u e c o s t u m a m c o n s u lt a r, v ie s s e m a c o m p a r lt ilh a r e s s e s p e n s a m e n lt o s c o m o s d e m a is p r e -se n te s.

De q u a lq u e r form a , a crítica só p od e ria se r ve la d a . Um m é d iu m e la -b ora , com o fa ria u m a tor n o p a lco, a su a p róp ria in te rp re ta çã o d o p a p e l d o ca b oclo, in te rp re ta çã o q u e n ã o se con fu n d e com n e n h u m a ou tra . M a s p a ra con ve n ce r o p ú b lico d a p re se n ça d o se r in visíve l, a com p osiçã o d e ve in clu ir tra ços d ife re n te s d os d a p róp ria p e rson a lid a d e d o filh o-d e -sa n to q u a n d o “ con scie n te ” . A d im e n sã o d e cria tivid a d e p e ssoa l, a ssocia n d o e stre ita m e n te o se r h u m a n o e o e sp írito1a os olh os d os con h e cid os, p e r-m ite in stitu ir o ca b oclo n a p osiçã o d e cor-m p a n h e iro d o r-m é d iu r-m , o q u a l p a ssa e n tã o a d irig ir su a vid a com o se e sse ou tro m a n d a sse n e le . A e ficá

-O PAJÉ E -O CAB-OCL-O:

DE HOMEM A EN TIDADE*

(2)

cia d o ca b oclo, p rova d a com p e tê n cia d o m é d iu m , é a ssim fu n çã o d e u m a id e n tid a d e a firm a d a n a d ife re n ça .

Du ra n te a p rim e ira p a rte d e ste sé cu lo, a e la b ora çã o cu ltu ra l d o ca b o-clo e n q u a n to ca te g oria d o m u n d o in visíve l p a re ce te r-se a p oia d o e m u m a d in â m ica a n á log a , in clu in d o-o sim u lta n e a m e n te n os re g istros d a in tim i-d a i-d e e i-d a e stra n h e za . G osta ria a q u i i-d e e xa m in a r o su rg im e n to i-d e sse ca b oclo in visíve l, le va n ta n d o a h ip óte se d e q u e e ste se d e u m e d ia n te u m tra b a lh o sim b ólico á rd u o sob re a m u ltip licid a d e d e se n tid os d a p a la vra ca b oclo (d e n tre os q u a is a lg u n s sã o h oje ob sole tos).

O ca so d e Be lé m , on d e fiz p e sq u isa d e ca m p o, é p a rticu la rm e n te in te re ssa n te , p ois lá os e sp íritos ca b oclos fu n d e m d ive rsa s ca te g oria s d e e n tid a d e s q u e p e rm a n e ce m se p a ra d a s e m ou tra s re g iõe s. N e sta cid a d e , os p re tos-ve lh os, a s cria n ça s e , d e m a n e ira m a is com p le xa , os e xu s2 e n ca rn a m , ca d a u m a se u m od o, a sp e ctos d ife re n te s d os ca b oclos: q u a n -d o jove m , a -d u lto, i-d oso..., a b rin -d o o le q u e -d e p e rson a g e n s sin g u la re s -d os q u a is u m m é d iu m p od e a p od e ra r-se p a ra con q u ista r fa m a e p re stíg io. O ca b oclo é a ssim a fig u ra ce n tra l d os cu ltos d e p osse ssã o d a re g iã o.

Pa ra e n te n d e r a im p ortâ n cia d a e xte n sã o d o te rm o ca b oclo a q u a l-q u e r se r in visíve l3, d e ve -se con sid e ra r o con te xto a m a zôn ico e m q u e se situ a a ca p ita l p a ra e n se . Em u m a re g iã o q u e con ce n tra a m a is a lta p or-ce n ta g e m d e p op u la çõe s in d íg e n a s, m a s sob re tu d o on d e os ve stíg ios d e p rá tica s e cre n ça s a u tócton e s se e n con tra m a in d a vivos n o m e io ru ra l, a p a la vra “ ca b oclo” é a ssocia d a , m a is d o q u e e m ou tro lu g a r q u a lq u e r, a re fe rê n cia s cu ltu ra is in tim a m e n te lig a d a s à h istória d a s su a s orig e n s. Ab a n d on a n d o o se n tid o d e ín d io ou d e m e stiço d e ín d io e b ra n co, ca b o-clo, p a ra a p op u la çã o a tu a l d a cid a d e , d e sig n a g e ra lm e n te o h a b ita n te d o m e io ru ra l q u a lq u e r q u e se ja a su a orig e m , m u ita s ve ze s a p re se n ta n -d o-o com o cré -d u lo e i-d iota . De fa to, o u so -d o te rm o te m u m a forte ca rg a n e g a tiva . De n ota a p ou ca con sid e ra çã o q u e se te m p a ra com a q u e le q u e se q u a lifica d e ssa form a , q u a n d o n ã o torn a e xp lícito o d e se jo d e ofe n d ê lo. A d e fin içã o d o ca b oclo e n q u a n to se r in visíve l ve m , e n tã o, n a socie d a -d e a m a zôn ica , ju n to com ou tra : o ca b oclo com o in te riora n o.

(3)

g e stos e com p orta m e n tos a ssocia d os p e la s cla sse s m é d ia s à fa lta d e e d u -ca çã o d o p ovo: os “ -ca b oclos” xin g a m e b e b e m d e m a is, tod os re cu sa m -se a le r e a a p re n d e r a con ta r a s h ora s, a lg u n s se va n g loria m d a s tra ve ssu -ra s q u e fize -ra m , e n q u a n to ou tros, p or p rin cíp io e p a -ra o p -ra ze r d o p ú b li-co, e stra n h a m a s coisa s lig a d a s à “ m od e rn id a d e ” . A p otê n cia d e q u e d is-p oria a e n tid a d e va i ju n to a q u i com u m a ru d e za e u m a ig n orâ n cia q u e p a re ce m se r h e rd a d a s, e n tre ou tros, d o e ste re ótip o d o h om e m ca b oclo. A m a rg in a lid a d e d o ca b oclo-se r h u m a n o é d e ce rta m a n e ira re con d u zid a n e ssa “ vu lg a rid a d e ” q u e é p a rte in te g ra n te d a com p osiçã o d o e sp írito p e los m é d iu n s.

O se g u n d o a rg u m e n to é sociológ ico. Boa p a rte d a p op u la çã o u rb a n a é , se m d ú vid a n e n h u m a , orig in á ria d o in te rior, e ou tra p a rte a in d a te m p a re n te s lá . N e ssa m e d id a , a con d içã o a tu a l d e cita d in o p od e se r e n u n -cia d a e m re la çã o a o d e sloca m e n to d o m e io ru ra l. C e rta s p e ssoa s a firm a m q u e “ fora m ca b oclos” a n te s d a ch e g a d a e a d a p ta çã o a o m e io u rb a n o, e n q u a n to ou tra s m e n cion a m q u e m e m b ros d a su a fa m ília a in d a o sã o. A re la çã o com o in te rior, on d e vive m p or d e fin içã o os ca b oclos, é ta n to m a is in te n sa q u a n to o flu xo d a s m ig ra çõe s, a tra vé s d os la ços fa m ilia re s, lh e d á con sistê n cia e a re a tiva com re g u la rid a d e : o ca b oclo, d ife re n te d o h a b i-ta n te d a cid a d e , n ã o ch e g a a se r ra d ica lm e n te e stra n h o.

As primeiras menções dos cult os de caboclos

As p rim e ira s m e n çõe s d os cu ltos d e ca b oclos d a ta m d o in ício d o sé cu lo. Pa ra Sa lva d or, n o livro d o m é d ico N in a Rod rig u e s (1862-1906), O s A

fri-can os n o Brasil, con sta a e xp re ssã o “ ca n d om b lé d e ca b oclo” (1977:221),

se m q u e in fe lizm e n te e ssa m od a lid a d e d e cu lto se ja d e scrita com m a is d e ta lh e s.

(4)

1955:118). De fa to, o ca rá te r d e socia b ilid a d e e m torn o d a p osse ssã o, a o q u a l o a u tor d o te xto foi se n síve l, p e rsiste a in d a h oje n a s se ssõe s d os te r-re iros.

Por su a p a rte , e m u m livro e d ita d o p e la p rim e ira ve z e m 1934, Arth u r Ra m os tra n scre ve u m tre ch o d e u m jorn a l d e Sa lva d or, O Diário d a Bah ia, d e 1929, iron iza n d o sob re os m é d iu n s p ossu íd os p or “ e sp írito d e ca b oclo e n d ia b ra d o” (1951:123), a n te s d e in sistir sob re a n ovid a d e d e sse s cu ltos: “ H á u m a m od a lid a d e d e sin cre tism o re lig ioso q u e só a g ora ve m tom a n -d o g ra n -d e in cre m e n to, o q u e p rova q u e a su a a p a riçã o é re la tiva m e n te re ce n te . É o ch a m a d o ‘can d om b lé d e ca b oclo’, n a Ba h ia , ou ‘lin h a d e ca b oclo’, n o Rio d e J a n e iro” (1951:138).

En fim , Ed ison C a rn e iro se rá u m d os p ou cos p e sq u isa d ore s a forn e -ce r u m a d e scriçã o d e ta lh a d a d e sse s cu ltos, a p on ta n d o p a ra a s p rin cip a is d ife re n ça s e n tre o ca n d om b lé d ito “ tra d icion a l” e o ca n d om b lé “ d e ca b o-clo” . Se g u n d o e le (1961:101-104), n o ca n d om b lé d e ca b oclo, a lé m d a in trod u çã o d e sse s n ovos p e rson a g e n s a o la d o d os orixá s, o te m p o d a in i-cia çã o foi d ra stica m e n te re d u zid o, os ta m b ore s sã o b a tid os com a p a lm a d a m ã o, os filh os-d e -sa n to sã o p ossu íd os p or vá rios “ e n ca n ta d os”4e n ã o se re colh e m p a ra m u d a r d e rou p a q u a n d o in corp ora d os. À d ife re n ça d o ca n d om b lé “ tra d icion a l” , a re p re se n ta çã o d os p e rson a g e n s in visíve is a ce ita ria com p orta m e n tos a ssocia d os à n a tu re za h u m a n a , p ois os e n ca n -ta d os fa la m , b e b e m , fu m a m e a p re se n -ta m -se a o p ú b lico com a a ju d a d e u m ca n to. Aliá s, o tra n se , se g u n d o o a u tor, n ã o se re strin g e a os in icia d os, a tin g in d o q u a lq u e r p e ssoa d a a ssistê n cia . Por fim , p rocu ra n d o e n fa tiza r o e stilo d ife re n te d a d a n ça n os ca n d om b lé s d e ca b oclos e m re la çã o à core o-g ra fia n os te rre iros “ tra d icion a is” , C a rn e iro é le va d o a d e scre ve r a p ri-m e ira cori-m o “ a n iri-m a d a , viva z e d e cora tiva , p e rri-m itin d o ri-m u ito d e in icia tiva p e ssoa l” , e a se g u n d a com o “ p e sa d a , d e sg ra ciosa e m on óton a ” (1961: 101)5.

N o e n ta n to, e ssa s d ife re n ça s, q u e se org a n iza m e m torn o d a sim p li-fica çã o d o a p a re lh o ritu a l e in icia tório, n ã o con stitu e m crité rios a b solu tos q u e p e rm ita m u m a cla ssifica çã o ríg id a d os te rre iros. C om e fe ito, o a u tor p ôd e “ ve r ca n ta r e d a n ça r p a ra os e n can tad os ca b oclos” n os ca n d om b lé s d o “ En g e n h o Ve lh o e d o G a n tois, d u a s ca sa s on d e a tra d içã o k ê to [yoru -b á , isto é , a frica n a ] e xe rce u m a ve rd a d e ira tira n ia ” (C a rn e iro 1961:62). A in ova çã o, a ssim , p a re ce te r ocorrid o ta m b é m n os m a is a n tig os te rre iros d e Sa lva d or.

(5)

xis-tê n cia d os orixá s e d os e sp íritos d e ca b oclos, com p rova a a sse rçã o d e C a r-n e iro p a ra Sa lva d or. Rib e iro a cre sce r-n ta q u e os m e m b ros d os te rre iros r-n ã o só crê e m q u e os ca b oclos sã o “ m a is su sce tíve is à s m a n ip u la çõe s m á g ica s q u e os d e u se s a frica n os” , com o a trib u e m a lg u m a s d a s su a s “ com p lica -çõe s d e vid a [...], d oe n ça s e ou tros in fortú n ios” , n ã o à p u n içã o d os orixá s, m a s à “ in te rfe rê n cia in d é b ita d e sse s se re s m e n ore s” (1978:131). De ssa form a , e scre ve e le , os m é d iu n s p e n sa m q u e p a rtilh a m a su a e xistê n cia “ p a rte com orish a e p a rte com ca b oclo” (1978:131).

As in form a çõe s sã o a in d a m a is tê n u e s p a ra Porto Ale g re . M e lville H e rsk ovits (1966:201) a sse g u ra q u e lá n ã o e xiste m e sp íritos ca b oclos. M a s, com o d iz C a rn e iro, os cu ltos d a cid a d e , q u e os p e sq u isa d ore s ch a -m a -m d e b a tu q u e , sã o d e sig n a d os p e los fié is p e lo te r-m o “ p a rá ” . De ve -se e n tã o n ota r, com C a rn e iro (1964:128), q u e “ p ará p a re ce [u m te rm o d e ori-g e m ] tu p i e n ã o a frica n a ” ; e q u e se tra ta ta m b é m d o n om e d e u m e sta d o a m a zôn ico d a Un iã o.

Pa ra o Rio d e J a n e iro, in form a çõe s sã o forn e cid a s p or Yvon n e M a g -g ie , e m u m a te se d e fe n d id a e m 1988, on d e , a p a rtir d e u m le va n ta m e n to cu id a d oso d os a u tos d e p roce ssos d e 1890 e 1940, a a u tora a n a lisa a con -trib u içã o d a in stitu içã o ju ríd ica ta n to à con stitu içã o d o ca m p o re lig ioso d os cu ltos d e p osse ssã o q u a n to à d e fin içã o d a s re la çõe s d e p od e r e n tre e le s. De n tre os e le m e n tos sim b ólicos in trod u zid os n o siste m a re lig ioso, e n con tra -se o te rm o ca b oclo, m u ita s ve ze s a ssocia d o a o d e “ p rote tor” , p a ra d e sig n a r os se re s in visíve is re p re se n ta d os p e los m é d iu n s, te rm o q u e ve m n o Rio a te r m a ior re corrê n cia a p a rtir d os a n os 30. Arth u r Ra m os d e scre ve u p a ra o Rio u m a p osse ssã o p or u m sa n to p rote tor, “ ve lh o a n te -p a ssa d o d a C osta d a África ” , q u e le m b ra b a sta n te a q u e la fe ita -p or M a n u e l Q u e rin o p a ra Sa lva d or: “ Pa i J oa q u im a p roxim a -se . À su a p a ssa g e m , tod os se cu rva m e lh e p e d e m a b ê n çã o. Êle va i a b ra ça n d o ve lh os con h e -cid os, com o se tive sse ch e g a d o d e lon g a via je m . In te rrog a p e lo e sta d o d e sa ú d e d e ca d a u m , d á con se lh os, re solve d ificu ld a d e s” (1956:129).

(6)

Sant os, orixás, caboclos negros, caboclos índios

A a p a riçã o d a fig u ra d os ca b oclos le va a u m a in fla çã o d e te rm os p a ra d e sig n á -los. Sã o ch a m a d os, e scre ve C a rn e iro (1964:129), “ orix ás ou

v ôd u n s, vocá b u los n a g ô e jê je , re sp e ctiva m e n te , e n can tad os, cab oclos, san tos, g u ias ou an jos-d a-g u ard a” . Se u e sta tu to d e in te rce ssor lh e s va le ,

m u ita s ve ze s, se re m e stre ita m e n te a ssocia d os a os sa n tos ca tólicos. Dos te ste m u n h os q u e M a g g ie a n a lisou , h á o d e p oim e n to d e u m a se n h ora id sa , a firm a n d o e m 1929 q u e u m con h e cid o se u re ce b e “ e sp íritos d e ca b o-clos” e q u e u m d e le s se ch a m a Sa n to An tôn io, p op u la r sa n to d e d e voçã o. Um p roce sso a n á log o p a re ce te r a con te cid o n o q u e d iz re sp e ito à re la çã o e n tre ca b oclos e orixá s. C a rn e iro (1961:65-67) m e n cion a , p or e xe m p lo, q u e , n os a n os 30, ta n to O g u m (d ivin d a d e d a g u e rra ) ou O xa lá (“ o m a ior d os sa n tos” , d iz d e le Arth u r Ra m os) q u a n to Xa n g ô (orixá d a m a ta ) ou O xóssi (orixá d a ca ça ) e ra m q u a lifica d os d e ca b oclos, o q u e p rovoca va , se g u n d o o a u tor, b a sta n te con fu sã o com a s d ivin d a d e s in sta la d a s a n te s d e le s n os cu ltos d e p osse ssã o. Ain d a h oje su b siste m ce rta s a m b ig ü id a -d e s. Assim , a p e sa r -d o u so -d e p a la vra s -d ife re n te s p a ra os sa n tos e os ori-xá s, p or u m la d o, e p a ra os ca b oclos, p or ou tro (os m é d iu n s u sa m g e ra l-m e n te o te rl-m o “ e n tid a d e ” p a ra os p ril-m e iros, e n q u a n to re se rva l-m o te r-m o “ e sp írito” a os se g u n d os), a d ivisã o d a s á g u a s n e r-m se r-m p re é re sp e i-ta d a e só o con te xto d a e n u n cia çã o p e rm ite d e cid ir sob re o se n tid o d a s p a la vra s.

(7)

zon a s som b ria s on d e os ou tros n ã o p e n e tra m , n ã o e n tra n d o p orta n to e m con corrê n cia d ire ta com e le s.

De ce rta form a , os sa n tos ca tólicos, n a m a ioria “ b ra n cos” , e os ori-xá s, p or su a ve z “ n e g ros” , vã o e n con tra r-se re u n id os e m u m a ú n ica e a m p la ca te g oria , a d e ca b oclo, q u e in te g ra , a in d a , re p re se n ta çõe s d o ín d io e d os se u s d e u se s. M á rio d e An d ra d e e n con trou , n a cid a d e d e N a ta l, ca n tos d e d ica d os à ch a m a d a d os “ ca b oclos” Tu p ã , M a n icoré e Xa ra m u n d í7. En q u a n to ca te g oria d o siste m a re lig ioso, o ca b oclo d os cu l-tos p a re ce te r con se g u id o in corp ora r re p re se n ta çõe s re la tiva s a vá rios g ru p os d a p op u la çã o.

Ed ison C a rn e iro foi o ú n ico d a su a g e ra çã o d e p e sq u isa d ore s a a p on -ta r p a ra e sse fe n ôm e n o. Em a rtig o p u b lica d o p e la p rim e ira ve z e m 1953, o a u tor m ostra g ra n d e p e rsp icá cia q u a n d o su g e re q u e , n os cu ltos, a ca te g oria ca b oclo p od e se r d ivid id a e m d ois su b g ru p os. En con tra n d o u m câ n -tico e m q u e a d ivisã o p a re ce im p licita m e n te a ce ita , C a rn e iro d issocia os ca b oclos q u e tê m “ m iron g a s” , ou se g re d os, os q u a is se ria m u m a re p re -se n ta çã o d o “ ín d io d e rom a n ce ” , d os ca b oclos q u e tê m “ d e n d ê ” , os q u a is se ria m “ n e g ros p or b a ixo d a rou p a g e m d o ín d io con ve n cion a l” (1964: 145). Pod e -se ob je ta r q u e a d ivisã o op e ra d a te m p ou co va lor h e u rístico, já q u e ta n to “ m iron g a ” q u a n to “ d e n d ê ” p rovê m d e u m fu n d o lin g ü ístico a frica n o. M a s e sta crítica re força , n a ve rd a d e , a a ssocia çã o in e lu tá ve l e n tre ín d ios e n e g ros n a ca te g oria ca b oclo.

Em te xto e scrito e m 1960, o m e sm o a u tor p re cisa o se u p e n sa m e n to n o q u e ta n g e a os ca b oclos d e d e n d ê , con h e cid os ta m b é m com o ca b oclos d e Aru a n d a (n om e d e u m p orto a frica n o q u e se torn ou n os cu ltos u m a cid a d e m ítica ):

“ O s ca b oclos d e Aru a n d a d e ve m m u itos d os se u s n om e s e d a s su a s virtu d e s a o in d ia n ism o, con tra p a rte , n a s le tra s, d a re volu çã o d a In d e p e n d ê n cia , m a s a su a con ce p çã o d a ta d e m u ito a n te s d e Ale n ca r, com o p a rte d e u m a te n d ê n cia m a is g e ra l q u e , orie n ta n d ose p a ra a va loriza çã o d e p a d rõe s cu ltu -ra is a frica n os, re su ltou e m n ovos m od os e m a n e i-ra s d e in te g -ra çã o d o n e g ro à n a cion a lid a d e b ra sile ira ” (1964:151).

(8)

e sp a ço n o u n ive rso sim b ólico e m form a çã o, a n á log o à q u e le q u e ocu p a m ou tros com p on e n te s d a p op u la çã o.

É ve rd a d e q u e n a u m b a n d a d o su l d o p a ís, a s e n tid a d e s re p re se n ta d a s com p e le n e g ra fora m re u n id a s e m u m a ou tra ca te g oria , a d e “ p re -tos-ve lh os” , re se rva n d o a os e sp íritos d e ín d ios a ca te g oria d e ca b oclo. N o e n ta n to, p od e -se p e n sa r q u e ta l cla ssifica çã o e xp re ssa a n te s d e tu d o u m a ce rta con ce p çã o d a h istória , e m q u e , e n tre ou tra s coisa s, o p re tove lh o le m b ra a n ód oa d a e scra vid ã o e n q u a n to o ca b oclo e n ca rn a a con -d içã o -d e h om e m livre . O e xe m p lo -d os cu ltos -d e Be lé m va i a o e n con tro d a s ob se rva çõe s d e C a rn e iro q u a n d o e ste a firm a q u e os m é d iu n s n ã o fa ze m m u ita d ife re n ça e n tre os ca b oclos in d íg e n a s e os ca b oclos n e g ros, p ois os ca b oclos, q u e re ce b e m su a s ca ra cte rística s d e fon te s m ú ltip la s, e n tre la ça n d o-a s a té torn á -la s in e xtricá ve is, form a m u m a tota lid a d e q u e n ã o se d ivid e e m fu n çã o d e fe n ótip os ou d e cla ra s orig e n s é tn ica s. O s m é d iu n s d os cu ltos p re fe re m cla ssificá -los e m fu n çã o d o se u p e rte n ci-m e n to a os d oci-m ín ios d a ci-m a ta ou d o ci-m a r e , d e n tro d e ca d a u ci-m , e ci-m fu n çã o d e su a s a fin id a d e s com su b g ru p os com o “ b oia d e iros” , “ fle ch e iros” , “ m a rin h e iros” , “ tu rcos” ... Alé m d isso, p a ra os filh os-d e -sa n to, ca b oclo n e n h u m fica ria p re so a e sse siste m a d e cla ssifica çã o. N a h ora d a p osse ssã o, q u a lq u e r m é d iu m com p e te n te — cu ja re p u ta çã o o a u toriza a su ste n -ta r q u e sa b e d a von -ta d e d o se u ca b oclo — p od e re p re se n tá -lo q u a n d o u m g ru p o d ife re n te d o d e le e stá se n d o ch a m a d o.

De ixa n d o, p or e n q u a n to, a d e scriçã o d o sig n ifica d o d o ca b oclo in vi-síve l n os cu ltos d e p osse ssã o e d os d ive rsos a sp e ctos q u e o p e rson a g e m a ssu m e , d e ve m os a n a lisa r a ou tra ve rte n te se m â n tica d o te rm o, isto é , o ca b oclo e n q u a n to d e sig n a çã o d e u m tip o d e p op u la çã o h u m a n a .

A const rução do signif icado de caboclo

A e tim olog ia h a b itu a lm e n te a ce ita p a ra ca b oclo é a q u e la d a d a p or Lu ís d a C â m a ra C a scu d o n o se u Dicion ário: “ C a b oco ve m [d o tu p i] caá, m a to, m on te , se lva , e b oc, re tira d o, sa íd o, p rovin d o, oriu n d o” (1972:193). Fra n -çoise e Pie rre G re n a n d (1990:27), com b a se n os e scritos d a se g u n d a p a r-te d o sé cu lo XVII, a cre sce n ta m q u e o r-te rm o foi p rim e ira m e n r-te u sa d o p e los ín d ios Tu p i d a costa p a ra d e sig n a r os se u s in im ig os m ora n d o n o in te rior, isto é , “ n o m a to” .

(9)

i-çã o foi tã o flu tu a n te q u a n to a d e le n o q u e ta n g e a os g ru p os q u e d e via m se r a ssim ch a m a d os, b e m com o n o q u e d iz re sp e ito a o se u su p osto “ g ra u d e civiliza çã o” . J osé Ve ríssim o con ce b ia o Ta p u io com o “ o filh o le g ítim o d a ra ça a m e rica n a ” (1970:13), e n q u a n to Arm a n d o M e n d e s o con sid e ra va com o “ o in d íg e n a , o ca b ôclo se m iciviliza d o, q u e vive e n tre a p op u la -çã o se rta n e ja ” (s/ d :90) e Alfre d o A. d a M a ta , com o o “ ca b oclo civilisa d o” (1939:304)8.

O p roce sso, ca d a ve z m a is a b ra n g e n te , le va n d o à in clu sã o d e n ova s p op u la çõe s n a s d e fin içõe s d e ta p u io e d e ca b oclo, a p a re ce já n a ob ra d o Viscon d e d e Be a u re p a ire . Ta p u io é ce rta m e n te o “ n om e g e n é rico a p lica -d o a os se lva g e n s b ra vios n o Bra zil” , m a s, e scre ve o a u tor, “ con se rva ra m [ta m b é m ] e ssa d e n om in a çã o os a b orig e n e s já m a n sos” . Alé m d isso, o u so d o te rm o e ste n d e u -se “ à g e n e ra lid a d e d os m e stiços, e n e ste ca so corre s-p on d e a o te rm o Cab ôclo” (1889:136). O sig n ifica d o a tu a l d e ca b oclo, con stitu íd o p or volta d e 1895 (G re n a n d e G re n a n d 1990:28), é a ssim o d e h a b ita n te d o in te rior, in d e p e n d e n te m e n te d e su a orig e m : “ h oje , e scre ve C â m a ra C a scu d o n os a n os 50, in d ica o m e stiço e m e sm o o p op u la r, u m ca b oclo d a te rra ” (1972:192).

Atra vé s d os sé cu los, o se n tid o d o te rm o ca b oclo ca rre g ou u m a forte ca rg a n e g a tiva p a ra a s p op u la çõe s q u e a ssim e ra m d e sig n a d a s. C â m a ra C a scu d o le m b ra q u e , q u a n d o sin ôn im o oficia l d e ín d io, “ foi vocá b u lo in ju rioso e El-Re i D. J osé d e Portu g a l, p e lo a lva rá d e 4 d e Ab ril d e 1755, m a n d a va e xp u lsa r d a s vila s os q u e ch a m a sse m a os filh os in d íg e n a s d e ca b oclos” (1972:192).

N o in ício d o sé cu lo XX, Vice n te C h e rm on t d e M ira n d a m ostra a in d a cla ra d e scon fia n ça e m re la çã o a o ca b oclo:

“ C a b oclo, s.m . — Ta p u io ou se u m e stiço q u e já n ã o se e xp rim e n o, com p le -ta m e n te e sq u e cid o, n h e e n g a tu m a te rn o: om b re ia com a d e g e n e ra d a e e n torp e cid a ra ça con q u ista d ora , ca lça lu strosa s b otin a s, oste n ta ru tila n te s g ra va -ta s, d a n ça p olca s e va lsa s, ch e g a a se r coron e l ou d ou tor, a d q u ire m a n e ira s corte sã s, m a s sob a a p a tia a tá vica m u ito e scon so, sop ita o ód io d e ra ça . O rg u -lh a n d o-se d e p e rte n ce r à e stirp e tu p i d e sp re za sob e ra n a m e n te o a frica n o e se u s m e stiços” (1988:12-13)9.

(10)

-ria m d e m od o a b ru p to a n a tu re za ve rd a d e ira d os n a tivos d a re g iã o, isto é , se m o ve rn iz d e civiliza çã o a p re se n ta d o p e la s e lite s, con viria m e lh or a d e fin içã o d a d a p or M ira n d a (1988:86) d o te rm o ta p u io e n q u a n to “ ca b o-clo ru d e e ig n ora n te ” .

J á n os d icion á rios p u b lica d os a p a rtir d os a n os 30, n ã o é ra ro con sta r u m a d e fin içã o d e ce rta form a p ositiva d e ca b oclo (m a s n ã o d e Ta p u io). Por e xe m p lo, Ra ym u n d o M ora e s, cu jo ob je tivo d e cla ra d o e ra e sta b e le ce r a “ ve rd a d e ” d a Am a zôn ia , a ssin a la q u e o “ te rm o é a ffe ctu oso, e m p re g a -d o com te rn u ra . M e u C a b oclo, C a b ocla -d a g e n te ” (1931:96). Alg u n s a n os d e p ois, Alfre d o A. d a M a ta n ota u m ou tro “ sig n ifica d o p op u la r” d a p a la -vra , o ca b oclo com o “ h om e m d istin g u id o” (1939:95). Essa m u d a n ça d e tom p a ra tra ta r d o ca b oclo p a re ce te r ocorrid o ta m b é m n o N ord e ste . F. A. P e r e ir a d a C o s t a , p o r e x e m p lo , in d ic a , e m 1 9 3 7 , q u e s e o v o c á b u lo “ ou t’ora tin h a u m a e xp re ssã o d e p re cia tiva , in ju riosa m e sm o a o in fe liz a b o-rig e n e [...] con stitu e h oje , e vin d o n a tu ra lm e n te já d e lon g e , u m a d icçã o fa m ilia r d e a ffe to, in tim a , ca rin h osa m e sm o: M e u cab oclo; Cab oclo v e lh o” (1937:135). Acre sce n ta o a u tor q u e a p lica d o a m u lh e re s, tra ta -se d e u m “ tra ta m e n to in tim o, a ffe ctivo [...], e e m tom in te rje ctivo, [se rve ] com o e xp re ssã o d e a d m ira çã o a d e u m p orte e le g a n te e d e b e llo typ o fe icion a l:

q u e cab ocla b on ita!” (1937:133; ê n fa se s n o orig in a l).

Esse n ovo re g istro d e e xp re ssã o n ã o sig n ifica q u e te n h a m d e sa p a re cid o a s con ota çõe s p e jora tiva s a ssocia d a s a o te rm o. Em b oa p a rte d a lite -ra tu -ra , “ ca b oclo” p e rm a n e ce u m a p a la v-ra in ju riosa e n e g a tiva m e n te d e fi-n id a . Alé m d o q u e , fi-n a re a lid a d e d a s re la çõe s socia is, o forte e stig m a a sso-cia d o a o te rm o ca b oclo fa z com q u e a s p op u la çõe s, a in d a h oje , n ã o a ce i-te m se r ca ra ci-te riza d a s d e ssa form a10. A m u ltip lica çã o d e sig n ifica d os re fle tiu , n a ve rd a d e , a p re ocu p a çã o cre sce n te d os in te le ctu a is d a Am a zô-n ia a re sp e ito d a s p ote zô-n cia lid a d e s d o ca b oclo h om e m .

O caboclo bom da Amazônia

(11)

-ce u a p rod u çã o e xtra tivista e m d e trim e n to d a a g ricu ltu ra e d a in d ú stria , d e ixa n d o a e con om ia re g ion a l tota lm e n te d e p e n d e n te d a s im p orta çõe s e se m con d içõe s d e re sistir, n a d é ca d a d e 10, à q u e d a d os p re ços re su lta n -te d a con corrê n cia in g le sa n a Ásia (Sa n tos 1980). Porta n to, n os p rim e iros d e cê n ios d o sé cu lo XX, a Am a zôn ia já n ã o p od ia m a is p re te n d e r e n ca r-n a r a m od e rr-n id a d e e a “ civiliza çã o” , e sta s volta r-n d o a se r r-n ova m e r-n te a ssocia d a s a o su l d o p a ís. N a ve rd a d e , a re g iã o voltou a a p re se n ta r

“ [...] o m e sm o p a n ora m a q u e u m sé cu lo m a is ce d o: m u ltid ã o a n ôn im a , se m id e n tid a d e a p a re n te e a q u e m n in g u é m p re sta a te n çã o; Ín d ios b ra vos, ob s-tá cu lo a o p rog re sso, im a g e m q u e a lim e n ta tod a sorte d e son h o; e con om ia a rtificia l d e p re d a çã o; n a tu re za se lva g e m , e la ta m b é m , m a g oa d a , e sp olia d a , e m n om e d a con q u ista d a fron te ira , e ste m ito in ce ssa n te m e n te re com e ça d o com o u m p e sa d e lo p a lu d ífe ro” (G re n a n d e G re n a n d 1990:19).

Essa “ m u ltid ã o a n ôn im a ” con ta , n o e n ta n to, com n ovos a cré scim os d e p op u la çã o. Aos ín d ios, d e sce n d e n te s d e p ortu g u e se s, e scra vos a frica -n os12e se u s m e stiços, ju n ta ra m -se a p a rtir d e 1860 im ig ra n te s e stra n g e iros a tra íd os p e la fa m a d a Am a zôn ia , d e n tre ou tiros, e u rop e u s, síriolib a -n e se s e -n orte -a m e rica -n os (Sa lle s 1990:16). M a s a s g ra -n d e s m ig ra çõe s, a lg u m a s in d u zid a s p e lo g ove rn o, ou tra s e sp on tâ n e a s (Sa n tos 1980:87), fora m sob re tu d o in te r-re g ion a is. A se ca d e 1877 n o N ord e ste d e u u m n ovo im p u lso a os flu xos m ig ra tórios q u e vin h a m cre sce n d o d e sd e a d é ca -d a -d e 1810 e q u e con trib u íra m p a ra a colon iza çã o -d e vá ria s re g iõe s -d a Am a zôn ia , e m p a rticu la r n o Esta d o d o Acre (Sa n tos 1980:98). Se u m a p a r-te d os n ord e stin os re flu iu p a ra ou tra s re g iõe s d o p a ís n a d é ca d a d e 1910 (Sa n tos 1980:263), ou tra p a rte ficou e te ce u a lia n ça s, a tra vé s d o ca sa m e n -to e d o com p a d rio, com os se u s vizin h os in sta la d os h á m a is te m p o. Esse s colon os13, o te rm o se n d o u sa d o p a ra d ife re n ciá los d os g ru p os com ocu -p a çã o m a is re m ota , in te g ra ra m -se -p rog re ssiva m e n te à -p o-p u la çã o loca l, e re ce b e ra m o rótu lo d e “ ca b oclos”14.

(12)

Um te m a re corre n te n os tra b a lh os lite rá rios é a com p a ra çã o e n tre os m é ritos d os “ n a tivos”15d a re g iã o — os ca b oclos — e a q u e le s d os m ig ra n -te s d o N ord e s-te — os ce a re n se s. O e stu d o d e J osé C a rva lh o, jorn a lista e folclorista n a scid o n o C e a rá , é re p re se n ta tivo d e ssa te n d ê n cia16. O a u tor, e m u m livro in titu la d o O M atu to Ce are n se e o Cab oclo d o Pará, con sid e -ra q u e o p rim e iro é , “ p e la a lm a , ou p e la s q u a lid a d e s p sych olog ica s, u m sê r m a is com p le xo, m a is va ria d o, m a is m u ltiform e ” d o q u e o se g u n d o, d e scrito com o “ m a is sim p le s, m a is p rim itivo, m e n os com p lica d o” (1930:1). De sta p e rsp e ctiva e volu cion ista , e n con tra n d o o se u p on to d e p a rtid a n o ín d io17, o p a ra e n se le va ce rta d e sva n ta g e m e m m a té ria d e p rod u çã o fol-clórica (a s le n d a s, p or e xe m p lo). N o e n ta n to, log o a com p e n sa p or su a “ ín d ole ” e se u “ p e n d or” n a tu ra is, q u e n ã o fora m a tin g id os p e la “ civiliza -çã o, [q u e ] e stá [...] d e stru in d o o C e a rá , b a rb a ro, m a s p oe tico d e ou tr’ora ” (:122). O ca b oclo, n a tu ra l d e u m a te rra d e p ou ca a fliçã o e d e g ra n d e a b u n d â n cia , m ostra ria u m a “ a p tid ã o a d m irá ve l p a ra a s a rte s e p a ra a m e ca n ica ” (:6), e fa la ria o p ortu g u ê s “ m u ito m a is corre ta m e n te q u e o ce a -re n se ” (:54). De ste n ovo b om se lva g e m , d e scrito com o “ m a n so” , “ ca lm o” , d e p ou ca s “ a m b içõe s e n e ce ssid a d e s” , “ frio” , “ su sp ica z” , “ d iscre to” e “ re lig ioso” , J . C a rva lh o a firm a : “ É u m a ra ça , p ois, q u e p od e rá p rod u zir g ra n d e s d ip lom a ta s [...] se a d ip lom a cia fôr a in d a u m a coisa n e ce ssa ria n o fu tu ro” (:3).

Um ou tro e scritor, J org e H u rle y (1934), form a d o e m d ire ito, q u e foi p rocu ra d org e ra l d o e sta d o e p re sid e n te d o In stitu to H istórico e G e og rá -fico d o Pa rá , d iscord a n itid a m e n te d e sse re tra to d o h om e m a m a zôn ico, q u e a ca b a p or e n fa tiza r a fa lta d e com b a tivid a d e d e u m ca b oclo re p re -se n ta d o com o a com od a d o e con form a d o com -se u d e stin o. N o -se u livro

Itarãn a, p u b lica d o e m 1934, e sse in te le ctu a l re je ita o q u e con sid e ra

(13)

voca çã o m u sica l d o n a tivo, já q u e “ n o in te rior d a Am a zon ia , q u a si tod o o ca b oclo é u m m u sico e sp on ta n e o, im p rovisa d o” (:24). A e xp lica çã o d o su ce sso d e h om e n s ilu stre s e m d om ín ios tã o d ive rsos q u a n to a p olítica , o e xé rcito e a a rte , e n con tra se , p a ra o p a ra e n se J org e H u rle y, n o te m p e ra -m e n to a -m a zôn ico. H a b ilid osos n a a rte d e p in ta r, co-m o n a “ -m e câ n ica ” ou “ n a vid a d o m a r” , os a m a zon e n se s te ria m ig u a lm e n te d isp osiçã o “ p a ra a m e d icin a e p a ra tod a s a s con q u ista s d o e sp irito” (:23).

N e ssa con stru çã o, e xa lta n d o a s virtu d e s d o “ ca rá te r” re g ion a l, a a ssocia çã o d o ca b oclo com o m a to ou o in te rior q u e p ovoa , e a té com u m a a sce n d ê n cia in d íg e n a , d e ixa d e se r u m ob stá cu lo à su a g lorifica çã o. A p roxim id a d e com a “ n a tu re za ” é , d ora va n te , a fon te d o se u g ê n io e d a s su a s com p e tê n cia s. É g ra ça s à s q u a lid a d e s in trín se ca s à su a “ ra ça ”18q u e os h om e n s d a Am a zôn ia p od e m in g re ssa r n a civiliza çã o, d a n d o o m e lh or d e si m e sm os e le va n d o-a à fre n te . Ao n a tu ra lism o d o sé cu lo XIX e a o p e ssim ism o d o in ício d o sé cu lo XX, su ce d e n a s d é ca d a s d e 20 e 30 u m a visã o otim ista com a u tore s p re fe rin d o “ e n con tra r o p a ra íso q u e o in fe rn o n a Am a zôn ia ” (Pre to-Rod a s 1974:183)19.

O in tu ito, n a e la b ora çã o d e u m ca b oclo b om e re sp e itá ve l, é cla ra -m e n t e d e c u n h o id e o ló g ic o : t r a t a - s e d e fo r n e c e r à s e lit e s lo c a is u -m a im a g e m g ra tifica d ora , su sce tíve l d e re a lça r o org u lh o re g ion a l v is-à-v is a s o c ie d a d e d o s u l d o p a ís , o n d e e s t ã o e s t a b e le c id o s o s c e n t r o s d e p od e r. Le va n d o e m con ta os fin s e m a n cip a d ore s d e ssa con stru çã o id e n -titá ria , os e sforços e m volta d a fig u ra d o ca b oclo a p re se n ta m u m a ce rta a n a log ia com a te n ta tiva , n o sé cu lo p a ssa d o, d e fa ze r d o ín d io o sím b o-lo d a coe sã o n a cion a l e d a in d e p e n d ê n cia b ra sile ira p e ra n te o Im p é rio p ortu g u ê s.

Um pont o problemát ico: a pajelança do caboclo

(14)

C om o e scre ve Ald rin d e Fig u e ire d o e m u m tra b a lh o re ce n te , n a q u e la é p oca “ a e stra té g ia d os h om e n s d e le tra s foi d e cre ta r a m orte d a p a je la n ça , p or n ã o re con h e ce r n a s ‘n ova s’ p rá tica s d os p a jé s d e Be lé m , a q u e -la re lig iã o ‘p rim itiva ’ d os ín d ios d a Am a zôn ia ” (1996:216). Pa ra e le s, a a rte d os p a jé s in d íg e n a s, q u e se con sid e ra va com o u m a e sp é cie d e m e d i-cin a p rim itiva , tra n sform ou -se , com a su a p a ssa g e m p a ra o m e io u rb a n o, e m p u ra fe itiça ria (1996:237).

A d e fin içã o d e p a jé d a d a p or u m d e sse s e stu d iosos m ostra , cla ra -m e n te , a s b a se s e sp a cia is e te -m p ora is q u e p a ssa -m a su ste n ta r o con tra ste e n tre a sa b e d oria a trib u íd a a o e sp e cia lista re lig ioso in d íg e n a e o ch a rla -ta n ism o d a q u e le q u e , n a cid a d e , te m a p re te n sã o d e e xe rce r o se u ofício. “ Pa g é - (Paié ). C u ra n d e iro, sa ce rd ote , sa n to, m a g o d a trib u ; e , h oje , e n tre os cre n te s d a m a g ia n e g ra , sim p le s im p ostor d a a rte d e cu ra r e a d ivin h a r” (M e n d e s s/ d :70)21.

Prá tica s q u e e ra m tole rá ve is a n tig a m e n te e e m lu g a re s re cu a d os p e r-d e m , a ssim , a su a le g itim ir-d a r-d e n o m u n r-d o m or-d e rn o. Ra ym u n r-d o M ora e s, d e fe n sor ob stin a d o d a im a g e m d e u m p a ra íso a m a zôn ico, foi u m d os e scritore s m a is p rolixos sob re a s fe içõe s p a ssa d a s e p re se n te s d o p a jé .

“ De g e sto e n ig m a tico, olh a r a m e a ça d or, p a la vra sib ilyn a , con tra d itório, m ise ra ve l, sord id o, o p a g é é od ia d o e re sp e ita d o [n a m a loca s in d íg e n a s]. Rid icu liza m -n ’o, d e sp re za m -n ’o e e scu ta m -n ’o” (1930: 225).

“ O p a g é é sole n e . M a g ro, ve rm e lh o, ole oso, n ú , o se u tra b a lh o d e fe itice iro q u e é con su lta d o com o o e ra m os G ra n d e s in icia d os, d e sd ob ra se com a g ra -vid a d e sa ce rd ota l, se re n a , con fia n te n o p rop rio cord ã o d e a u g u re [...]. M a s o p u ro p a g é a b orig e n e , a d stricto a o ritu a l vin d o d e lon g e , a tra vé s d e re m ota s g e ra çõe s, p roje cta -se cru za d o n o p a g é m a m e lu co, n o p a g é m u la to, n o p a g é cu rib oco, im a g in oso, sole rte , q u e se e n con tra n os p ovoa d os, n os villorios, n a s cid a d e s” (:229). Este , “ m u ito d e sm ora liza d o já , b e b a ço, ca lote iro, d e fra -q u e su rra d o, b ota s ca m b a ia s, ch a p e u se m a b a s, ca lça s ce rzid a s, colle te ra s-g a d o, ca m isa e n xova lh a d a , corre n te d e re los-g io d e ca b e llos tra n ça d os e ch e ia d e fig a s, d e fa va s, d e d e n te s, d e ca m a fe u s — a in d a a ssim é p rocu ra d o e con -su lta d o, n ã o ta n to ta lve z p e la s d oe n ça s d o corp o, sim p e la s d oe n ça s d a a lm a ” (:230)22.

(15)

cid a d e . Su jo e b ê b a d o, é a p re se n ta d o com o m a la n d ro, m a rg in a l, p ob re e fe tich ista . A p a je la n ça “ d e g e n e ra d a ” é e n tã o con d e n a d a a d e sa p a re ce r com o p rog re sso d a civiliza çã o, e com e la o p a jé u rb a n o.

A im p re n sa , com o d ocu m e n ta Ald rin d e Fig u e ire d o (1996, 2ap a rte ), re g istra a b u n d a n te m e n te os ca sos d e p a je la n ça , con trib u in d o p a ra a cisã o d o p a jé e m d u a s im a g e n s d istin ta s: u m a b e n é fica e in ócu a , a d o “ b e n ze -d or” , e ou tra m a lig n a , a -d o “ fe itice iro” . Esta -d ivisã o a ca b a rá n os a n os 30 p or le va r d e fin itiva m e n te a p a je la n ça p a ra o la d o d a m a g ia n e g ra . A in stitu içã o ju d iciá ria , re p re se n ta n te d o “ m od e rn o” a p a re lh o d e Esta d o, ta m -b é m con tri-b u i p a ra o p roce sso d e m a rg in a liza çã o d a p a je la n ça q u a n d o, d e p a ra n d o-se com e la a tra vé s d a s d e n ú n cia s d e “ fe itiça ria ” , a re je ita com o ob scu ra n tism o d o u n ive rso p op u la r24. Ao q u e p a re ce , os te rm os “ p a jé ” e “ p a je la n ça ” con stitu íra m se com o ca te g oria s d e a cu sa çã o con -tra vizin h os ou p a re n te s e m m om e n tos d e a trito25, e m u m d isp ositivo e fi-ca z já n os a n os 20.

Ao com p a ra rm os a re p re se n ta çã o d o ca b oclo com a q u e la d o p a jé , ta is com o a s e n con tra m os n a lite ra tu ra d o in ício d o sé cu lo, fica cla ro q u e o re su lta d o d o tra b a lh o sim b ólico foi b e m d ife re n te n os d ois ca sos. O ca b oclo foi visto p or u m a p a rte d os e stu d iosos com o o p rod u to va loriza d o d a m e stiça g e m , u m tip o d e p op u la çã o q u e con se g u iria fa cilm e n te a cre s-ce n ta r à s q u a lid a d e s d o se u a n s-ce stra l ín d io o con h e cim e n to vin d o d a m od e rn a civiliza çã o. N e ssa con stru çã o, a re sp on sa b ilid a d e p e lo b om a p rove ita m e n to d a s ca p a cid a d e s d a “ ra ça a m a zôn ica ” ca b ia a os h om e n s p olíticos. C on tra sta n d o com isto, o p e rson a g e m d o p a jé só a d q u ire fe i-çõe s a ce itá ve is q u a n d o p roje ta d o lon g e d o p re se n te e d a m iscig e n a çã o, n a m a loca in d íg e n a . Q u a n d o situ a d o o se u d e se m p e n h o n o m u n d o con te m p orâ n e o, a p rove ita rse ia d o p ior d a s cre n ça s e su p e rstiçõe s p op u la re s, fa vore ce n d o a p e rm a n ê n cia d a ig n orâ n cia (ca ra cte rística fu n d a m e n -ta l d o p ovo se g u n d o a s e lite s), in com p a tíve l com o e s-ta d o d e civiliza çã o d e se ja d o. O ca b oclo b om te m fu tu ro, o b om p a jé já se foi. Ta l form u la çã o, su b ja ce n te a o p e n sa m e n to d os d e fe n sore s d o ca b oclo, in stitu ía , a tra -vé s d a ú ltim a a sse rçã o, u m p on to d e con córd ia com se u s m a is fe roze s a d ve rsá rios.

(16)

vive n d o d a p e sca e d a colh e ita , d e te m p e ra m e n to p re g u içoso e d e scon fia d o. Em ou tros te rm os, o ca b oclo, fig u ra p rim itiva e e xótica fora d a Am a zôn ia , re p re se n ta d e n tro o “ a tra so” d a re g iã o e d a s p e ssoa s a ssim d e sig -n a d a s, re ve la -n d o à s e sco-n d id a s a e xclu sã o d o m e rca d o d e g ra -n d e p a rte d a p op u la çã o. O e stig m a ca rre g a d o p e lo e ste re ótip o é tã o forte q u e n in g u é m a ce ita re con h e ce rse com o ca b oclo. O te rm o ve m e n tã o a se r u sa d o p a ra d e sig n a r u m “ ou tro” , cu ja p osiçã o n a e stru tu ra socia l é su p osta m e n te in fe rior à d o locu tor. De b ora h Lim a , se g u in d o C h a rle s Wa g le y, tra -ta o “ ca b oclo com o ca te g oria re la cion a l” (1992:24). O s m ora d ore s d a ca p ita l q u a lifica m d e ssa form a os h a b iita n te s d a s cid a d e s d o in te rior, e n q u a n -to e ste s re se rva m o te rm o à s p e ssoa s d o m e io ru ra l, e e sta s ú ltim a s a os ín d ios.

Volt ando ao caboclo invisível

As m ig ra çõe s d e im p orta n te s con tin g e n te s p op u la cion a is e n tre o N orte e o N ord e ste , p rosse g u in d o à s ve ze s p a ra o su l d o p a ís, fora m p rova ve l-m e n te e sse n cia is p a ra a con solid a çã o, n a s d ive rsa s re g iõe s, d a sin on íl-m ia e n tre ca b oclo e n ortista . C om e fe ito, con sid e ra n d o q u e o te rm o ca b oclo p e rm ite con stru ir, ou m e lh or, e xp re ssa r n a lin g u a g e m cotid ia n a a d ife -re n cia çã o d a s p osiçõe s socia is, e sa b e n d o ta m b é m q u e n o N ord e ste a p a la vra n u n ca foi u m te rm o d e a u tod e n om in a çã o (Sig a u d 1978:8), p od e se su p or q u e n e sta ú ltim a re g iã o os m ig ra n te s vin d os d o N orte e a p re se n ta n d o n o fe n ótip o tra ços d e u m a a sce n d ê n cia in d íg e n a , se ja m re je ita -d os a o e xtre m o, torn a n -d o-se os “ ca b oclos” -d os ou tros. N e sse con te xto, o te rm o ca b oclo con stitu i-se p rog re ssiva m e n te e m u m a p a la vra op e ra cio-n a l p a ra e cio-n u cio-n cia r q u a lq u e r d ife re cio-n ça , p od e cio-n d o se r a ssocia d a a u m a ori-g e m ori-g e oori-g rá fica n ortista e , sob re tu d o, a u m a d ife re n ça re liori-g iosa .

De fa to, n o Bra sil, a orig in a lid a d e d a s p rá tica s re lig iosa s vin d a s d o N orte e o sa b e r p e cu lia r d os se u s p e ritos e ra m re fe rid os com o ca b oclos. J á n o in ício d o sé cu lo, e ra se m d ú vid a n o d om ín io re lig ioso q u e a re p u ta -çã o d o ca b oclo se tin h a firm a d o. Pod e r-se -ia m d a r e xe m p los d e tra b a lh os lite rá rios, com o o rom a n ce Esaú e Jacó, d e M a ch a d o d e Assis, e scrito e m 190426, te ste m u n h a n d o a re p re se n ta çã o d o ca b oclo p rim e ira m e n te com o e sp e cia lista re lig ioso. O a m p lo ca m p o se m â n tico cob e rto p e lo te rm o p e r-m ite e voca r ce rta s p rá tica s cu ltu a is, d e r-m od o ir-m p lícito r-m a s se r-m e q u ívoco p ossíve l.

(17)

cio-n a d o a cim a , e cio-n q u a cio-n to ca te g oria d e a cu sa çã o, e a ssim m e sm o cio-n a Am a zô-n ia , ozô-n d e fora m cozô-n sa g ra d os p e la lite ra tu ra clá ssica a o fa la r d a s p rá tica s re lig iosa s loca is. Pa ra a Am a zôn ia , o a n trop ólog o H e ra ld o M a u é s con sta -ta q u e h oje e m d ia e m Vig ia , n a re g iã o d o Sa lg a d o, “ a p a je la n ça n ã o e xis-te , p a ra se u s p ra tica n xis-te s, com o u m a ca xis-te g oria e xp lícita , n o se n tid o d e q u e [...] n ã o e xiste u m rótu lo p a ra e la ” (1995:483). E p a ra a s p rim e ira s d é ca d a s d o sé cu lo, o folclorista J osé C a rva lh o (1930:31) a firm a q u e n e m m e sm o a p a la vra p a jé e ra h a b itu a l, os con su le n te s fa la n d o com m a is g os-to d e “ cu ra d or” .

M a s ca b oclo n ã o e ra q u a lq u e r cu ra n d e iro ou fe itice iro. Atrib u ía -se a e ste e sp e cia lista re lig ioso a sa b e d oria d e fe itiços p ote n te s e d e scon h e ci-d os, p orq u e oriu n ci-d os ci-d e lon g e . O s h om e n s a q u e m se ch a m a va ca b oclos (isto é , os “ p a jé s” oriu n d os d a s cid a d e s d a re g iã o a m a zôn ica e tid os p or d e g e n e ra d os n a lite ra tu ra re g ion a lista ) g oza va m d e con sid e rá ve l fa m a e p re stíg io, q u e a tra ía m clie n te s e d iscíp u los, o q u e fa zia d a su a re g iã o d e p roce d ê n cia u m a re fe rê n cia im p re scin d íve l. O folclorista C â m a ra C a scu -d o a te sta e ssa re p u ta çã o ju n to a os m e stre s -d o C a tim b ó n o Esta -d o -d o Rio G ra n d e d o N orte :

“ H á n o C a tim b ó m u ito Pa rá Am a zon a s. Sã o a s u n ive rsid a d e s d o cu rso se cre -to. A ord e m , n a cita çã o re sp e itosa q u e é a cre d e n cia l n a ord e m d os va lore s, com e ça p or Be lé m d o Pa rá , M a n a u s d e p ois. N ã o se fa la b a sta n te n a Ba h ia . O te rce iro lu g a r é Pe rn a m b u co [...]. Posso in form a r, e m se g rê d o p a ra a Polí-cia n ã o sa b e r, q u e os m e stre s d a Pa je la n ça p a ra e n se , a lg u n s d e m a is fa m a , sã o con vid a d os a visita r ca p ita is n ord e stin a s p a ra ‘tra b a lh os’ d e im p ortâ n cia [...]. O s Pa jé s vê m , tra b a lh a m e d e ixa m a lg u m a té cn ica n a s m ã os d os m e s-tre s ca tim b óze iros loca is [...]. Alg u n s m e ss-tre s n ord e stin os ju n ta m d in h e iro e vã o p a ssa r u n s m e se s e m Be lé m d o Pa rá e stu d a n d o, a com p a n h a n d o u m sh ort cou rse ” (1951:79).

A Am a zôn ia foi, d e ssa form a , u m im p orta n te foco d e circu la çã o d e h om e n s e d e sa b e re s, os m e stre s d o C a tim b ó d e sloca n d ose p a ra a s cid a -d e s -d e Be lé m ou M a n a u s a fim -d e a p re n -d e r n ovos m isté rios -d os n ortis-ta s ca b oclos e e ste s ú ltim os re sp on d e n d o a con vite s soliciortis-ta n d o os se u s ta le n tos.

Em d ive rsa s re g iõe s, a o u so p e jora tivo d o te rm o n a vid a d iá ria con -tra p u n h a -se u m u so p re stig ioso n a e sfe ra re lig iosa , fa ze n d o com q u e , a o se r con h e cid o com o ca b oclo, u m e sp e cia lista re lig ioso se b e n e ficia sse a

p riori d e u m a re p u ta çã o va n ta josa . Re ivin d ica r-se ca b oclo fa zia p a rte d o

(18)

loca l. H a via vá ria s form a s d e lig a r-se a o p re stig ioso u n ive rso ca b oclo: p e lo lu g a r d e n a scim e n to, p e la tra je tória d e m ig ra çã o e ta m b é m p e los se re s in visíve is re p re se n ta d os d u ra n te a s ch a m a d a s, a q u e m p rocu ra va m os con su le n te s.

N e sse se n tid o, a lóg ica re lig iosa — a d m itin d o q u e com a m orte os h om e n s p ossa m m e ta m orfose a r-se e m e sp íritos — ve io a o e n con tro d a s n e ce ssid a d e s tá tica s d e te rm in a d a s p e la d e m a n d a d o m e rca d o re lig ioso. C om e fe ito, p or a n a log ia com o q u e a con te cia a os se re s h u m a n os, ca b oclo e ra u m a trib u to d e a lg u n s e sp íritos q u e n e le se e n ca rn a va m . O e xe m -p lo d o C a tim b ó e stu d a d o -p or C â m a ra C a scu d o a in d a n os é -p re cioso n e s-se p on to, a o in form a r q u e , d e sd e a e xp u lsã o d os je su íta s n o sé cu lo XVIII, o te rm o e ra a ssocia d o n o N ord e ste a o n om e d e a lg u n s d os “ m e stre s” fa le -cid os q u a n d o se a trib u ía a e le s u m a a sce n d ê n cia in d íg e n a , d a m e sm a for-m a q u e ou tros e ra for-m le for-m b ra d os cofor-m o “ n e g ro ve lh o” q u a n d o tid os p or d e s-ce n d e n te s d e a frica n os. O ra , à m e d id a q u e cre scia o n ú m e ro d e se re s in visíve is ca b oclos ju n to com se u su ce sso, a q u ilo q u e e ra q u a lid a d e p e s-soa l d e ce rtos e sp íritos ou d os h om e n s q u e os re p re se n ta va m , virou ca ra c-te rística com u m a tod os.

A m u ltip lica çã o d os e sp íritos d e ca b oclos a m e a ça va d ilu ir, d a d a a su a g e n e ra liza çã o, o sig n ifica d o d a p a la vra , e , com o con se q ü ê n cia re troce ssiva , lim ita va os e fe itos d e u m u so d ia crítico d o te rm o e n tre os e sp e -cia lista s re lig iosos. O s e ste re ótip os d o ín d io “ b ra b o e se lva g e m ” , e xótico e d ista n te , vie ra m e n tã o n u trir o im a g in á rio re lig ioso, p rop orcion a n d o u m a ca ra cte riza çã o m a is e stre ita d o q u e se ria o ca b oclo a u tê n tico. O s e sp íritos ca b oclos fora m re ve stid os d o q u e e ra con sid e ra d o g e n u in a m e n te in d íg e n a : a rco e fle ch a , sa iote ..., d ista n cia n d ose a ssim d a q u e le s sa n -tos e orixá s, ta m b é m ch a m a d os ca b oclos, m a s q u e n ã o p od ia m re ce b e r ig u a l tra ta m e n to. Um a d e fin içã o ca d a ve z m a is re strita d o in d íg e n a — d o in d íg e n a se m e xistê n cia re a l, é n e ce ssá rio in sistir — con tra b a la n çou , p or-ta n to, a te n d ê n cia à in clu sã o d e tod o e q u a lq u e r se r in visíve l n a ca te g o-ria ca b oclo.

(19)

in a lid a d e e à se lva g e ria ; p od ia p re te in d e r p e rte in ce r à s cla sse s d om iin a in -te s, e n tra r e con trib u ir com se u id e a l d e “ m od e rn id a d e ” . Dito d e ou tra form a , o ca b oclo p od ia se r u m se n h or. Essa d e fin içã o d o se r ca b oclo p e la e ssê n cia , p e la ê n fa se n a s su a s p ote n cia lid a d e s e n ã o p e la a p a rê n cia , a b riu p ossib ilid a d e s in fin ita s d e re com p osiçã o d e u m a fig u ra b a sta n te m on olítica n o N ord e ste .

En con tra m os e vid ê n cia s d a s re p e rcu ssõe s, n o â m b ito re lig ioso, d o d iscu rso d os in te le ctu a is a m a zôn icos e d a s lu ta s tra va d a s p a ra a a firm a -çã o d e u m a id e n tid a d e re g ion a l. N os a n os 60, e m Be lé m d o Pa rá , o te rm o ca b oclo in te rvin h a e m d ois siste m a s d e cla ssifica çã o d os se re s in visíve is: à s ve ze s e ra u m in d ica d or d a “ fa m ília ” — d o g ru p o — à q u a l u m e sp írito p e rte n cia ; ou tra s ve ze s re ve la va o e sta tu to m e n or a trib u íd o a e le , p or op osiçã o à q u e le d os se n h ore s (Le a cock e Le a cock 1972:146)28. Esse d e s-lize fa vore ce u a a b e rtu ra d o g ru p o d os ca b oclos a re p re se n ta çõe s ou tra s q u e a d o ín d io ou d o rib e irin h o. In te g ra ra m -se a e le su b g ru p os e voca n d o ou tros h orizon te s g e og rá ficos (ta is com o os tu rcos e os b oia d e iros), q u e d ificilm e n te re p re se n ta ria m a s p op u la çõe s loca is n a tiva s. À d ife re n ça d e ou tra s re g iõe s d o Bra sil, n a Am a zôn ia , ca b oclo torn ou -se u m a ca te g oria e m b le m á tica , re u n in d o tod a s a s e n tid a d e s p od e rosa s.

O s ca b oclos in visíve is a ca b a ra m p or te r re p re se n ta çõe s a n trop om ór-fica s, le m b ra n d o o se u p a ssa d o d e se re s h u m a n os. Em 1939, C â m a ra C a scu d o (1951:45) fotog ra fou a s p rim e ira s im a g e n s d e g e sso p in ta d o e n con tra d a s n a cid a d e d e N a ta l. A su a orig e m a m a zôn ica — a s trê s fora m com p ra d a s e m Be lé m d o Pa rá — e a d ive rsid a d e d os fe n ótip os q u e in sp ira -ra m o a rte sã o — u m a d a s e stá tu a s te m a s fe içõe s d e u m a lou -ra d e p e le b ra n ca — m ostra m q u e n e ssa re g iã o, com o foi d ito a n te s, o te rm o ca b o-clo já tin h a d e ixa d o d e in d ica r som e n te u m a a sce n d ê n cia in d íg e n a .

(20)

sig n ifica d os29. Afin a l, o ca b oclo foi se p a ra d o d a e sfe ra re lig iosa p e los in te le ctu a is p a ra m e lh or in clu irse n e la , a g ora e n q u a n to ca te g oria ce n -tra l d o m u n d o in visíve l. Form ou -se u m con ju n to ú n ico, cu ja coe sã o n ã o é n e ce ssa ria m e n te h a rm ôn ica , on d e p od e m e xp re ssa r-se a s d ife re n ça s socia is, cu ltu ra is e g e og rá fica s. De sse p on to d e vista , a s in ú m e ra s p ossi-b ilid a d e s d e e sp e cu la çã o ofe re cid a s p e la org a n iza çã o d o m u n d o d os ca b oclos re fle te m a s orig e n s, os itin e rá rios, a s tra je tória s e a s con d içõe s d ive rsa s d e u m a p op u la çã o cu ja m a ior ca ra cte rística é a m ob ilid a d e (G re -n a -n d e G re -n a -n d 1990:25) d os p roce ssos d e su ce ssiva s m ig ra çõe s.

Difícil p ron u n cia r-se sob re a s m u d a n ça s in d u zid a s n o im a g in á rio a m a zôn ico p or e ssa d istorçã o d o se n tid o in icia l d a p a la vra ca b oclo. Ig u a l-m e n te á rd u o a va lia r a s con se q ü ê n cia s p a ra a s p op u la çõe s q u a lifica d a s d e ca b ocla s e m u m con te xto d e forte e n trosa m e n to e n tre o ca m p o e a cid a d e . C om ce rte za , a e la b ora çã o d o ca b oclo e n q u a n to tip o d e p op u la -çã o d e u -se d e form a com p le xa , a tra vé s d o olh a r d os cita d in os, b u sca n d o n os ru ra is e le m e n tos p a ra a con stru çã o d a su a p róp ria id e n tid a d e . Ap e -sa r d e re p re se n ta r u m a fig u ra d o ca m p o, a re p re se n ta çã o d o h om e m ca b oclo é u m p rod u to u rb a n o, com o o é p or su a ve z a con stru çã o d o ca b o-clo in visíve l. As p op u la çõe s a m a zôn ica s, a p a rtir d a s q u a is se e xe rcia e sse tra b a lh o sim b ólico, n ã o tin h a m p a rticip a çã o a tiva n e sse s p roce ssos: re ce -b ia m o rótu lo ca -b oclo se m ja m a is te r con d içõe s d e in fle tir o ru m o d o d icu rso d o q u a l e ra m ob je to, se m te r p ossib ilid a d e s d e a ce itá -lo ou con te s-tá -lo. Pa ra o m e io u rb a n o, p od e -se p e n sa r q u e a in ve n çã o d o ca b oclo cor-re sp on d e a u m a te n ta tiva d e se livra r d o “ ca b oclism o” , p roje ta n d o e m u m a fig u ra d o m u n d o in visíve l q u a lid a d e s q u e sã o d e fe itos, e a té d e fi-ciê n cia s, n a cid a d e . Re sta a n a lisa r u lte riorm e n te o se u sig n ifica d o n o ca so d a s p op u la çõe s ru ra is.

(21)

re sg a ta r a “ p u re za a frica n a ” m e lh or con se rva d a com o ca n d om b lé e os se u s orixá s, o d e stin o d o ca b oclo in visíve l, in clu sive n a Am a zôn ia , foi d e p e rm itir firm a r corte s n o ca m p o re lig ioso, le g itim a n d o ce rta s p rá tica s re li-g iosa s e con d e n a n d o ou tra s.

Re ce b id o e m 13 d e a b ril d e 1998

Ap rova d o e m 29 d e ju n h o d e 1998

(22)

Not as

* Este te m a já foi ob je to d e u m a rtig o p u b lica d o n os Cah ie rs d ’Étu d e s A fri-cain e s (Boye r 1992). Re tom o a q u i p a rte d e le , e p rossig o n a a n á lise a p a rtir d e n ova s le itu ra s q u e m e p e rm ite m tra ta r m e lh or d a re p re se n ta çã o d o ca b oclo, e d e su a s p rod u çõe s re lig iosa s, n os tra b a lh os d os folclorista s n a s trê s p rim e ira s d é ca -d a s -d o sé cu lo. Ag ra -d e ço a De b ora h Lim a su a s ob se rva çõe s a u m a p rim e ira ve rsã o d e ste te xto, e a J org e Pozzob on e C iro C a m p os p e la p a ciê n cia e m corrig ir m e u s e rros d e p ortu g u ê s.

1 É o te rm o u sa d o p e los m é d iu n s p a ra d e sig n a r os se re s in visíve is q u e os

p ossu e m .

2 C om e fe ito, a p e sa r d e form a re m ca te g oria s d istin ta s, e xu s e ca b oclos sã o,

e m Be lé m , vin cu la d os p or u m a re la çã o d e tra n sform a çã o. Assim , u m ca b oclo p od e ria a p re se n ta se e m u m te rre iro sob a form a d e e xu , q u a n d o d e ixa d e e n ca r-n a r u m p e rsor-n a g e m fa m ilia r, ir-n se rid o e m u m d isp ositivo d e d e ve re s e d ire itos, p a ra re p re se n ta r u m a força b ru ta ca p a z d e re a liza r se m d istin çã o os d e se jos d e ca d a u m . Pa ra m a is d e ta lh e s, ve r Boye r (1993).

3 O s ú n icos a n ã o te r corre sp on d ê n cia s com os ca b oclos sã o os orixá s.

4 O s “ e n ca n ta d os” sã o con h e cid os e m u m cu lto d o N orte d o q u a l fa la re i a

se g u ir: a p a je la n ça a m a zôn ica . Ap e sa r d e a p re se n ta r-se sob u m a form a a n im a l, os e n ca n ta d os p a rticip a ria m d e u m a n a tu re za h u m a n a (p a ra o m e io ru ra l a tu a l, ve r M a u é s 1995). Escolh id os p or ou tros e n ca n ta d os, e sse s se re s h u m a n os te ria m sid o tra n sform a d os a tra vé s d o “ e n ca n ta m e n to” , se m sofre re m d e com p osiçã o d a m a té -ria corp ora l.

5 A a p re cia çã o d a b e le za d a s d a n ça s é e vid e n te m e n te u m fa to su b je tivo, e

ou tros a u tore s tê m com ce rte za op in iõe s op osta s à q u e la d e Ed ison C a rn e iro. N o e n ta n to, o u so q u e e ste fa z d e te rm os d ife re n te s p a ra d e scre ve r a s d a n ça s m ostra a n e ce ssid a d e q u e e le se n tiu d e a p on ta r cla ra m e n te o e stilo b e m p a rticu la r d e ca d a u m a .

6 Esta con stru çã o d a re la çã o d o m é d iu m com o ca b oclo se b a se ia n a s re p re

(23)

7 Por e xe m p lo, o a u tor a n otou e ste ca n to con sa g ra d o a o ca b oclo M a n icoré

(An d ra d e 1963:81):

Eu sou a q u e le ca b ôco, Sou o M e stre d os M e stre s, Sou e u g ra n d e p a g é ! Triu n fe i, Ag icé ! O m e u n om e n a a ld e ia É d o g ra n d e M e stre , Do g ra n d e M a n icoré ! Triu n fe i, Ag icé !

8 Sob re o ta p u io, va le le r o in te re ssa n te e n sa io d e C a rlos Ara ú jo d e M ore ira

N e to (1988). O a u tor a n a lisa o p roce sso d e d e strib a liza çã o, a tra vé s d a form a çã o d os re d u tos m ission á rios, sofrid o p e los g ru p os in d íg e n a s d u ra n te a h istória colo-n ia l, q u e tra colo-n sform ou os “ ícolo-n d ios e sp e cíficos” , com a s su a s icolo-n stitu içõe s socia is e cu ltu ra p a rticu la re s, e m “ ín d ios g e n é ricos” (p a ra u sa r d a e xp re ssã o d e Da rcy Rib e iro), “ a p on to d e n ã o se r m a is p ossíve l d e te rm in a r — com b a se n a lín g u a e n a s m a n e ira s d e vive r d e q u e p a rticip a m — a m a triz cu ltu ra l d e orig e m ” (:81), isto é , a su a tra n sform a çã o e m tap u ios. Pa ra M ore ira N e to, a s d ife re n ça s e n tre os tap u ios e a q u e le s q u e ch a m a “ se rta n e jos a m a zôn icos” (isto é , os ca b oclos q u e p ovoa m o in te rior d a re g iã o) sã o m a is d e n a tu re za socioe con ôm ica q u e cu ltu ra l (:90). C om e fe ito, m e sm o se o se rta n e jo “ p od e ch e g a r a te r, e m u m a su b cu ltu ra p a rticu la r, u m a p orce n ta g e m d e e le m e n tos in d íg e n a s tã o ou m a is e le va d a q u e a fre q ü ê n cia d e tra ços d e form a p a rticu la r (se m p re com p ósita ) d e vid a cu ltu ra l d o tap u io” (:82), e le é u m m e m b ro d a socie d a d e n a cion a l, q u e e n con tra form a s d e a ju sta m e n to à s n ova s con d içõe s d e vid a e in te g ra -se in d ivid u a lm e n te a o m e rca d o d e tra b a lh o, e n q u a n to o ou tro n ã o con se g u e vive r fora d o se u g ru p o d e orig e m e te m o se u d e stin o lig a d o a o fu tu ro d e ste . C om a m a rg in a liza çã o d e sse ín d io g e n é rico, n a se g u n d a m e ta d e d o sé cu lo XIX, e o se u d e sa p a re cim e n to e n q u a n to ca te -g oria socia l p e rtin e n te e e con om ica m e n te id e n tificá ve l, o se rta n e jo a m a zôn ico ou ca b oclo torn a -se p orta d or “ d e u m a cu ltu ra g e n é rica ” (:84).

9 Re sp e ite i a g ra fia orig in a l d a s cita çõe s.

10Ve r, p or e xe m p lo, Fa u lh a b e r (1996:7) e Lim a (1992:24).

11Pa ra u m a a n á lise d e ta lh a d a d e ssa fa se d e e xp a n sã o e d o se u d e clín io,

d e ve -se con su lta r o livro d e Sa n tos (1980).

12O ú ltim o ca rre g a m e n to d e e scra vos p rove n ie n te s d a África ocorre u e m

(24)

d a le i Áu re a . De m od o g e ra l, a p re se n ça n e g ra n a re g iã o a m a zôn ica p a re ce te r sid o b a sta n te fra ca , e m torn o d e 7% e m 1890 (Sa lle s 1971:51-52).

13O s colon os, cu ja m a ioria e ra oriu n d a d o C e a rá , e ra m ta m b é m ch a m a d os

ce a re n se s, e sse te rm o torn a n d ose o n om e g e n é rico d e tod os os n ord e stin os (Sa n -tos 1980:98).

14En con tra m os, p or e xe m p lo, n o livro d e J osé C a rva lh o a e xp re ssã o “ ca b

o-clo ce a re n se ” (1930:102).

15Lim a in siste com ra zã o n a d im e n sã o h istórica d a “ con stru çã o d e q u e m é

‘n a tivo’: o ‘a m a zo‘n e ‘n se típ ico’ d a é p oca é se m p re d e fi‘n id o e m co‘n tra ste com a q u e -le s q u e sã o m ig ra n te s re ce n te s e os g ru p os a m e rín d ios, p or u m la d o, e o g ru p o socia l id e n tifica d o com o b ra n co, u rb a n o e rico, p or ou tro la d o. O te rm o con stitu i u m a ‘ca te g oria ’ in te rm e d iá ria n o siste m a d e cla ssifica çã o socia l, situ a d a e n tre ca te g oria s socia is op osta s” (1992:37-38).

16O u tro e xe m p lo a n a lisa d o p or Lim a (1992:33-34) é o livro O s M on g

o-M alaios e os S e rtan e jos, d e Alfre d o La d isla u p u b lica d o e m 1923.

17“ N o C e a rá , o m a tu to ou se rta n e jo e stá , n o te m p o e n a e volu çã o d a ra ça ,

m a is lon g e d a m a lóca a n ce stra l d o q u e o ca b oclo d o Pa rá , ou d a Am a zôn ia ” (C a r-va lh o 1930:1).

18O u so d o te rm o ra ça n ã o é a q u i u m e p ife n ôm e n o, u m sim p le s le g a d o d o

sé cu lo XIX, con d e n a d o a d e sa p a re ce r. Ain d a h oje , p od e m os ob se rva r n o d iscu r-so trivia l, e à s ve ze s ta m b é m n a p rod u çã o e ru d ita , p roce sr-sos a n á log os d e su b s-ta n cia liza çã o e d e re ifica çã o d o socia l, p or e xe m p lo, q u a n d o a id e n tifica çã o d e u m g ru p o sociológ ico se fa z a p a rtir d e ca ra cte rística s fe n otíp ica s, n o ca so d a “ ra ça n e g ra ” , ou q u a n d o sã o e xa lta d a s a s virtu d e s n a cion a is p e la e xp re ssã o “ ra ça b ra sile ira ” , e scon d e n d o a s d e sig u a ld a d e s socia is e a s form a s h istórica s d e d om in a çã o.

19N o se u a rtig o, Pre to-Rod a s (1974) cita e xe m p los d e ou tros a u tore s a m a

zô-n icos: Ezô-n e id a d e M ora e s (Bazô-n h o d e Ch e iro, re p u b lica d o e m 1989, p e la Fu zô-n d a çã o C u ltu ra l Ta n cre d o N e ve s, C ole çã o Le n d o o Pa rá , no2), Ra ym u n d o M ora e s (O s

Ig araú n as, 1938), Ab g u a r Ba stos (A A m az ôn ia q u e N in g u é m Con h e ce , 1932). Pa ra u m a a n á lise d o p e n sa m e n to d os in te le ctu a is a m a zôn icos, d a s te n d ê n cia s e d a e volu çã o d os d iscu rsos, ve r ta m b é m o tra b a lh o d e Ald rin M ou ra d e Fig u e ire -d o (1996).

20Ve r, p or e xe m p lo, a d e scriçã o se g u in te d o “ m a is ce le b re p a g é d o b a ixo

(25)

21Ve r, ta m b é m , O sva ld o O rico: “ En con tra m -se , a in d a h oje , e m Be lé m e

M a n a u s, tip os cu riosos, q u e se p rop õe m a e xe rce r e n tre g e n te civiliza d a o m e sm o p a p e l re se rva d o n a s m a loca s a o p aié d os in d ig e n a s” (1975:232).

22H u rle y (1934:138), e m u m a d e scriçã o d e u m a fe sta ju n in a e m C u ru çá ,

m e n cion a com o p e rson a g e m d o e n re d o a fig u ra d e u m p a jé , ig u a lm e n te re p re -se n ta d o com o b ê b a d o, g ros-se iro e su jo.

23Um b om e xe m p lo d e sse p a n o d e fu n d o fa n ta sm a g órico p a ra o fim d o sé cu

-lo XIX é forn e cid o p or Fig u e ire d o (1996) n a su a a n á lise d os e scritos d o jorn a lista Pá d u a C a rva lh o. O h istoria d or id e n tifica u m a p rod u çã o e sté tica e lite rá ria q u e e xa lta a fig u ra d o p a jé “ p rim itivo” , a o la d o d a su a con trib u içã o p rop ria m e n te jorn a lística , e m q u e a s ocorrê jorn cia s p olicia is se rve m d e b a se p a ra u m a e stig m a tiza -çã o d a p a je la n ça u rb a n a .

24Pa ra o Rio d e J a n e iro, M a g g ie (1988) a n a lisa com fin e za com o “ os m e ca

n ism os re g u la d ore s cria d os p e lo Esta d o a p a rtir d a Re p ú b lica [...] fora m fu n d a -m e n ta is p a ra a con stitu içã o” d a cre n ça n a fe itiça ria (:5). Pron u n cia n d o-se sob re os ca sos q u e lh e e ra m su b m e tid os, a J u stiça ch e g ou a u m a cla ssifica çã o e a u m a h ie ra rq u iza çã o d a s d ive rsa s p osiçõe s e sté tica s e filosófica s (:273) n o ca m p o re li-g ioso d a p osse ssã o.

25En con tra m -se a ssim , n o Arq u ivo Pú b lico d e Be lé m , os a u tos d e u m p

roce sso, d a ta d o d e 1921, q u e foi a b e rto p a ra tra ta r d e u m a d e n ú n cia d e a b orto. Ap e -sa r d o a m a n te d a a cu -sa d a se r q u a lifica d o d e “ ce le b re Pa jé Alb e rtin o” n a ca rta m a n d a d a p e la su a irm ã à s a u torid a d e s, a fa m a n ã o sig n ifica n e ste ca so com p e -tê n cia , p ois a d e n u n cia n te a firm a q u e foi p re ciso re corre r a u m a p a rte ira ita lia n a p a ra con se g u ir e xp u lsa r o fe to. A a cu sa d a n e g ou con h e ce r Alb e rtin o e os m é d icos n ã o p u d e ra m d e te rm in a r se h ou ve “ p rovoca çã o d o a b orto” ...

26Por e xe m p lo, n a p rim e ira ce n a d o livro, q u a n d o u m a socialite va i à ca sa

d e u m a ca b ocla , e m u m m orro d o Rio d e J a n e iro, n ã o se e sp e ra d e sta ú ltim a ou tra coisa q u e re ve la çõe s sob re o d e stin o, o q u e e la p re cisa m e n te fa z ve n d o o fu tu ro d os filh os d a se n h ora .

27Ve r, p or e xe m p lo, sob re M a n a u s, G a b rie l (1980:89).

28O e xe m p lo d a d o p or G a b rie l (1980:195), d e u m e sp írito ca b oclo d o q u a l os

m é d iu n s d ize m q u e se form ou e é h oje “ e d u ca d o” , a te sta e ssa n ova a va lia çã o d a s ca p a cid a d e s d o ca b oclo.

29De ssa p e rsp e ctiva , a n a lise i, e m u m a rtig o p u b lica d o n os A rch iv e s d e

(26)

Ref erências bibliográf icas

AN DRADE, M á rio d e . 1963. M ú sica d e Fe itiçaria n o Brasil. Sã o Pa u lo: Li-vra ria M a rtin s Ed itora .

BEAUREPAIRE, Viscon d e . 1889. Dicion a-rios d e Vocab u los Braz ile iros. Rio d e J a n e iro: Im p re n sa N a cion a l.

BO YER, Vé ron iq u e . 1992. “ De la C a m -p a g n e à la Ville : La M ig ra tion d u Cab oclo” . Cah ie rs d ’Étu d e s A fricai-n e s, XXXII(125):109-127.

___ . 1993. Fe m m e s e t Cu lte s d e Pos-se ssion au Bré sil: Le s Com p ag n on s In v isib le s. Pa ris: Éd ition s L’H a rm a t-ta n .

BO YER ARAUJ O, Vé ron iq u e . 1992. “ De l’Ap p a rte n a n ce Pop u la ire à l’Affirm a tion d e sa M é d iu l’Affirm n ité (Be lé l’Affirm -Bré sil). From Pop u la r O rig in s to th e Affirm a tion of O n e ’s Pow e r a s a M e d iu m ” . A rch iv e s d e S cie n ce s S o-ciale s d e s Re lig ion s, 79:101-114.

C ÂM ARA C ASC UDO, Lu ís d a . 1951. M e -le ag ro. Rio d e J a n e iro: Livra ria Ag ir Ed itora .

___ . 1972 [1954]. Dicion ário d o Folclo-re Brasile iro. In stitu to N a cion a l d o Livro/ M in isté rio d a Ed u ca çã o e C u l-tu ra .

C ARN EIRO, Ed ison . 1961 [1948]. Can -d om b lé s -d a Bah ia. E-d . -d e O u ro. ___ . 1964 [1953]. Lad in os e Criou los.

Rio d e J a n e iro: Ed . C iviliza çã o Bra -sile ira .

C ARVALH O, J osé . 1930. O M atu to Ce a-re n se e o Cab oclo d o Pará. Be lé m : O fficin a s G ra p h ica s/ J orn a l d e Be -lé m .

FAULH ABER, Priscila . 1996. Id e n tifica -çã o d e Pop u la çõe s, In d ia n id a d e e Am b ie n ta lism o: As Re d e s Socia is e m Te fé . Re la tório d e Pe sq u isa a p re -se n ta d o a o C N Pq , M u -se u G oe ld i, Be lé m .

FIG UEIREDO, Ald rin M ou ra d e . 1996. A C id a d e d os En ca n ta d os: Pa je la n ça s, Fe itiça ria s e Re lig iõe s Afro-Bra sile i-ra s n a Am a zôn ia (A C on stitu içã o d e u m C a m p o d e Estu d o 1970-1950). Disse rta çã o d e M e stra d o, Un ica m p .

G ABRIEL, C h e ste r E. 1980. C om m u n ica tion s of th e Sp irits: Um b a n d a Re -g ion a l C u lts in M a n a u s a n d th e Dy-n a m ics of M e d iu m Dy-n istic Tra Dy-n ce . Th è se d e Doctora t, M c G ill Un ive r-sity.

G REN AN D, Fra n çoise e G REN AN D, Pie rre . 1990. “ L’Id e n tité In sa isissa -b le : Le s C a -b oclos Am a zon ie n s” . Étu d e s Ru rale s, 120:17-39.

H ERSKO VITS, M e lville . 1966. Th e N e g ro an d th e N e w W orld . Bloom in g ton : In d ia n a Un ive rsity Pre ss.

H URLEY, J org e . 1934. “ Ita rã n a : Le n d a s, M yth os, Ita rã n a s é ‘Folk Lore ’ Am a -zon icos” . Be lé m , Se p a ra ta d o vol. IX d a Re v ista d o In stitu to H istórico e G e og ráfico d o Pará.

LEAC O C K, Se th e LEAC O C K, Ru th . 1972. S p irit of th e De e p . N e w York : An -ch or Book s.

LIM A, De b ora h d e M a g a lh ã e s. 1992. Th e Socia l C a te g ory C a b oclo: H is-tory, Socia l O rg a n iza tion , Id e n tity a n d O u tsid e r’s Socia l C la ssifica tion of a n Am a zon ia n Re g ion (Th e M id d le Solim õe s). Ph .D. Th e sis, C a m -b rid g e Un ive rsity.

M AG G IE, Yvon n e . 1988. O M e d o d o Fe itiço: Re la çõe s e n tre M a g ia e Pod e r n o Bra sil. Te se d e Dou tora d o, PPG AS/ M u se u N a cion a l.

M ATA, Alfre d o Au g u sto d a . 1939. Con -trib u ição ao Estu d o d o Vocab u lario A m az on e n se .

Referências

Documentos relacionados

Ref erências bibliográf icas.. AQ UIN AS, Th om

California: California University Press... A Fam

[r]

BEN VEN ISTE, Ém ile... Pa

Souffles d’Amazonie: Les Orchestres “Tule” des W ayãpi... Te

[r]

Greenpeace ) vinculados à proteção do meio ambiente. Esse fenômeno ocorreu igualmente nos movimentos de protesto relacio- nados à mineração a céu aberto. As estratégias das

[r]