O projeto de nação pós-colonial magrebino: a língua como
elemento construtor de identidades nacionais
Luana Monçores de Lima Suhett
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos Ŕ opção língua francesa)
Orientador: Professor Doutor Pierre François Georges Guisan
O projeto de nação pós-colonial magrebino: a língua como
elemento construtor de identidades nacionais
Luana Monçores de Lima Suhett
Orientador: Professor Dr. Pierre François Georges Guisan
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ŕ UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.
Examinada por:
___________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Leticia Rebollo Couto - UFRJ
___________________________________________________ Profa Doutora Maria Jussara Abraçado de Almeida - UFF
___________________________________________________ Profa. Doutora Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio - UFRJ
___________________________________________________ Profa. Doutora Ângela Maria da Silva CorreaŔ UFRJ, Suplente
___________________________________________________ Prof. Doutor Thomas Daniel Finbow Ŕ USP, Suplente
Suhett, Luana Monçores de Lima.
O projeto de nação pós-colonial magrebino: a língua como elemento construtor de identidades nacionais / Luana Monçores de Lima Suhett. Ŕ Rio de Janeiro:UFRJ/ FL, 2012.
xi, 106f.: il.; 31 cm.
Orientador: Pierre François Georges Guisan
Dissertação (mestrado) Ŕ UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 102-103.
Agradecimentos
O meu maior agradecimento à realização desta dissertação de mestrado é, sem dúvida,
para meu querido orientador, professor Pierre François Georges Guisan, que me mostrou a
perspectiva de uma sociolinguística mais ampla, “sem fronteiras”, “crioulizada” e ativa nas questões que concernem às políticas linguísticas. Obrigada pelo seu humanismo e
conhecimento, pela atenção e carinho dispensados.
Agradeço igualmente à professora Nabiha Jerad, sociolinguista da Universidade de
Túnis, que me ajudou com a enquete tunisiana e com as traduções do árabe para o francês. A
sua participação foi imprescindível não só pelo apoio, mas também pelos materiais e
discussões sobre o tema. Shukran!
Gostaria também de agradecer à professora Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio,
docente deste programa e membro desta banca, pelas apreciações feitas e materiais
emprestados ao longo de duas disciplinas que realizei no mestrado. Suas críticas muito me
ajudaram a melhorar este trabalho. Devo também agradecer à professora Letícia Rebollo
Couto, que muito gentilmente aceitou o convite para presidir a banca de defesa desta
dissertação ¡Muchas gracias!
Quero também agradecer à professora Jussara Abraçado por ter acolhido prontamente
o convite de participar da minha banca de defesa, assim como aos professores Ângela e
Thomas, que aceitaram o convite para a suplência. Muito Obrigada!
É necessário fazer um agradecimento formal ao programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas e ao setor de francês desta Faculdade, pela minha formação desde a graduação. A
realização deste mestrado passou inevitavelmente pelas mãos desses professores, que através
Por fim, mas não menos importante nesta trajetória, gostaria de agradecer a minha
família (mãe, pai, irmã, marido, tios, primos, avô, mestre Mokiti Okada) pelo amor, incentivo
ao estudo e suporte de sempre. Amo vocês! Vó Ninita ficaria muito orgulhosa deste
RESUMO
SUHETT, Luana Monçores de Lima. O projeto de nação pós-colonial magrebino: a língua como elemento construtor de identidades nacionais. Orientador: Professor Dr. Pierre François Georges Guisan. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos Neolatinos Ŕ Língua Francesa).
RESUME
SUHETT, Luana Monçores de Lima. O projeto de nação pós-colonial magrebino: a língua como elemento construtor de identidades nacionais. Orientador: Professor Dr. Pierre François Georges Guisan. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos Neolatinos Ŕ Língua Francesa).
Sumário
Introdução
PARTE I
Descrição e conceituação do quadro linguístico magrebino pós-colonial 1. Apresentação do problema ... p.12
2. Breve histórico colonial ... p.14 3. O cenário linguístico magrebino contemporâneo ... p.17
3.1 A língua árabe ... p.18
3.1.1 Variante clássica ... p.21
3.2 A língua berbere ... p.22
3.3 A língua francesa ... p.26
3.3.1 O francês basiletal ... p.27 3.3.2 O francês relativo à elite ... p.28
3.3.3 O francês mesoletal ... p.28
3.4 A relação árabe-francês ... p.29
PARTE II
Língua e nação
4. Do “Génié de langues” às “Comunidades Imaginadas” : a relação entre língua, nação
e Estado... p.32
4.1A ideia de um génie e a concepção de língua ... p.32
4.2A formação do conceito de nação e Estado ... p.38 5. Multilinguismo e contato de Línguas ... p.49
PARTE III
As constituições pós-coloniais dos países magrebinos
6. Políticas de arabização e políticas linguísticas ... p.56
6.1Discurso e Identidade ... p.57
6.2 Os imaginários sociais e as constituições de Argélia, Tunísia e Marrocos ... p.60
PARTE IV
Enquete com jovens magrebinos: corpora e reflexões
7. O objetivo das enquetes linguísticas ... p.75
7.1 A enquete tunisiana ... p.76
7.1.1 Atitudes e práticas linguísticas no cotidiano ... p.77
7.1.2 Tecnologias e escrita ... p.78 7.1.3 Representações linguísticas ... p.79
7.2 A enquete argelina ... p.81
7.3A enquete marroquina ... p.85
7.4 Práticas com o árabe literário ... p.87
7.5 Práticas com o francês ... p.90
8. Um olhar geral sobre as três enquetes ... p.93
Conclusão
Bibliografia
Outras referências
Anexos
Introdução
Este trabalho nasceu ainda na iniciação científica no período em que era aluna de
graduação dentro de um projeto maior de estudos sobre Francofonia, conflitos e contatos
linguísticos, políticas linguísticas e identidade cultural. A participação nesse projeto me
permitiu ter elementos para a formulação de uma nova pesquisa para o mestrado. O fruto
desses anos de estudos está consolidado nas páginas a seguir.
Quando falamos de línguas em contato, falamos também de conflitos linguísticos,
crenças, valores, imaginários e representações que formam o ideal do que somos, marcam
nosso lugar no mundo e nos permite criar, por nossa vez, a imagem que temos do outro. A
concepção de língua passa inevitavelmente por essas questões e é por isso que optamos, nessa
dissertação, trabalhar com uma perspectiva da sociolinguística que se preocupa, em particular,
em investigar os fenômenos linguísticos relacionados às representações sociais e às relações
identitárias criados pelas comunidades de fala.
Para fundamentar as nossas reflexões, adotamos a ideia de nação definida por
Benedict Anderson em seu livro intitulado Comunidades Imaginadas, publicado
originalmente em inglês no ano de 1991. Para Anderson, a nação moderna precisou adotar
mitos para justificar a sua nova organização, centralizando a tudo e a todos por instrumentais,
tais como a concepção de uma língua única, com um passado histórico, plena de mitos e
imagens a ela associados. Na “vanguarda” dessa nova concepção, está o Estado Revolucionário francês, que além de cabeças, também decepou a riqueza linguística francesa que existia até então. Assim, só um francês único e “legítimo” poderia representar e unificar a
nova e instável República. O modelo Ŕ que será descrito posteriormente - foi exportado para outros territórios europeus, e mais tardiamente para o resto do mundo. Uma língua, um
A escolha pelos conflitos linguísticos magrebinos como tema se deve ao fato de que o
projeto de nação adotado pelos países da região se funda pelo mesmo ideal francês do século
XVIII. O que é irônico e contraditório. Esses países ao conseguirem suas independências da
França, lançaram-se na construção de um ideal de nação pautado pela língua árabe clássica,
marginalizando e ocultando o multilinguismo das sociedades magrebinas.
Com isso, o nosso trabalho será apresentado em quatro partes. Em um primeiro
momento, faz-se necessária a apresentação do problema, seguida de um breve resumo sobre a
história colonial da região e uma descrição da situação linguística atual magrebina. Na
segunda parte, abrimos uma discussão teórica sobre o conceito de nação, Estado e identidade
linguística-cultural. A reflexão sobre a concepção de língua também é ponto chave para se
entender o problema magrebino, mostrando como essa está intimamente ligada às
construções, às imagens e aos valores que criamos e temos sobre nós mesmos como cidadãos
pertencentes a uma comunidade específica. Para encerrar esse item, é importante falar sobre
multilinguismo e contato de línguas, e explorar como a identidade linguística pode aparecer
nesse contexto.
A terceira parte deste trabalho tem por objetivo apresentar e discutir os discursos
oficiais de Argélia, Tunísia e Marrocos sobre língua, Estado e nação, através do olhar da
análise do discurso de Patrick Charaudeau1. Foi realizada uma seleção de trechos das constituições magrebinas - recentes ao período de independência e também as mais
contemporâneas Ŕ a fim de estudar as políticas linguísticas organizadas pelos governos ao longo dos anos.
Por fim, um trabalho com enquetes sociolinguísticas Ŕ uma de realização pessoal e outras duas de pesquisadores da região - fecha a pesquisa com dados e informações que se
1
opõem claramente aos discursos oficiais, mostrando uma nova geração de magrebinos que se
serve do multilinguismo para a construção de suas identidades com vista para o futuro.
Através dessas quatro seções, podemos vislumbrar um pouco as riquezas e as mazelas
linguísticas do Magrebe atual, onde línguas se encontram e se enfrentam por espaços de
expressão linguística, cultural, identitária e política.
DESCRIÇÃO E CONCEITUAÇÃO DO QUADRO LINGUÍSTICO MAGREBINO PÓS-COLONIAL
1 – Apresentação do problema
Este trabalho tem por objetivo discutir a relação nação-língua no Magrebe
pós-colonial e as políticas linguísticas em torno da língua francesa, através de uma perspectiva da
sociolinguística que se preocupa, em particular, em pesquisar os fenômenos relacionados às
representações sociais e às relações identitárias criadas pelas comunidades de fala. Marrocos,
Tunísia e Argélia, através de uma revalorização da cultura e da língua árabe, consideradas
como originais, buscam construir outras identidades nacionais. Entretanto, as políticas
linguísticas adotadas pelos governos mais recentes ignoram (como na Argélia2) ou minimizam (como na Tunísia e no Marrocos) a forte presença e uso da língua francesa no cotidiano
desses países, seja na administração, na cultura, na sociedade ou na escola, caracterizando-a
como língua estrangeira, assim como o inglês, que possui um papel bem menos dinâmico
nessas sociedades. O francês é visto como uma herança ainda muito ligada à dominação
colonial e a toda uma memória negativa de um passado bem recente. As constituições dos três
países não citam o francês como uma língua falada na região e também limitam a língua árabe
a uma norma única associada ao islamismo. Ou seja, não há distinção entre as variantes, como
o árabe clássico, o árabe standard e, principalmente, o árabe dialetal, que é a língua mais
utilizada pela população nas suas práticas linguísticas cotidianas. As variantes são
intercompreensíveis, o que nos remete ao questionamento do conceito de língua e de dialeto.
A partir desse cenário linguístico e dos problemas nele implicados, podemos nos
questionar sobre o papel e as representações das línguas citadas anteriormente nos países aqui
estudados: Como as representações culturais sobre uma língua influenciam na construção de
2
uma identidade linguística? Como a língua servirá de mito para a construção de uma unidade
social? Em que medida a língua francesa no Magrebe pode ser ao mesmo tempo um elemento
de impasse e de coesão na construção de uma identidade nacional? Quais representações estão
associadas ao francês?
Para compor o quadro de discussão sobre o bilinguismo árabe-francês, é necessário
ainda acrescentar toda a problemática associada às questões linguísticas e culturais da
comunidade Berbere, concentradas principalmente no Marrocos e na Argélia. Esses grupos,
representados por associações comunitárias, vem lutando ao longo dos anos3 pela oficialização e pelo desenvolvimento das línguas Amazigh4. Estas culturas estão presentes na região antes mesmo da chegada dos árabes. Somente no final da década de 1990, os governos
do Marrocos e da Argélia reconheceram oficialmente no texto constitucional a cultura e as
línguas Berberes, colocando em prática alguns projetos de desenvolvimento linguístico, tais
como: a criação de um alfabeto, a institucionalização de uma norma berbere e o ensino da
língua nas escolas. Entretanto, as políticas linguísticas em questão não são satisfatórias, pois
atingem somente uma minoria da população, mantendo ainda um status de cooficialidade nas
constituições de Argélia e Marrocos.
Os conceitos de língua e nação estão intimamente ligados desde os tempos modernos5, constituindo um mito gerador de conflitos, evitando o reconhecimento do rico multilinguismo
da região. Benedict Anderson (2000), cientista político, acredita que as nações são
comunidades imaginadas por aqueles que a compõem, criando assim representações que as
legitimam como sociedades, e mitos que a fundam historicamente como tais. E no processo de
homogeneizar e unificar as diversidades existentes (culturais e linguísticas), a língua se
3
Em 1980, os movimentos de promoção e reivindicação da cultura e língua berberes ganharam força, sendo este
período denominado “Primavera Berbere”.
4
Também encontramos a denominação Tamazigh. Esses são os nomes para designar o idioma na própria língua,
que tem por significado “homens livres”. É interessante constatar que muitas línguas utilizam essa definição para designar a língua, como é o caso dos francos.
5
constituirá, assim como outros elementos6, no símbolo maior e fundamental da construção de uma identidade coletiva.
2 - Breve histórico colonial
Para compreender o cenário linguístico atual do Magrebe e as políticas linguísticas
mais recentes adotadas pelos governos dos três países, é necessário fazer uma breve descrição
do que foi o período colonial francês na região do começo do século XIX até meados do
século XX. O primeiro território a ser ocupado foi o que conhecemos hoje como Argélia. Sua
conquista se iniciou no reinado de Charles X, em 1830, e finalizada pelas tropas de Napoleão
III, em 1870. O território foi integrado como um département aos domínios franceses, o que
dava ao país e aos seus habitantes o status de cidadãos da República Francesa. Em seguida, o
território Tunisiano foi colonizado em 1881, assim como o território Marroquino, conquistado
em 1912. Ambos ganharam o status de protetorados franceses, a partir de um acordo entre lideranças locais e o Estado francês, permitindo certo grau de “liberdade” administrativa não
experimentada pelos argelinos. Este fato será importante não só pelo tipo de processo de
independência que acontecerá mais tarde, mas também para a construção de diferentes
representações dos projetos de identidades nacionais da região. A independência aconteceu
em meados do século XX: Tunísia e Marrocos alcançaram sua autonomia em 1956 e a
Argélia, em um processo muito mais violento e doloroso, conquistou a sua liberdade em
1962. A partir de então, o domínio do colonizador e todas as representações e as identidades a
ele ligadas, precisaram ser desconstruídas para dar lugar a outras novas que redefinissem a
ideia do que é ser tunisiano, marroquino e argelino.
6
A língua teve um papel histórico importante na empreitada colonial, mostrando que a
dominação pela força não é suficiente para garantir a conquista. A dominação linguística e
colonial da França afetou mais fortemente a Argélia do que a Tunísia e o Marrocos, pois a
dominação daquela foi mais longa e violenta, mas o que tão pouco significou um
afrouxamento das relações e das políticas para os outros dois países. A diferença está no grau
da intervenção e não na natureza do problema. O francês se tornou por decreto a língua oficial
da Argélia, marginalizando e eliminando a língua árabe e o ensino desta. A língua árabe e seu
referente o islã eram vistos pelo Estado francês como um sinal de resistência contra o projeto
colonial, sendo o árabe declarado como língua estrangeira em 1938. A permanência do ensino
do árabe foi permitida na Tunísia e no Marrocos, mas nos três países a língua oficial,
econômica, educacional e administrativa era o francês.
A política linguística colonial francesa era bem diferente da britânica, que permitia o
ensino das línguas maternas nas escolas da colônia - o que também não marca uma ação de
solidariedade ou respeito, mas sim um distanciamento carregado de preconceitos em relação
ao colonizado. A política linguística francesa era a de uma língua única ensinada na escola e
utilizada nos setores oficiais, sendo as outras línguas consideradas negativamente como
falares, patois, folclores, elementos de desintegração da unidade da República, etc. Esta
visão é muito anterior ao período colonial imperialista, criada e implementada como política
dentro da própria França a partir da Revolução Francesa, que para manter a sua unidade como
unidade política, proibiu o uso das línguas e variantes regionais e institucionalizou o francês
falado pelas suas lideranças como a língua única da República. No Magrebe, o árabe clássico,
língua símbolo da identidade cultural magrebina, foi considerado perigoso ao projeto colonial,
diferente do árabe dialetal que não possuía uma norma estabelecida e consolidada, sendo
considerado muito mais uma língua vulgar falada. Para o berbere, língua de algumas
árabe, era visto como um aliado estratégico do francês na tentativa de suprimir o árabe
clássico.
O francês foi investido de uma dupla função de superioridade: ele era a língua
dominante, oficial e única, além também de ter a função simbólica de distinção cultural e
social para as elites, sobretudo ao que diz respeito à escolarização. Segundo estudos (JERAD,
2004, p. 528), em 1930, a taxa de escolarização da população era de 6,6% na Tunísia, 5,90%
na Argélia e 1% no Marrocos. Jerad critica a ideia de que o Estado francês desejava fazer da
sua língua a língua materna dos magrebinos, pois a educação era vista como algo perigoso à
colonização, sendo reservada somente para as elites. Existia, no momento das independências,
uma taxa de 80% a 90% de analfabetismo. A alienação cultural e linguística foi apontada
como produto dessa dominação e da desvalorização da cultura dos colonizados e de suas
identidades.
Logo após a independência de Tunísia, Marrocos e Argélia, era necessário reconstruir
a identidade da região com elementos que eliminassem a presença colonial. Para tal fim, o
árabe clássico, que já era um símbolo de resistência, e o islã se fixaram como ícones na
identidade nacional magrebina.
Ao final do período colonial, muitos territórios elegeram a língua do colonizador como
língua oficial, pois suas comunidades eram multilíngues e coube à língua dominante o papel
de uma coesão linguística, como citado anteriormente. Entretanto, os três países magrebinos
seguiram por um caminho oposto ao excluírem o francês de seus discursos oficiais,
classificando-o como língua estrangeira, apesar de ser amplamente utilizado nas relações
cotidianas, na educação e na administração pública. Ainda pior, foi a exclusão das línguas
maternas dos magrebinos: o árabe dialetal e o berbere. Podemos perceber que apesar de
diferenciadas. A Argélia foi o país que mais se empenhou em campanhas de arabização, que
ao fim, não se mostrou eficaz, pois até hoje os conflitos linguísticos permanecem.
3 - O cenário linguístico magrebino contemporâneo
Para introduzir a descrição linguística da região, faz-se necessária a apresentação de
alguns dados oficiais que nos indicam a configuração da população nos três países em
questão, além dos níveis de escolaridade e de acesso às línguas aqui estudadas. Vale lembrar
que o modelo escolar está fundamentalmente baseado no modelo francês, mas tendo como
estrutura pré-escolar instituições coranicas.
A Tunísia possui uma população de um pouco mais de 10, 5 milhões de habitantes7, onde 65,9% da população moram em áreas urbanas. O último censo, realizado em 2004,
indica que quase 2 milhões de habitantes são analfabetos, na sua maioria mulheres8. O sistema educativo tunisiano é dividido em três etapas: um ciclo de base (subdividido em dois níveis),
além do nível secundário e o nível superior. O mesmo censo nos informa que 37% da
população possuem o primeiro ciclo completo e 32% o segundo ciclo completo ou o
secundário, e apenas 7,9% possuem nível superior. Dados mais recentes do mesmo instituto
de pesquisa nos mostram que a Tunísia conta com 13 universidades públicas em todo o país e
revelam que no período de 2010-2011 se formaram no nível universitário 60.613 mulheres
para 35.660 homens9. O francês é ensinado na escola desde o primeiro ciclo, juntamente com o árabe clássico, porém aparece na grade escolar mais tardiamente como língua estrangeira.
7
Institut National de la Statistique - http://www.ins.nat.tn/indexfr.php (acessado em 6 de dezembro de 2011).
8
Idem 5 Ŕ Mesmo na capital Túnis, o número de mulheres analfabetas se mostra consideravelmente superior, sendo contabilizado um total de 37.275 homens analfabetos para 85.654 mulheres.
9
O Marrocos possui uma população de um pouco mais de 29 milhões de habitantes10, em que 58% moram em área urbana. A taxa de analfabetismo é de 43%. Do grupo de
indivíduos escolarizados, 50% possuem o ciclo básico, 21% o secundário e apenas 7,5%
possuem o nível superior. O ensino do francês também aparece já no primário, posteriormente
ao do árabe. Assim como na Tunísia, a língua é ensinada como língua estrangeira ao lado do
inglês.
A Argélia tem 36 milhões de habitantes11, sendo 66% habitantes de área urbana. A taxa de alfabetização é de 73%.12 Número relativamente alto se comparados aos outros dois países, o que demonstra o caráter mais contundente da política de arabização, sobretudo na
educação, implementada pela Argélia, após sua independência da França em 1962. O sistema
de educação argelino pode ser dividido em fundamental (3 ciclos), secundário e superior. Em
2005, o país tinha em torno de 6,5 milhões de indivíduos inscritos no nível fundamental,
caindo para 1 milhão no nível secundário e somente 750 mil inscritos no nível superior dentre
graduação e pós-graduação. O país conta com uma infraestrutura de um pouco mais de 50
instituições públicas de nível universitário. O francês é ensinado nas escolas juntamente com
o árabe, mas só aparecerá a partir do 3º ano do ciclo básico.
3.1 Ŕ A língua árabe
Definir o que é a língua árabe é tarefa difícil. Entretanto, não se pode pensá-la como
uma língua única a qual partilham milhares de pessoas no mundo, muito menos associá-la
somente ao Islã. No caso magrebino, trabalharemos com os seguintes conceitos para com o
que chamamos de árabe:
10
Haut-Comissariat au Plan: http://www.hcp.ma/ (acessado em 6 de dezembro de 2011).
11
Office National des Statistique: http://www.ons.dz/ (acessado em 6 de dezembro de 2011).
12
Árabe clássico Ŕ chamado de Al-fusha. língua do livro sagrado do Alcorão,
representante das tradições e valores religiosos da cultura mulçumana, e , portanto,
essencialmente escrita. Língua distante da realidade linguística das populações
magrebinas (equivalente à relação Latim-Português). O árabe clássico é o árabe
ensinado na escola, o que nos leva a dizer que, de fato, é a primeira língua
estrangeira encontrada pelo aluno na vida escolar.
Árabe standard moderno – Também podemos encontrar a expressão árabe literário. Variante “simplificada” do árabe clássico. Essencialmente escrita, além
de funcionalmente e linguisticamente diferente da língua do Corão. Podemos
considerá-lo como uma variante de prestígio, assim como o clássico, mas que não
traz consigo as relações religiosas atribuídas àquele. Suas inflexões são
simplificadas, apresentando alguns empréstimos lexicais de línguas estrangeiras,
assim como pouca inovação comparada ao árabe dialetal.
Árabe dialetal – Língua materna das populações magrebinas e segunda língua das
comunidades berberes. É a língua do dia-a-dia, falada na rua e em casa,
caracterizando-se como essencialmente oral. Esta variante não possui uma
norma-padrão definida em todo o mundo árabe. O árabe dialetal marroquino não é
compreendido pelo árabe dialetal egípcio, por exemplo, tamanho o distanciamento
das variantes de país para país. Por isso, podemos falar em “árabe tunisiano” ou “língua tunisiana”. É esta variante que dará conta da maioria das representações
identitárias dos grupos em questão.
A língua árabe é o maior exemplo do conceito de diglossia, amplamente discutido por
foi o linguista e arabista francês William Marçais em 1930, inspirado no modelo alemão. Para
ele, a diglossia é a concorrência entre uma língua escrita e codificada e uma língua vulgar
geralmente oralizada. Duas variantes que disputam espaço de realização. Em 1959,
Ferguson13, retomará o conceito de diglossia para se referir à língua árabe. Ele define diglossia como um fenômeno em que uma variante alta e uma variante baixa coexistem, no
caso, o árabe clássico e o árabe dialetal. A primeira é “alta”, pois está normatizada e codificada, associada ao Corão, além de ser a língua da tradição literária. A segunda é “baixa”, pois não é normatizada e codificada, fazendo parte das relações práticas do cotidiano.
A diglossia no Magrebe é anterior à colonização francesa. Na verdade, a região sempre
conheceu uma realidade multilíngue, com a presença secular e marcante de outras línguas, tais
como o italiano, o espanhol, o maltês e a língua franca. Esta última era utilizada,
principalmente, como língua de comércio em toda a extensão do mediterrâneo. As variedades
de árabe e as línguas berberes há muito já coexistiam antes mesmo da chegada dos franceses.
O que se discute atualmente, é que a língua árabe não teria apenas duas variantes em
concorrência, o que podemos verificar é um estado de triglossia e até mesmo de quadriglossia
da língua árabe. ENNADJI (2005) propõe as seguintes variantes para o árabe: clássico, standard moderno, dialetal e uma variante oral acadêmica, que ele chama de “Educated
Spoken Arabic14”. As três primeiras foram aqui anteriormente apresentadas. A quarta variante consistiria em uma variante alta coloquial que emergiu no espaço entre o árabe standard e o
falar dialetal, sendo utilizada por intelectuais em situações mais informais, como em debates e
entrevistas na rádio e na televisão, além de ser verificada nos discursos acadêmicos. Ela é
essencialmente utilizada na fala, mas com um grande vocabulário e expressões do árabe
standard.
13
Discussão publicada em artigo clássico de Ferguson - Diglossia - Word 15: p.325Ŕp.340, 1959.
14
3.1.1 Ŕ Variante clássica
O árabe clássico é uma língua aprendida na escola e essencialmente escrita. Variante
de alto prestígio, também pode ser encontrada na literatura clássica árabe, na poesia e nas
antigas gramáticas, simbolizando um conjunto de valores, histórias e tradições da cultura
árabe-mulçumana. A variante clássica é altamente associada aos valores religiosos, sendo a língua “utilizada por Deus para falar com os mulçumanos” (SANNEH, 1989 in ENNADJI,
2005):
“The author of the Qu‟ran, wich is God, thus came to be associated with its
speech, so that the very sounds of the language are believed to originate in heaven... Consequently, Muslims have instituted the sacred Arabic for the canonical devotions …”15
Língua usada como referência pelos nacionalistas nos movimentos de independência e
também no período pós-colonial como base para os novos projetos de nação. O ensino do
árabe clássico foi a o carro-chefe do projeto de arabização que desejava pôr fim a qualquer
presença deixada pelo colonizador. Com isso, foram organizados grandes programas de
educação gratuita e massiva, em que a variante clássica representava a consciência nacional e
promovia a unidade dos países da região. Atualmente, apesar de todos os esforços pelo seu
ensino, muitos magrebinos não têm domínio desta variante de prestígio. Os seus
conhecimentos são apenas passivos em relação a essa língua. O contato com o árabe clássico
se dá muito mais através dos discursos religiosos, não sendo capazes de escrever em árabe
clássico, ou se comunicar com proficiência. Algumas razões são apontadas como causa
(ENNADJI, 2005, p.53):
1) As vogais estão geralmente ausentes da escrita;
15Tradução nossa: “
2) Ela é uma língua aprendida na escola e usada apenas em sermões, cerimônias
religiosas e nos discursos formais do governo;
3) O árabe clássico tem uma morfologia e uma estrutura rígidas, caracterizado por vários
casos de flexão.
O árabe clássico é a língua que funcionou como língua de unidade e solidariedade no
período pós-colonial, solidificado político, social e culturalmente. Entretanto, não é a
língua materna da população de cultura árabe, muito menos de cultura berbere. Todos têm
que aprendê-la na escola a fim de atingir um grau de proficiência.
3.2 Ŕ A língua berbere
A língua berbere foi reconhecida pelos governos de Marrocos e Argélia apenas muito
recentemente, sendo incluída nas constituições como língua cooficial. Originalmente, o termo
berbere tinha um sentido pejorativo, pois servia para designar povos de cultura e línguas
diferentes pelos gregos, que os consideravam bárbaros e não civilizados. Atualmente, o
aspecto negativo da palavra perdeu força, representando todas as línguas e culturas berberes.
Entretanto, temos ainda o termo Amazigh ou Tamazigh para dar conta da definição dessa
cultura, que na própria língua significa “homens livres”. Cada região onde encontramos o berbere também costuma dar nomes à variante falada no local, como por exemplo na região
da Cabília, na Argélia, onde a língua berbere tem o nome desta região - língua kabyle.
Os falantes de berbere geralmente são multilíngues com o par berbere-árabe16 ou ainda o trio berbere-árabe-francês. Os casos de monolinguismo só podem ser encontrados em
comunidades rurais isoladas ou crianças pequenas, onde a escolarização não alcançou essas
16
populações. Para uma criança berbere, a escolarização é um grande choque cultural, pois ao
entrar em sala de aula, as línguas utilizadas pelos professores serão o árabe dialetal ou
standard, e ainda o francês. Sua língua materna não tem representação no processo escolar.
O mundo berberofone é extenso. Segundo (ENNADJI, 2005, p.72), o Marrocos
contabiliza 15 milhões de falantes de berbere; a Argélia conta mais de 6 milhões;
encontramos ainda 1 milhão de falantes entre Líbia, Mali e Niger. Algumas populações
isoladas no Egito, região de Siwa, somam em torno de 30.000 berberofones, ainda 100.000 na
Tunísia e 10.000 na Mauritânia. Apesar da expansão do árabe na região ao longo dos séculos,
as línguas berberes se mantiveram vivas por conta do isolamento cultural de muitas
comunidades, que têm como característica o fato de morarem em montanhas, longe dos
Mapa da distribuição berbere no norte da áfrica. Fonte: Le monde diplomatique em 1º de dezembro de 1994.
O berbere é uma língua estritamente oral, não possuindo uma norma-padrão
institucionalizada. Todavia, desde seu reconhecimento como língua reconhecida pelos países
magrebinos, a fim de ensiná-la nas escolas, o alfabeto histórico berbere17 foi resgatado para a sua codificação. Este fato gerou debates e dúvidas sobre a pertinência do uso desse alfabeto
na vida contemporânea e seus diversos suportes de escrita. Os textos contemporâneos, e
mesmo os mais antigos, em berbere são geralmente escritos com o alfabeto árabe, o alfabeto
17
fonético internacional ou em caracteres latinos. A discussão gira em torno da problemática da
identidade cultural e linguística. O alfabeto berbere resgataria e afirmaria a identidade dessas
comunidades por tão longo tempo oprimidas, entretanto não seria produtivo em suportes
modernos como a Internet ou aparelhos de comunicação. Outra discussão é a dificuldade no
processo de alfabetização de crianças berberes, que teriam que aprender 3 sistemas de escrita
completamente diferentes: a escrita Tifinagh, a árabe e a latina para o francês. Se a escrita
árabe fosse utilizada para a codificação do berbere, poderia configurar numa continuação do
estado de opressão dessa cultura, assim sendo também se adotassem a escrita latina. A escrita
latina apresenta a seu favor o fato de ser uma escrita internacionalmente difundida, o que
poderia permitir ao berbere, segundo a visão de alguns críticos, maior força de
reconhecimento e status.
Podemos observar a língua berbere sendo usada nas relações familiares, no campo, nos
pequenos comércios, nas canções, na literatura oral e na poesia. Entretanto, ENNADJI (2005,
P.76) aponta um recuo desse espaço exclusivamente berberofone, especialmente nas áreas
urbanas, o que estaria mudando as atitudes linguísticas dos indivíduos, que estão se
expressando cada vez mais em árabe dialetal do que em berbere. Este fato estaria
transformando as relações linguísticas, evidenciado por uma menor fluência no idioma pelas
crianças e jovens. Por isso, a grande luta pelas associações pró-berbere pela implementação
do ensino da língua nas escolas e pela valorização de seu status dentro da sociedade. A língua
berbere é vista como a língua de minorias, apesar da sua população expressiva, ou ainda,
como língua atrasada, pois não é usada no setor financeiro, na mídia, nas ciências, na
tecnologia ou em outros setores que caracterizam a modernidade. O que a faz ser tratada como um “dialeto” menor e não como a língua de muitos. A falta de prestígio faz com que
muitos pais não a usem com seus filhos, prejudicando assim sua transmissão. O berbere
são usadas nas relações familiares e em situações informais. Diferentemente do árabe
clássico, standard ou do francês que são línguas associadas ao mundo da escrita, cumprindo
funções sociais muito distintas.
Existem pelo menos 10 variedades de berbere, incluindo variantes em que não existe
intercompreensão, devido às suas distâncias geográficas e a falta de um sistema de escrita
único que poderia facilitar a comunicação entre elas. Apesar de possuir muitos empréstimos
do árabe dialetal, os sistemas fonológicos e morfossintáticos das duas línguas são muito
distintos. Podem-se verificar também muitos empréstimos lexicais do francês e suas
respectivas adaptações ao quadro fonético berbere.
Atualmente, os objetivos principais das associações em defesa do berbere são o de
elevar o status da língua ao de língua nacional, e não apenas cooficial, além do movimento de
codificação e normatização de uma variante padrão para o ensino do berbere nas escolas para
as gerações que já estão perdendo o contato com a língua materna de seus antepassados. Estas
associações podem ser encontradas tanto no Maghreb quanto na França18.
3.3 Ŕ A língua francesa
No período colonial, a língua francesa era o único idioma oficial do Magrebe. Para
atender aos seus interesses, as lideranças imperialistas trouxeram funcionários para suprir a
demanda linguística de suas atividades. Em seguida, implementaram um sistema educacional
idêntico ao modelo do país colonizador para educar uma estrita elite magrebina, que assumiria
esse papel. A maioria da população continuaria analfabeta e sem acesso à escolarização.
Após a independência, o árabe clássico passou a ser a língua única oficial e o francês
ocupou a função de uma língua segunda. Seu status real não era e não é (atualmente) o de uma
18
Alguns sites de referência: http://www.acbparis.org/ (Association de Culture Berbère)
http://www.cbf.fr/ (Réseau citoyen des Associations Franco Berbères)
língua somente estrangeira, pois são atribuídos a ela papéis extremamente funcionais dentro
da sociedade magrebina. O francês ocupa um lugar de prestígio na mídia, na educação e na
administração, sendo relevante cultural e economicamente. Na administração pública
concorre com o árabe standard, sobretudo, na escrita.
O contato de línguas no Magrebe permitiu que o francês utilizado na região ganhasse
características próprias. Em contrapartida, o francês do bon usage e elitista também
permaneceu como um modelo de prestígio e conservadorismo. BENZAKOUR (2010), propõe
uma descrição de 3 tipos de francês19, que expressam as diferentes camadas sócio-econômico-culturais da região: francês basiletal, francês relativo à elite e francês mesoletal. Assim como
as variedades de árabe e berbere apresentadas anteriormente, a língua francesa não escapa à
regra. Em um contexto multilíngue, onde o contato linguístico é uma constante, a variação
também se fará fortemente presente.
3.3.1 Ŕ O francês basiletal
O francês é caracterizado como uma língua da escola, pois é através dela que ele será
ensinado e veiculado. Sendo a escola uma instituição de caráter muito mais urbano, muitos
indivíduos não tinham acesso ao ensino do francês. Entretanto, isso não significava que a
língua francesa não estaria presente em suas vidas, o que lhes obrigava um esforço
comunicativo nessa língua. Após algumas décadas, é reconhecida pelos linguistas, uma
variedade de francês aproximativo com fins comunicativos falados por arabófonos que
tiveram acesso à escolarização. Esta variedade se apresenta muito limitada em termos
funcionais e ainda muito reduzida dentro da dinâmica das trocas sociais.
19
3.3.2 Ŕ O francês relativo à elite
O francês relativo à elite se caracteriza como o francês considerado de “qualidade”, aprendido pelas elites magrebinas através de uma educação em escolas de regime francês ou
nas escolas da própria França. Variante de prestígio falada por uma elite urbana que vive em
francês: viagem de férias na França ou em países francófonos, acesso aos canais franceses
pela televisão paga, acesso às mídias francesas e leitura de publicações em francês (jornais e
livros).
Esta variante está presente no mercado de trabalho moderno, nas diretorias de
empresas privadas ou é a língua dos gestores públicos, sendo também a língua que veicula os
conhecimentos científicos e as novas tecnologias. Ou seja, somente uma pequena parcela da
população tem acesso a essa variante do francês, ainda mais que, para atingir sua proficiência,
exige do indivíduo um investimento intelectual e financeiro muito grande para os padrões da
maior parte da população. Apesar de seu prestígio, podemos perceber sua marginalização na
sociedade magrebina. Primeiramente, por não se tratar de um bem coletivo. Outro fator que
contribui para a sua marginalização é o acesso, cada vez maior, de uma classe trabalhadora
urbana à educação superior, e consequentemente ao ensino da norma-padrão da língua
francesa. Esta variante está muito restrita a uma minoria da população.
3.3.3 Ŕ O francês mesoletal
Esta variante do francês é marcada essencialmente pelo evento do contato linguístico
entre o francês e o árabe, onde podem ser notados empréstimos lexicais do árabe, sotaques
próprios e neologismos que expressam particularmente referências da cultura magrebina. Ela
evidência forte de sua existência pode ser comprovada através da publicação de uma circular
no diário oficial do Marrocos, em que o governo exige dos seus setores administrativos a
utilização, nas correspondências internas e externas dos ministérios, unicamente, da língua
árabe. Entretanto, as trocas informais acontecem em francês, e as formais, apresentam
constantemente um bilinguismo francês mesoletal-árabe moderno.
3.4 Ŕ A relação francês-árabe
O francês da norma-padrão e o árabe clássico são aprendidos por minorias, pois são
línguas aprendidas na escola. Elas concorrem no espaço da escrita, possuindo funções
similares neste aspecto, mas se constituem como línguas ideologicamente divergentes. O
árabe clássico é a língua da literatura antiga e da religião, marcada pelo livro sagrado do
Corão. O francês, como já dito, é a língua que expressa a modernidade.
O sistema de escolarização privilegia o ensino do árabe clássico, enquanto as empresas
privadas destacam como língua de uso o francês, o que acarreta problemas para os indivíduos,
sobretudo, migrantes das áreas rurais e que desejam encontrar emprego nas cidades. O
confronto dessas práticas linguísticas evidencia mais uma vez as funcionalidades das duas
línguas nessas sociedades, além das ideologias em disputa - conservadorismo x modernidade.
Na educação ocorre o mesmo embate, sendo geralmente o ensino das disciplinas científicas
em francês. O fator econômico também influencia as relações aqui apresentadas, pois a
França é o maior investidor em cooperações educacionais, científicas e tecnológicas no
Magrebe.
O francês tem espaço privilegiado no mercado linguístico magrebino, pois sua
presença é efetiva em vários setores da sociedade. Outros fatores contribuem para sua
principalmente a França, mantendo constantes trocas econômicas e sociais entre os países em
questão. Na França, há mesmo uma modalidade de francês falado nomeada “beur”, que em
língua popular significa árabe ao contrário, com cultura própria, produção de música e filmes,
que muito influencia os jovens no Magrebe.
No caso marroquino, os canais pagos de televisão francesa são extremamente
populares em várias cidades do país. Ou seja, os novos meios de comunicação e
telecomunicação permitem também outros espaços para a presença da língua francesa nas
LÍNGUA E NAÇÃO
4 - Do Génie des langues às Comunidades Imaginadas: a relação entre língua, nação e Estado.
Para se discutir a relação contemporânea entre os conceitos de língua, nação e Estado,
é interessante buscar a sua origem ao longo do tempo, investigando como a concepção de
língua sempre esteve muito relacionada aos grupos sociais, às suas práticas políticas e à
identificação dos indivíduos com suas comunidades. As definições do conceito de nação e do
conceito de Estado também serão discutidas neste capítulo a fim de melhor entender a
construção de um projeto de identidade nacional pelos países, principalmente ao longo dos
séculos XIX e XX na Europa ocidental.
Inicialmente, será apresentado o conceito de génie, termo francês para designar uma
essência própria e inata às línguas e que se manifestaria através de suas estruturas como um
conjunto de características estéticas e morais particulares.
Em seguida, os conceitos de nação e Estado - e suas práticas através da relação
Nação-Estado- serão estudados na tentativa de compreender sobre que discursos os Estados elaboram
seus projetos de nação e como e por quais meios se dá a construção das identidades nacionais.
Por fim, a discussão será aplicada ao estudo de caso aqui investigado, com o objetivo
de entender como os países magrebinos desenvolveram seus projetos de nação pós-coloniais e
quais os papéis atribuídos às línguas árabe, berbere e francesa nesse contexto.
4.1 ŔA ideia de um “génie” e a concepção de língua
No século XIII, o escritor Dante Alighieri já evocava em seus escritos a existência de
muitos “falares vulgares” italianos o que poderia, na sua opinião, representar o papel do que chamou de “vulgare illustre20”, o falar do povo que bem configurasse características muito
particulares e essenciais da sua gente. O Latim Clássico nessa época ainda era a língua da
cristandade ocidental e de prestígio, entretanto já perdia força e espaço para os chamados “falares vulgares”, oriundos de um latim “mal falado” por aqueles que não faziam parte de
uma restrita elite intelectual. Apenas no Renascimento é que a individualidade das línguas
será um tema mais investigado e discutido, ganhando forma a ideia de idioma. Esse período
humanista se interessará pelas diferenças culturais entre os homens e novas camadas sociais
que não falavam o Latim começarão e também escreverão em língua vulgar e materna. Uma
perspectiva completamente nova na época, representando uma grande mudança do ponto de
vista linguístico e social. A Europa ainda se confrontará com novas realidades linguísticas e
coloniais encontradas nas Américas e na Ásia com as grandes navegações.
Nesse período, a individualidade das línguas ou “idiomas” será configurada como um conjunto de qualidades estéticas e morais. Ao latim clássico estavam relacionados os valores
de nobreza, clareza, beleza, honestidade e graça. Du Bellay, em seu livro “vulgarisme humaniste”21, diz que as línguas possuem um je ne scay quoy (je ne sais quoi22), considerando a língua francesa a primeira língua vulgar à qual seria atribuída uma
personalidade particular e qualidade estética superior ao mesmo tempo. A expressão génie de
la langue só entrará em vigor no século XVII, fazendo sua primeira aparição em um discurso
na Academia Francesa, recentemente fundada, em 1635. O termo génie, empréstimo latino,
designa uma qualidade espiritual inata e uma criatividade particular da língua e não própria
aos seus locutores.
20
TRABANT in: MESCHONNIC, 2000.
21
Idem nota 4
22
Até então o génie de uma língua era tratado somente como uma impressão de
intelectuais, mas na primeira metade do século XVII, Condillac, filósofo francês, introduz o
tema através do discurso científico, tentando capturar a essência da língua de maneira objetiva
e estrutural, desejando dar fim à abstração e à impressão que representavam o termo e
precisá-la linguisticamente. John Locke também discursou sobre o assunto, considerando que a língua
influenciaria nosso modo de ver o mundo e, como filósofo, deveria “lutar” contra esta nuvem que encobre os olhos diante da “verdade universal”. Condillac não se deixa influenciar por
esses dois discursos em vigor na época - o conceito impreciso de génie e as inquietações
filosóficas em busca da verdade Ŕ e decide investigar objetivamente o conceito. Ele tenta mais claramente definir o lugar linguístico do génie de uma língua e explicitar quais traços
permitiriam reconhecer a sua individualidade. O discurso em vigor na época atribuía à língua
francesa qualidades tais como doçura dos sons, claridade dos conceitos e das construções
sintáticas e a vivacidade de estilo. Condillac tentou definir mais precisamente o lugar
estrutural do génie, argumentando que ele estaria dividido em duas partes: na sintaxe das
frases (sua organização) e, sobretudo, na semântica, cada língua teria em particular uma
combinação de ideias que a diferenciaria das outras. Suas conclusões não nos apontam
definições contundentes, mas se mostraram um marco decisivo para com uma objetivação
mais linguística sobre as línguas a partir de um caminho mais descritivo de suas estruturas das
línguas. Tema esse que será caro ao linguista alemão Humboldt no século XIX.
Humboldt, por sua vez, preconizou o estudo de todas as línguas do mundo a fim de
melhor conhecer o espírito humano, pois a investigação da riqueza da alma humana, ao
contrário do que pensava Locke, seria condição para se descobrir a verdade. Ou seja, visões
variadas do mundo nos levariam ao conhecimento da verdade universal.
personalidade consistiria em uma individualidade misteriosa. A estrutura, termo utilizado
também pelos linguistas modernos, é descritiva, a fim de se atingir a personalidade. Mas ela
também teria algo de natural, pois a organização dos termos e das frases obedece a leis
autônomas. A língua se impõe forte às gerações como um conjunto de leis e padrões que os
indivíduos herdam da coletividade. Mas mesmo sendo uma herança do grupo social, da nação,
o falante pode mudar a língua que fala, podendo ir contra esta força de imposição. Para
Humboldt, esse confronto com a força da língua do grupo social é que daria personalidade a
ela, como acontece com os escritores e seus grandes textos, os filósofos e os cientistas. O
confronto não cria abismos, mas sim uma ação recíproca entre o indivíduo e esta força. Por
isso, Humboldt diz que a estrutura é o aspecto exterior da língua e a sua personalidade é
interna, sendo a gramática e o dicionário somente “o seu esqueleto morto”. Assim, para ele, a língua só é viva no seu uso, o que lhe dá personalidade. O objetivo maior do estudo das
línguas seria os textos literários, dividindo as investigações em dois domínios: a linguística
(para as línguas vivas) e a filologia (para as línguas mortas), nascendo então uma visão um
pouco mais próxima das áreas de estudos linguísticos que temos hoje. Entretanto, a tônica da
Linguística do século XIX foio trabalho histórico-comparativo entre línguas, descrevendo-as
e classificando-as a partir de seus traços estruturais comuns, construindo famílias genéticas
como a das línguas indo-europeias, diferentemente do trabalho de busca do que era peculiar e
próprio às línguas. A busca pelos traços individuais começou a ser vista como um trabalho
subjetivo e pouco científico.
O conceito de língua não é algo fácil de ser definido, pois muitos são os
questionamentos e pontos de vista sobre esta abstração que nomeamos “língua”. A primeira observação a seu respeito sempre parte da condição de sua natureza dupla - biológico ou
cultura, fazendo-a um objeto de estudo tão complexo em que é difícil a separação do que é
inevitavelmente fazemos um recorte dentro das suas infinitas complexidades e, assim,
atribuímos a este recorte uma personalidade, como afirma BAGNO (2011, p.357):
“Não há remédio: para se falar de uma língua, é preciso construí-la, fabricá-la, forjá-fabricá-la, dar um nome a efabricá-la, atribuir-lhe propriedades, características, personalidade, índole. E esse é um trabalho empreendido não somente pelo linguista, em suas pretensões de objetividade científica, mas também (e talvez sobretudo) pelos falantes comuns, em suas práticas de higiene verbal, de mitificação e mistificação coletiva dos bens simbólicos, de construção do imaginário social acerca da própria cultura a que pertence e dos mitos de
origem que lhes dão raízes históricas e memória comum.”
Uma língua é sempre dinâmica, variável e flexível dentro da intimidade de uma
comunidade, sendo transformada em uma instituição digna de culto e adoração ao passar por um processo de padronização, que a retira de seu estado “natural”. A construção de uma
norma-padrão é limitada, unificadora e homogeneizante, pois estabelece leis e códigos de
conduta, tendo por símbolos maiores a gramática e o dicionário, além da escola como
principal vetor de difusão. A partir disso, a língua em si é confundida com a norma-padrão,
perdendo o seu caráter variante e livre, identificando-se como algo exterior ao indivíduo23. A escolha da norma-padrão parte de critérios políticos que se ajustem ao projeto
político de uma sociedade, sendo geralmente a língua falada na região onde se concentra o
poder que ganhará status de língua oficial de um país. Ela será objeto de uma codificação,
tornando-se assim um construto social associado a um grupo e seu território. Ela também será
confundida com o vernáculo e será chamada de variante, mas em seu princípio está a
estagnação de um modelo de correção linguística que precisa ser seguido e adorado como
objeto. A sua relação com o poder é clara e evidente, sendo parte integrante e declarada de um
projeto político.
23
“A relação entre língua e poder não se oculta, não se dissimula. Pelo contrário, se declara explicitamente: „A língua sempre foi companheira do
império’[...] o projeto da gramática é claramente político[...]”24
Línguas como o inglês, o francês e o alemão passaram por um alto nível de
padronização, extremamente idealizado. A padronização dificulta a compreensão de que
língua é algo muito mais fluido e instável do que se pensa. A cultura do monolinguismo é
resultado desse processo homogeneizador e vai de encontro com a necessidade da nação de
criar uma coesão identitária, através da legitimação da norma convencionada. MILROY
(2011,p. 76-77):
“[...] tenho de passar a considerar uma característica essencial da própria
ideologia Ŕ a necessidade de mostrar que a língua padrão é uma variedade legítima da língua. É um dos aspectos mais interessantes da ideologia, sobretudo porque essa legitimidade tem sido construída, não apenas por meio do consenso na população geral, mas pelos esforços dos próprios linguistas profissionais.
A valorização de uma variedade dita padrão leva necessariamente a desvalorização de
outras variedades, considerando-se a primeira legítima e a outras ilegítimas. Ao se associar a
norma-padrão ao Estado-Nação25, o prestígio daquela será realizado através de uma historicização. Atribui-se à língua uma história respeitável, uma ancestralidade, um continuum
ao longo do tempo, o que teria permitido o seu cultivo e lapidação. É imaginada também uma
pureza, evitando sua degradação-corrupção, sendo apenas os empréstimos aceitos para
mostrar o seu caráter “flexível”. É a partir dessas premissas, que o árabe será resgatado nos projetos de nação pós-coloniais do Magrebe a fim de afastar toda a presença colonial francesa
e restituir, assim, uma cultura dita original. Como se esta não fosse passível de influências
geradas pelo contato linguístico-cultural no período colonial, ou mesmo ao longo de sua
existência.
24
BAGNO (2011, p.369) Ŕ o autor cita a gramática castelhana de Nebrija (1492) como exemplo de projeto político na reconquista da península ibérica pelos espanhóis e na conquista de novas terras no período das grandes navegações.
25
A língua árabe se apresenta como um claro exemplo de confusão entre a norma-padrão
e a ideia de língua dinâmica e variável. O que chamamos de árabe está fundamentado na
língua escrita e no livro sagrado do islamismo (árabe clássico), não sendo a mesma língua da
vida prática dos indivíduos, e nem sequer a mesma de um país ao outro. A sua nomeação
como uma única língua faz parte da construção de uma identidade de uma irmandade árabe,
que se pensa como única, partilhando crenças e valores, apesar das enormes diferenças e
distâncias do ponto de vista linguístico. Quebrar essa visão é romper com uma unidade
política e com mitos de origem que fundam a nação.
As línguas em suas formas padrão foram configuradas ao mesmo tempo em que os
Estados-Nações também foram sendo criados, servindo como ligação entre os seus cidadãos e
como identidade para se diferenciar das outras comunidades.
4.2 - A formação do conceito de nação e de Estado
É necessário fazer a separação dos conceitos de Estado e nação e os diferentes sentidos
atribuídos aos dois dentro da tradição jurídica. LAGARDE (2008, p.70) define o Estado como
uma estrutura essencialmente administrativa operada em um dado território, sendo articulado
verticalmente Ŕ hierarquizado Ŕ e horizontalmente Ŕ extensão do poder a todos os domínios e pontos do território. A nação se define sobre outra lógica. Ela é fundamentalmente uma
coletividade de indivíduos com a “vocação” de se organizar e assentada em um dado território. Esta é uma visão bem clássica sobre o conceito, pois o assentamento em um
território não é regra geral. A palavra nação vem do latim natio, que está ligada também à
nascere, ou seja, sua essência tem a ver muito mais com uma ideia de filiação genética.
Ainda para LAGARDE, cabe ao Estado operar os diferentes dispositivos necessários
dos interesses da nação, de onde ele tira Ŕ segundo o modelo francês Ŕ sua legitimidade. Assim, temos uma nação para cada Estado, ou seja, uma configuração da relação
Nação-Estado.
O autor também apresenta três tipologias possíveis de nação dentro da tradição
jurídica:
1) A nação política que repousa sobre a vontade política comum de partilhar um destino em
comum;
2) A nação cultural que se funda sobre a etnia, a cultura, a língua e pelas raízes comuns;
3) A nação jurídica que consiste na reunião de pessoas que estão ligadas pelo direito ao Estado.
A interação entre os três tipos geram quatro modelos possíveis:
A) Se as três definições coincidem, tem-se um Estado nacional coeso;
B) Quando a nação jurídica coincide com a nação cultural, mas não com a política, tem-se um ar
nacionalitário compreendendo mais de um Estado;
C) Se a nação jurídica e a política coincidem, mas não a cultural, tem-se um Estado plurinacional
que apresenta aspectos conflituosos;
D) Se a nação jurídica não coincide com nenhuma das duas outras, tem-se um estado
plurinacional estável.
Segundo o autor, as relações aqui apresentadas podem mudar de acordo com as dinâmicas
políticas internas de cada comunidade, não configurando assim em modelos estáticos.
Entretanto, podemos contestar as suas apreciações no que se refere à estabilidade e à coesão,
ou ainda à instabilidade em função da homogeneidade dos caracteres de um estado nacional,
pois os conflitos sociais, as lutas de classe nesse cenário e os antagonismos identitários foram
completamente ignorados. Na nossa visão, o Estado moderno deve ser o que garante o direito
O caso magrebino poderia ser pensado a partir de dois modelos: Argélia e Marrocos se
aproximariam do caso C, pois apesar dos interesses políticos comuns desses países, pelo
menos dois grupos estão em conflito nos seus cenários linguístico-culturais Ŕ a comunidade árabe e a comunidade berberofone. A Tunísia, como possui uma comunidade cultural e
política mais homogênea segue próxima ao modelo A, apresentando mais coesão na sua
tipologia como nação. Este modelo também se refere ao caso da França, em que a relação
Nação-Estado se presume finalizada.
O prestígio do Latim como língua sagrada e elitista começa a mudar verdadeiramente
a partir do século XVI, apesar de uma distinção já bem evidente entre um latim culto e aquele
usado na vida cotidiana ainda no Império Romano. Porém, a convergência de diversos fatores,
entre eles o da Reforma religiosa, contribuiu enormemente para que os vernáculos ganhassem
espaço, sobretudo na impressão dos textos sagrados e nos textos oficiais e administrativos.
Foi a tradução da bíblia para um falar médio, ou seja, para uma língua que fosse de fácil
leitura para uma grande parte dos potenciais leitores (com suas diversas variantes e
vernáculos) do mercado editorial europeu, que permitiu uma valorização e consolidação dos
falares ditos vulgares. A impressão de livros foi uma das primeiras empresas capitalistas de
grande sucesso na Europa ocidental. Em paralelo, desde o Renascimento, as monarquias
começam a utilizar os vernáculos nos escritos administrativos, mas essas línguas ainda não
tinham o caráter nacionalista que possuem hoje. A concepção de Estado Nacional só se
consolidará em meados do século XVIII e início do XIX. O declínio do latim como língua de
prestígio, os vernáculos que começam a ganhar terreno e a busca de um mercado mais amplo
de leitores influenciaram decisivamente a possibilidade de se imaginar a Nação. As
variedades de línguas começam a ganhar prestígio, tornando-se de extrema importância com a
No século XIX, com a nova configuração sociopolítica que se estabelece entre um
Estado central e seus cidadãos na Europa ocidental, aquele se servirá da língua para criar um
meio de aproximação e de pertencimento à Nação, assim como tomará decisões sobre a língua
para o que se refere à administração pública. Para isso, os Estados precisaram criar símbolos,
tradições, folclores que justificassem e alimentassem o sentimento de pertencimento à Nação
por seus habitantes. Assim, uma ampla generalização e unificação linguística foram realizadas
por alguns Estados europeus nesse período, sobretudo a França (modelo de inspiração),
através da opressão das variantes e línguas regionais e a imposição de uma língua única e
oficial que representaria a todos. A escola obrigatória foi o principal canal para a realização
desse processo, com a finalidade de expandir o bom uso da língua, permitindo o surgimento
de gramáticas e dicionários baseados na língua escrita, modelo de correção linguística.
Segundo BEREMBLUM (2003, p.41):
“A cidadania podia ser conquistada pela adoção da língua unificada, nacional, oficial. Assim, a língua tornou-se um elemento essencial na
construção da nacionalidade”.
Na verdade, não era o uso da língua francesa que tornava a pessoa um francês, mas
sim a voluntariedade de utilizá-la, como uma atitude cidadã de pertencimento à Nação. Para o
cientista político Benedict Anderson, a nação é uma comunidade política imaginada, soberana
e limitada, consequência de uma visão capitalista editorial, onde a língua, assim como outros
fatores (território, religião e raça) será o ponto de coesão que sustentará o mito de uma
unidade (ANDERSON, 2002,p.57):
“nous pouvons dire que la convergence du capitalisme et de la technologie