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CAPITULO 1. A MULTIVOCALIDADE NO CENÁRIO DA ARQUEOLOGIA

1.4 ÉTICA

Ética não são regras a serem seguidas, ou seja, executadas. São ideais e princípios orientadores a partir dos quais se procuram formas de agir e responder a situações reais, com previsão, precaução e atenção aos diversos interesses e formas de conhecimento. Ética é um campo da filosofia, referente à moral. Não se refere apenas à decisão de punir e coibir, para o que de modo geral existe a lei.

No campo da arqueologia é comum associar as dimensões éticas e não éticas no desenvolvimento das suas práxis. De modo óbvio a arqueologia toca em assuntos práticos de natureza ética, precisamente por sua relação com a identidade e com a existência de comunidades, de nações e do próprio gênero humano. Na maioria das vezes são problemas complexos, no sentido de gerenciar os conflitos (RENFREW e BAHN, 1996:548).

Internacionalmente os membros da Word Archaeological Congress – WAC entenderam a responsabilidade que tem com os povos tradicionais, devendo, portanto, respeitar princípios éticos no desenvolvimento das pesquisas em seus territórios. Criaram, contudo, um ponto de vista de valores e responsabilidades para tomar decisões a respeito de como agir ou reagir a situações particulares. Esse código de ética pode ser considerado um guia para todos

os arqueólogos do mundo – visto que foi aprovado pelo Conselho WAC em 1990 no WAC-2 em Barquisimeto, Venezuela, que reuniu cientistas de todo o mundo.

O texto redigido (traduzido aqui do inglês) destaca que todos (os membros) devem considerar os seguintes princípios:

1. Reconhecer a importância do patrimônio cultural indígena, incluindo sítios, lugares, objetos, artefatos, restos humanos, para a sobrevivência das culturas indígenas;

2. Reconhecer a importância de proteger o património cultural indígena para o bem-estar dos povos indígenas;

3. Reconhecer a importância especial dos restos ancestrais indígenas humanos e sítios que contenham e / ou estejam associados a esses restos, para os povos indígenas;

4. Reconhecer que a importante relação entre os povos indígenas e seu património cultural existe independentemente da propriedade legal;

5. Reconhecer que a herança cultural indígena pertence aos descendentes indígenas desse património;

6. Para reconhecer metodologias indígenas para a interpretação, curadoria, gestão e proteção do patrimônio cultural indígena;

7. Para estabelecer parcerias e relações equitativas entre os membros e os povos indígenas cuja herança cultural está sendo investigado;

8. Para buscar, sempre que possível, a representação dos povos indígenas em agências de fomento, ou autorizar a pesquisa para ter certeza de seu ponto de vista, é considerado como extremamente importante no estabelecimento de padrões de pesquisa, perguntas, prioridades e metas (WAC, 1990).

O estabelecimento deste código de ética determina o que todo pesquisador deve considerar antes, durante e depois das suas investigações. O cerne deste código está na negociação da anuência das comunidades tradicionais para o desenvolvimento das pesquisas, respeitando seja qual for o seu posicionamento, assegurando sempre que os membros da comunidade sejam informados do passo a passo da pesquisa. Esclarece ainda a importância da participação integrada de membros da comunidade nas diversas etapas da pesquisa - por meio de treinamentos e formação técnica, entre outros. Enfatiza que os membros não devem interferir e/ ou remover artefatos ou objetos de importância cultural especial, sobretudo quando se referir aos restos humanos de ancestrais sem a expressa autorização. O documento deixa claro que o novo código de ética não deve ser tomado de forma isolada e pode ser seguido por não membro da WAC. (WAC, 1990).

A Society for American Archaeology (SAA) definiu 8 itens fundamentais dos princípios éticos: Responsabilidade; Prestação de Contas, Comercialização; Educação Pública e divulgação; Propriedade intelectual; Registro público e publicação; Registro e preservação; Treinamento e Recursos. Fornecemos um detalhamento no quadro a seguir:

Princípios Éticos Descrição

Responsabilidade O registro arqueológico, que são os sítios e matérias arqueológicos in situ, coleções, registros e relatórios, são insubstituíveis. É responsabilidade de todo arqueólogo trabalhar pela sua conservação e proteção pela prática e promoção da gestão do registro arqueológico. Como responsáveis, são tanto cuidadores como defensores do registro arqueológico, pelo bem de todos os povos. Na medida em que investigam e interpretam os registros, eles devem usar seu conhecimento especializado para promover, assegurar a compreensão do público e o apoio para sua preservação em longo prazo.

Prestação de Contas

A pesquisa arqueológica responsável, que inclui todos os níveis de atividade profissional, exige um aceite público de prestação de contas, e um compromisso de fazer todo o esforço razoável, e de boa fé, para consultar ativamente todos os grupos afetados, com o objetivo de acertar um processo de trabalho satisfatório para todas as partes envolvidas.

Comercialização A Sociedade para a Arqueologia Americana já reconhece, há longo tempo que a compra e venda de objetos retirados do contexto arqueológico contribui para a destruição do registro arqueológico nos continentes Americanos e em todo o mundo. A comercialização de objetos arqueológicos – seu uso como mercadorias para gozo pessoal ou lucro – resulta na destruição de sítios arqueológicos e informação contextualizada essencial para a compreensão do registro arqueológico. Arqueólogos devem por esta razão pesar cuidadosamente os benefícios acadêmicos de um projeto contra os custos de potencialmente incentivar a valorização dos objetos arqueológicos. Sempre que possível eles devem

desencorajar e, se possível evitar eles próprios, atividades que aumentem o valor comercial de objetos arqueológicos, especialmente aqueles que não estejam curados em instituições públicas, ou facilmente disponíveis para estudo científico, interpretação pública e exibição.

Princípios Éticos Descrição

Educação Pública e Divulgação

Em particular os arqueólogos devem envidar esforços no sentido de: 1. alistar suporte público com a finalidade de responsabilizar- se pelo registro arqueológico. 2. Explicar e promover o uso de métodos arqueológicos para melhorar a compreensão do comportamento e da cultura humana. 3. Comunicar as interpretações arqueológicas sobre o passado. Muitos públicos existem para a arqueologia, incluindo estudantes e professores, nativos americanos, e outros grupos étnicos, religiosos, e culturais que consideram o registro arqueológico importante para sua herança cultural, legisladores e pessoal do governo, repórteres, jornalistas e outros envolvidos nas comunicações, além do público em geral. Os arqueólogos que não estejam diretamente habilitados à educação pública e divulgação devem incentivar e dar suporte financeiro para que outros o façam.

Propriedade Intelectual:

A propriedade intelectual, como a que está contida em documentos e no conhecimento criado a partir do estudo das fontes arqueológicas, é parte do registro arqueológico. Como tal deve ser tratada de acordo com os princípios de mordomia e não como propriedade privada. Na condição de haver uma razão importante, e nenhuma restrição legal ou fortes interesses contrários, um pesquisador deve sempre ter acesso livre a materiais originais e documentos por tempo limitado e razoável, após o qual estes materiais e documentos deverão estar disponibilizados para outros.

Registro Público e Publicação

Dentro de um prazo razoável de tempo, o conhecimento adquirido pelo arqueólogo a partir de suas investigações e registros arqueológicos, deve ser tornado acessível (através de publicações ou outros meios) ao mais amplo espectro de públicos interessados. Os documentos, materiais e outras formas de relatórios públicos em que se baseiam as publicações, devem ser depositados em lugar acessível para guarda permanente. O interesse em preservar e proteger sítios arqueológicos in situ devem ser tomados em conta quando publicadas ou distribuídas as informações sobre sua natureza e localização.

Registro e

Preservação:

Os arqueólogos devem atuar ativamente pela preservação e acesso em longo prazo, às coleções arqueológicas, registros e relatórios. Para este fim devem incentivar colegas, estudantes e outros a fazer uso responsável das coleções, registros e relatórios como meio de preservar os registros arqueológicos in situ, dando atenção crescente àquela parte do registro arqueológico que tenha sido removida e incorporada às coleções arqueológicas, registros e relatórios.

Treinamento e Recursos

Dada a natureza destrutiva da maior parte das investigações arqueológicas, os arqueólogos devem se assegurar de ter treinamento adequado, experiência, equipamentos e outras condições necessárias à condução de qualquer programa de pesquisas que iniciem, de maneira consistente com os princípios e padrões profissionais vigentes para essa prática profissional.

Tabela 2: Princípios éticos da SAA. Fonte: Adaptado e traduzido de Principles of Archaeological Ethics, 1996.

A experiência internacional, em especial o código de ética da Society for American Archaeology (SAA) e o da Associação Brasileira de Antropologia motivou, na década de 80, a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) a esboçar a primeira minuta de criação de um código de ética para a arqueologia brasileira, definindo quais seriam as práticas moralmente adequadas. Depois disso, o assunto foi avançando por meio de várias reuniões até chegarem à compilação de um documento comum (vide detalhamento no quadro).

Princípios Descrição São direitos dos

Arqueólogos:

1.1 - O direito ao pleno exercício da pesquisa e acesso às fontes de dados, bem como à liberdade no que se refere à temática, à metodologia e ao objeto de investigação;

1.2 - O direito de autoria sobre os projetos e resultados de suas pesquisas, mesmo quando executados a serviço de órgãos públicos ou privados;

1.3 - O direito à proteção contra a utilização indevida de projetos e resultados de pesquisas, sem a necessária autorização ou citação;

1.4 - O direito de se recusar a participar de trabalhos que contrariem seus princípios morais, éticos, religiosos ou científicos.

São compromissos dos arqueólogos:

2.1 - Com o seu objeto de estudo:

2.1.1 - Trabalhar para a preservação do registro arqueológico, aí entendidos áreas, sítios, coleções e documentos em geral;

2.1.2 - Empreender intervenções que afetem o registro arqueológico apenas sob condições que assegurem a produção de resultados satisfatórios do ponto de vista científico;

2.1.3 - Limitar as intervenções ao estritamente necessário, de modo a assegurar, tanto quanto possível e conveniente, a conservação dos testemunhos arqueológicos para gerações futuras;

2.1.4 - Desestimular qualquer forma de comercialização de bens arqueológicos móveis. Não emitir pareceres, autenticações, laudos, perícias, avaliações ou declarações que possam instrumentalizar qualquer tipo de prática comercial;

2.2 - Com a sociedade em geral:

2.2.1 - Reconhecer como legítimos os direitos dos grupos étnicos investigados à herança cultural de seus antepassados, bem como

aos seus restos funerários, e atendê-los em suas reivindicações, uma vez comprovada sua ancestralidade;

2.2.2 - Colocar o conhecimento produzido à disposição das comunidades locais, dos colegas e do público em geral;

2.2.3 - Respeitar o interesse e os direitos das comunidades sobre o patrimônio arqueológico, atuando, sempre que possível, para a permanência dos acervos em seus locais de origem.

2.3 - Com os colegas de profissão:

2.3.1 - Dar os devidos créditos de autoria ao utilizar dados e/ou ideias de outros profissionais, quer publicados, quer transmitidos em confiança, como informação pessoal;

2.3.2 - Não omitir informações relevantes para a produção do conhecimento científico;

2.3.3 - Facilitar o acesso às coleções e respectiva documentação sob seus cuidados, ressalvados os interesses da própria pesquisa em andamento e os casos previstos anteriormente;

2.3.4 - Não atingir, falsa ou maliciosamente, a reputação de outro arqueólogo;

2.3.5 - Notificar as violações a este código às autoridades competentes.

Tabela 3: Código de ética SAB. Fonte: Adaptado Código de Ética SAB.

Atualmente a SAB9 está propondo um novo código de ética com a finalidade de garantir a flexibilidade e a liberdade para se fazer e pensar a arqueologia nesse novo cenário em que se apresenta, com destaque ao respeito às comunidades locais e incentivo de estratégias de ações participativas juntos às comunidades.

Para encerrar o embasamento deste capitulo é digno de nota discorrermos, a seguir, sobre a Educação Patrimonial numa perspectiva colaborativa e sua interface com as políticas públicas nacionais.

9 Esse novo código ainda sob análise será discutido na próxima reunião nacional da SAB em outubro deste corrente ano (2015) e, portanto,

1.5 A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COLABORATIVA E A INTERFACE COM AS