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CAPITULO 1. A MULTIVOCALIDADE NO CENÁRIO DA ARQUEOLOGIA

1.1 A INTERFACE ENTRE OBJETO E CULTURA MATERIAL

O homem incorpora experiências e conhecimentos e os transmite aos seus filhos. É o único animal que promove ações, cria artefatos, altera a natureza que o cerca, enquanto ele próprio vai se alterando, vai se construindo e se distanciando casa vez mais dos outros animais. Pela cultura, ele deixa às próximas gerações o conhecimento alcançado, propiciando o contínuo desenvolvimento e o permanente avanço de suas conquistas. Todo este processo é registrado na produção de seus objetos, sejam documentos,

esculturas, pinturas, desenhos, construções, objetos utilitários e até tecnológicos, enfim sua cultura material e imaterial [Grifos nossos],

indícios que ele deixa ao longo de sua passagem pelo planeta, e que nos permitem entender a sociedade em que viveu e conhecer a sua própria historicidade. (LUZ, 2013:05).

Ao longo dos séculos o Homem vem evoluindo e transformando o seu meio ambiente, criando e recriando modos de viver no território. E nessa evolução (biológica, psicológica,

social, econômica e cultural) a criação e transformação dos objetos estão intrinsicamente ligados. Os objetos feitos ou utilizados pelo homem refletem, diretamente e indiretamente, as crenças dos sujeitos que o fizeram, negociaram, trocaram ou usaram (PROWN 1988 apud BEAUDRY et al., 2007).

A funcionalidade, finalidade e usos dos objetos podem definir a identidade cultural de grupos humanos, pois trazem em seu seio um sentido histórico, podendo ser considerado como um documento que informa sobre os modos de viver do homem num determinado território - no tempo e no espaço. Sendo que, “ao construir seus artefatos o homem registra a sua história e o seu tempo, enquanto é identificado por eles. O mundo físico está, então, ao nosso alcance para ser vivido por meio dos objetos e artefatos construídos” (LUZ, 2013:16).

Para entender essa dicotomia homem e objeto (cultura material) num processo de transformação social e cultural, a arqueologia4 é a ciência que busca, por meio de estudos sistemáticos e rigorosos, reconstruir e interpretar (inferir hipóteses, ou simplesmente entender) os sistemas socioculturais, ambientais, sua estrutura, funcionamento e transformações no decorrer do tempo, a partir da totalidade material transformada e consumida pelo homem, sejam em períodos pré-históricos e/ou históricos. Por outras palavras “a Arqueologia estuda a totalidade material apropriada pelas sociedades humanas, como parte de uma cultura material e imaterial, sem limitações de caráter cronológico. (FUNARI, 1998:12).

Contudo, objetos identificados pelos cientistas - de valor material ou científico, segundo “os padrões sociais vigentes no momento de sua identificação” (FUNARI, 1998:24) passará a ser chamada de cultura material, pois irão auxiliar nos estudos arqueológicos sobre a compreensão do passado humano e estabelecer relações com o tempo presente. Dentro deste contexto, os artefatos representam as possibilidades materiais e imateriais de uma cultura. (DOHMANN, 2013).

Com o contato direto com as evidências materiais do passado é possível entender uma sucessão de informações a respeito dos grupos humanos pretéritos, dentre as quais se destaca as formas, os usos, as tecnologias e sua evolução, os instrumentos de que dispunham, as crenças, os valores dos grupos humanos que os construíram, modificaram e utilizaram (RODRIGUES, 2011).

4 O termo arqueologia vem do grego que significa conhecimento dos primórdios ou relato das coisas antigas – tem-se limitado o seu objeto de

estudo aos restos materiais, aos vestígios materiais de uma atividade exercida pelo s homens do passado num quadro geo-histórico dado ( J. C. Gardin). Contudo a arqueologia tem, nos últimos anos, alargado seu campo de ação para a cultural material de qualquer época, passado ou presente. Arqueologia industrial, arqueologia urbana.

Nesse sentido, a utilidade primária dos objetos é considerada mais um atributo somado com o estudo dos atributos tecnológicos, tipológicos, morfológicos, estéticos, as formas de apropriação e do contexto ambiental no qual foi identificado, e também os aspectos simbólicos envolvidos na construção e manutenção do objeto (PLENS, 2014:29).

Para Meneses 2(006) apud Delgado (2010:48), o papel dos objetos históricos compromete-se fundamentalmente com o presente, visto que é no presente que eles são produzidos como categoria de objeto e é às necessidades do presente que eles respondem.

Victor Oliveira Jorge (1999) completa:

Quando um arqueólogo estuda um objeto, a sua finalidade é perceber a intenção com que, no passado, alguém concebeu, assumindo, portanto que entre esse ser e nós há um mínimo de elementos de continuidade para que um fio de inteligibilidade se estabeleça, para que a sua ação faça sentido. Esse sentido não tem, sobretudo a ver com as propriedades físicas do objeto; embora tendo as considerações, o que se procura é um sentido humano, o que pressupõe a característica fundamental da nossa subespécie, que é a de impregnar a realidade de significações. Fazer arqueologia é recuperar intenções, conscientes ou não, através de uma leitura do mundo material. É encontrar a dinâmica das ações, individuais ou colectivas, que subjaz à estética das estruturas e objetos tal como chegaram até nós. (JORGE, 1999: 370)

Na perspectiva arqueológica a construção do estudo da cultura material passou por várias discussões conceituais. Teve início por volta do século XVI a XVIII, impulsionado por colecionadores de artefatos exóticos, onde se começou a despertar o interesse no seu estudo para entender a evolução humana. Muitos dos colecionadores que colhiam esses objetos dedicavam o seu tempo para categorizá-los no sentido de explorar o passado, alguns produziam dicionários ou escreviam enciclopédias a respeito de suas descobertas (MACGREGOR, 2013). Na história do colecionismo os objetos eram classificados e organizados em forma de coleções e levados para exposições em gabinetes de curiosidades e/ou museus. No final do século XIX nasce - na Europa e se difunde pelo mundo, a corrente histórico-culturalista, trazendo a preocupação em estudar os objetos segundo a sua classificação tipológica/descritiva. Os estudiosos desta corrente, que teve como percursor Gordon Childe, inferiam que a partir da cultura material seria possível identificar grupos humanos pré-históricos estabelecendo suas origens e seus movimentos de interação. Numa perspectiva generalizante definiu a cultura arqueológica como “certo tipo de vestígios – vasos, apetrechos, adornos, ritos funerários, formas de habitação – que aparecem associados de forma recorrente” (TRIGGER, 2004:167). A maior crítica a esta corrente é ter se limitado ao estudo funcional e tipológico da cultura

material e ao exame da vida econômica, sem ter igualmente apoiado a análise dos aspectos sociais, políticos, ideológicos das culturas (ALARCÃO, 1996:10).

Em meados dos anos 60, nos Estados Unidos, uma nova corrente avança na interpretação da cultura material - considera o estudo dos artefatos inserido no seu contexto, entendendo que os seres humanos se adaptam ao meio através da sua cultura – a chamada New Archaeology ou Arqueologia Processual. Uma das características da Nova Arqueologia é a insistência em generalizações e regularidades na cultura, além do enfoque em leis gerais e na teoria de sistemas, ou seja, os novos arqueólogos estudavam as sociedades como sistemas culturais ativos com o objetivo de encontrar regularidades (RENFREW e BAHN, 1996).

Um dos principais percursores da Nova Arqueologia foi o arqueólogo norte americano Lewis Binford. Na concepção de Binford, o registro arqueológico não se compõe de símbolos, palavras ou conceitos, mas de restos materiais e distribuições de matéria (BINFORD, 1988). O único modo de poder entender seu sentido é averiguar como chegaram a existir esses objetos, como se modificaram e como adquiriram as características que vemos hoje. O autor ainda completa que essa compreensão depende de um grande acúmulo de conhecimentos que relacionam as atividades humanas com as consequências destas atividades observadas nos vestígios materiais – é como se fosse uma linguagem não traduzida e que precisamos, no presente, decifrá-la (BINFORD, 1988:23-24).

O autor defendia que o desafio da arqueologia processualista de cunho mais antropológico consistira na transcrição, literal, da informação estática contida nos “objetos”, cuja observação permitiria reconstruir a dinâmica da vida no passado, entendeu as condições que tornaram possíveis a permanência desses artefatos no presente. Em outras palavras, diferenciava-se da corrente histórico-culturalista centrando-se na explicação, em vez da pura descrição (ORSER JR, 1992).

Mais tarde, em 1980, nasce na Inglaterra a corrente pós-processualista destacando que a cultura material era ativamente manipulada pelas pessoas de maneira polissêmica em função das suas estratégias sociais, de acordo com o contexto em que cada grupo cultural estava inserido. Exemplos de autores que trataram do tema são Vitor Oliveira Jorge (1999, 2000) Pedro Paulo Funari (1998, 2005, 2014) Nuno Bicho (2006); Robrahn-González, (1999-2000). Com a arqueologia pós-processual maior ênfase foi dada ao indivíduo, aos contextos e aos significados, em busca de uma arqueologia mais interpretativa e auto reflexiva (HODDER, 2001).

Ian Hodder foi, aliás, o principal expoente desta corrente, que afirmava que a cultura material não pode ser compreendida como um simples reflexo da adaptação humana ao meio ambiente ou da organização sociopolítica, pelo contrário, deve ser entendida como um elemento ativo que intervém em diversos aspectos nas relações entre grupos. Nesse sentido, o papel ativo da cultura material pode ser usado tanto para disfarçar relações sociais como para refleti-las (TRIGGER, 2004:343).

Percebe-se que estas correntes buscaram, embora com enfoques diferentes, compreender por meio da cultura material, a sociedade - sua evolução, padrões de comportamento, formas de adaptação, crenças, costumes, conflitos – ou seja, os seus modos de vida.

E os avanços continuaram, pois para Bruno os estudos da cultura material avançaram também em reflexões sobre fruição, documentação, conservação, preservação e, mais recentemente, percebemos a importância da comunicação e da educação a partir dos objetos e coleções [...] (BRUNO, 2009:15).

Do ponto de vista da conservação e preservação da cultura material, sinalizado acima por Bruno (2009), surge o questionamento: para onde irão os objetos depois de “retirados” do sítio arqueológico? O fazer arqueológico intrusivo é, por si, uma atividade destrutiva (PROUS, 1992), logo, uma escavação é uma ação irreversível, uma vez que, após a remoção dos objetos do seu contexto de origem, é impossível depositá-los no mesmo local. Como se dá o processo de conservação e guarda destes objetos?

Assim, a cultura material passa a adquirir um status de bem arqueológico, o que lhe confere a qualidade de valor e herança cultural às sociedades do presente e do futuro e, portanto, recebem uma proteção legal. Neste progresso dentro dos espaços de salvaguarda, evoluiu para ao status de acervo5 (VASCONCELOS, 2011).

Assim, conforme enfatiza Robrahn-González (1999-2000), dos colecionadores de peças exóticas da Antiguidade aos dias atuais, a Arqueologia não foi apenas capaz de acumular um conhecimento respeitável sobre o passado humano; discutiu incansavelmente, também, sua responsabilidade ética sobre este passado, à medida que apontava novas e mais abrangentes perspectivas de abordar o desenvolvimento das sociedades ao longo do tempo. Observou-se assim, a partir da década de 1980, uma crescente preocupação no cenário internacional com os

5 O que difere o termo de coleção para acervo, reside, no fato de que este último pressupõe a institucionalização dos objetos e, por consequência,

“um processo cotidiano para o reconhecimento e a formulação de sentidos” (LOURENÇO, 1999 apud VASCONCELOS, 2011:21), condição

aspectos públicos da disciplina. Este movimento vem sendo internacionalmente denominado “Arqueologia Pública”, voltada para promover o diálogo público com a participação da sociedade na identificação, fruição e gestão de seu patrimônio arqueológico, histórico e cultural. Os arqueólogos perceberam que necessitavam reconhecer não somente sua responsabilidade sobre os vestígios arqueológicos, mas, igualmente, sobre as pessoas com cuja herança histórica e cultural estes vestígios se relacionam. Um dos benefícios públicos da Arqueologia está justamente em contribuir para o fortalecimento dos vínculos existentes entre a comunidade e seu passado, ampliando o interesse da sociedade sobre o patrimônio e criando, paralelamente, a sustentação necessária às medidas de preservação. (FUNARI e ROBRHAN- GONZÁLEZ, 2008).

Barbara Betz reforça que a definição mais básica para arqueologia pública é dada pelo arqueólogo Stephane Moser, da Universidade de Southampton na Inglaterra: é a prática da pesquisa arqueológica na qual, em todas as etapas de um projeto, pelo menos parcial, o controle permanece com a comunidade. Embalados por esta definição compreende-se que são muitas implicações e variações de projeto para projeto. Contudo, espera-se que todo e qualquer projeto com esta abordagem deva ser altamente reflexivo e sensível a cada contexto arqueológico e em particular às comunidades associadas (BETZ, 2007).

Portanto, os conceitos de Arqueologia Pública são resultados de profundas transformações ocorridas na sociedade e nas ciências, nas últimas décadas. O período pós- processualista marca a sua atuação em todo o mundo.

Acompanhando estas mudanças, as ciências passaram a interagir, de forma programática, com os grupos sociais envolvidos, visando às políticas públicas e participando da luta pelo respeito e valorização das diversidades ambiental e cultural. Neste arcabouço, a Arqueologia Pública vem fomentando a relevância de socializar os conhecimentos produzidos nas pesquisas arqueológicas, envolvendo as comunidades locais nas pesquisas como garantia de fruição, proteção arqueológica e sustentabilidade cultural. Mas, principalmente, tornam compreensíveis e utilizáveis os conceitos de tempo, espaço e causalidade, considerados cruciais para a sobrevivência de todos os seres humanos (OOSTERBEEK, 2010).

A Arqueologia Pública, inicialmente com uma definição e atuação bastante amplas, foi obtendo focos e procedimentos mais específicos, como a Arqueologia Colaborativa - envolvimento com a sociedade/comunidade nas pesquisas de forma sinérgica e integrada em busca de soluções de preservação, fruição e sustentabilidade cultural. A perspectiva específica adotada nesta investigação será a de Arqueologia Colaborativa.

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