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CAPITULO 2. A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO ÂMBITO DO

2.3 A SUSTENTABILIDADE CULTURAL NOS PROGRAMAS ARQUEOLÓGICOS E

CASO

Como já destacado, o Brasil vem passando por mudanças significativas devido à construção estrutural do País, o que torna obrigatória a realização do licenciamento ambiental – entre outras, a etapa de estudos arqueológicos e histórico-culturais (CAMPOS et al., 2013). Com isso, passou-se a desenvolver pesquisas arqueológicas e histórico-culturais junto com as comunidades, no sentido de promover o registro e fruição da sua história, da sua herança e do seu patrimônio por meio de uma consciência ecológica e cultural sustentável. Contudo, diante desta oportunidade, é fulcral abordar a inclusão da sustentabilidade cultural pensando no fortalecimento e no desenvolvimento dessas comunidades que estão sendo diretamente afetadas pela construção dos empreendimentos e ou vivem em áreas de preservação patrimonial.

A preocupação se assenta não somente nas discussões de conceitos, o que é essencialmente importante, mas também em boas práticas oriundas desses conceitos. Discutir concepções e boas práticas em torno de ações preservacionistas com as comunidades é ponto chave à sua sustentabilidade cultural (RODRIGUES, 2013; 2014).

Vimos que vários países já discutem com afinco a inserção da sustentabilidade cultural, inclusive como quarto pilar do desenvolvimento sustentável, e que é provavelmente a visão ainda mais ampla do IYGU que irá ultrapassar a visão aditiva de três para quatro pilares da sustentabilidade.

A proposta de incorporar a sustentabilidade cultural como quarto pilar do desenvolvimento sustentável surgiu formalmente no ano de 2011, com o lançamento do livro do australiano John Hawkes intitulado de “The Fourth Pillar of Sustainability – Culture’s essential role in public planning” (O Quarto Pilar da Sustentabilidade – o papel essencial da cultura no planejamento público – tradução nossa), e desde então o debate foi intensificado. A principal abordagem defendida foi a relevância da cultura na gestão pública como valor inestimável para avaliar o passado e planejar o futuro (HAWKES, 2011).

De acordo com os parâmetros atuais de desenvolvimento sustentável, a cultura está interligada a dimensão social, mas tem saído gradativamente desta dimensão para ser reconhecida com papel distinto e integrante no desenvolvimento sustentável.

Para a UNESCO, no campo do desenvolvimento comunitário, a cultura é definida amplamente como sendo:

[...] todo o conjunto material, imaterial, intelectual e recursos emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela inclui não apenas as artes e letras, mas também os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças. (UNESCO, 1995b: 22)

Na Conferência Rio+20, em um seminário exclusivo para discutir a inserção da cultura no desenvolvimento sustentável, Gérald Tremblay vice-presidente da CGLU (Cidades e Governos Locais Unidos) para América do Norte, vice-presidente de Metrópoles e prefeito de Montreal, em seu discurso, enfatizou que “a cultura tem um papel fulcral no desenvolvimento humano responsável, para preservar a identidade e a diversidade, tanto localmente como globalmente”. Em uma mesa redonda sobre sustentabilidade e gestão integrada do território – também na Rio+20 – em que participaram acadêmicos dos conselhos internacionais de ciência e de ciências humanas da Unesco, foi assumido que a cultura é não um pilar, mas o foco da sustentabilidade (SCHEUNEMANN e OOSTERBEEK, 2012).

No encerramento deste seminário Vitor Ortiz, ministro interino da Cultura no Brasil, frisou a importância da cultura na construção do desenvolvimento sustentável, defendendo que: A proteção de nosso patrimônio cultural não abrange só os lugares e monumentos históricos. É também o ‘registro e a preservação de nosso conhecimento popular e das técnicas ancestrais, para nossas sociedades puderem encontrar soluções talvez mais inteligentes e mais sustentáveis do que as que temos estado usando até agora’ (ORTIZ, 2012: 3).

No entanto, até agora não há uma grande variedade de maneiras de definir a abordagem da cultura no desenvolvimento sustentável. Pode-se supor que um verdadeiro debate sobre este

tema está surgindo (DUXBURY e JEANNOTTE, 2010). Como vimos, Estados Unidos, países da Europa e alguns da Ásia já avançam nessa discussão da inclusão da cultura como o quarto pilar da sustentabilidade. Inclusive, Montreal, no Canadá, foi a primeira cidade a implantar a cultura como quarto pilar da sustentabilidade.

Apesar de suas limitações, é fundamental ressaltar o aspecto transformador da inserção da sustentabilidade cultural como quarto pilar do desenvolvimento sustentável, porque, mediante a sua incorporação e o seu desenvolvimento, será possível, inclusive, sensibilizar e transformar a realidade das comunidades em relação à manutenção, preservação e fruição do patrimônio cultural. Tal como afirma Robrahn-González (2013), essa ação tem potencial para ampliar sua reflexão quanto ao manejo de território versus modos de vida, fundamentando a possibilidade de estender vias de desenvolvimento social baseadas na diversidade, nos valores culturais, tradições, crenças e costumes, o que necessariamente irá contribuir com a melhor qualidade de vida das comunidades.

Promover ações transformadoras na relação entre comunidades e meio ambiente deve partir da perspectiva cultural para criar soluções sustentáveis (ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2013), fortalecendo as relações sociais por meio de iniciativas que fomentem a preservação e fruição do patrimônio, respeitando as práticas tradicionais e os seus pontos de referências culturais e identitários.

Beatley e Manning (1997 apud DUXBURY e GILLETTE, 2007) destacam que uma comunidade culturalmente sustentável deve nutrir-se de um ambiente construído e padrões de assentamento que são edificantes, que gerem um sentimento de pertencimento; que respeite a história e o caráter desses recursos existentes que nutrem um sentimento de apego e familiaridade com o lugar, e/ou com pontos de referências das comunidades, sejam eles naturais, um sítio arqueológico, uma edificação ou uma paisagem cultural. Sendo assim, os esforços devem recair na preservação desses lugares que sejam capazes de promover uma maior sinergia cultural e social entre os grupos de uma comunidade.

Deste modo, a sustentabilidade da comunidade contínua a ser mais comumente vista como uma forma de melhorar o "bem-estar" de uma comunidade em termos sociais, econômicos e ambientais, com a cultura formando gradualmente uma parte desta visão. (DUXBURY e GILLETTE, 2007).

No campo interdisciplinar em que atuam várias ciências sociais e humanas, inclusive a Arqueologia, abre-se um leque de discussão no que concerne ao planejamento e aplicação de ações de sustentabilidade cultural numa perspectiva de engajamento colaborativo com as

comunidades no Brasil. Isso tem sido amplamente pensado, planejado e executado no âmbito de programas arqueológicos e histórico-culturais desenvolvidos no cenário do licenciamento ambiental17.

Para compreender como se dá esse processo nos programas arqueológicos e histórico- culturais no Brasil, parte-se do entendimento tutelado pela legislação por meio de resoluções, normas e decretos, dos quais destacamos:

 A resolução CONAMA 01/1986, que define as situações e estabelece condições e requisitos para a realização de processos de licenciamento ambiental (CONAMA, 1986);

 A Constituição Federal de 1988, especialmente em seu artigo 216 (que define o patrimônio cultural brasileiro, garantindo sua guarda e proteção) e seu artigo 215 (que trata do exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, bem como apoio e incentivo à valorização e difusão das manifestações culturais) (BRASIL, 1988).  A Lei n. 3.924/1961, que define o patrimônio arqueológico como um Bem da União e

define sua proteção (BRASIL, 1961);

 A portaria normativa SPHAN 07/88, que regulamenta os pedidos de permissão e autorização de pesquisa quanto ao desenvolvimento arqueológico (IPHAN, 1988);  A instrução normativa IPHAN 01/15, sobre, entre outros, o escopo dos trabalhos

arqueológicos a serem desenvolvidos em processos de licenciamento ambiental, sobretudo com a obrigatoriedade do desenvolvimento de ações de educação patrimonial à comunidade, por meio de um trabalho participativo, integrado, eficaz e contínuo de educação.

 A portaria interministerial 60/15, que estabelece diretrizes para ações voltadas ao licenciamento ambiental para órgãos federais, incluindo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

Estas obrigatoriedades levam os pesquisadores, empreendedores, instituições e demais órgãos envolvidos a traçarem metas e medidas que envolvam as comunidades – principalmente as apontadas como vulneráveis aos impactos causados pelos empreendimentos. Elas estarão nos processos de participação e engajamento colaborativo desde o início das pesquisas, abrindo

17 A Lei 6938/81 de Política Nacional de Meio Ambiente – PNM institui que as construções de obras que viabilizam impactos ambientais

negativos, causado pelas instalações de grandes empreendimentos exigiram o estabelecimento de medidas para prevenção, reparação e mitigação desses impactos, além de exigirem medidas que maximizem os impactos positivos do projeto. Neste sentido, no processo de licenciamento ambiental deverão ser elaborados estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA), dos quais se destacam estudo do meio físico, biótico, socioeconômico, fundiário, dentre outros. No que concerne à realização dos estudos de patrimônio arqueológico e histórico cultural, tratados neste estudo, o CONAMA 01/86, especifica no seu artigo 6, inciso I Alinea C, a sua obrigatoriedade como elemento preponderante a ser considerado nas diferentes fases de planejamento e implantação do empreendimento nas três etapas acima destacadas ( BRASIL, 1986).

um leque de possibilidades de implantação de ações acessíveis, contínuas e sustentáveis, sempre com as comunidades e não para as comunidades (FREIRE e PEREIRO, 2002). Dentre eles, as ações educativas estão no alto da pirâmide.

Para que se possa pensar no entendimento da educação com as comunidades, no prisma da preservação e da fruição do patrimônio cultural é fulcral construir, inicialmente, o conhecimento a partir do olhar das pessoas da comunidade, de suas trajetórias, de suas percepções, de suas leituras do mundo e de suas vozes e conflitos, interagindo com o lugar e com o seu meio desigual. Buscando relacionar as demandas e anseios locais ao debate sobre a preservação cultural/ambiental, no sentido de propiciar aprofundamentos analíticos na conscientização das comunidades. Visto isso, não podemos tratar as ações de educação neste âmbito isoladamente, sendo, portanto, essencialinterpretar os elos de poder, de conflitos, das relações sociais entre estado, economia e meio ambiente cultural. E completa: a questão de patrimonial/ambiental “não pode caminhar sozinha, se for assim, ficará uma categoria que mais aliena do que esclarece, sobretudo nesses espaços – tempos de globalização e de sociedade de consumo”. Silva (2011: 19).

Na modernidade, preservar o patrimônio cultural em sinergia com as comunidades virou palavra de ordem. Muitas são as discussões acerca da temática, e diversas são as medidas implementadas. Os debates, além de deixar claro que a inserção da comunidade como agente ativa nos processos de preservação é mesmo necessária, serviram para jogar luz sobre os pesquisadores de diversas áreas que atuam diretamente com o patrimônio cultural em suas múltiplas faces, que vêm refletindo e se dedicando a buscar caminhos para adaptar essa temática aos diversos contextos e patrimônios: materiais e imateriais (RODRIGUES, 2011).

O resultado das pesquisas passa, assim, a ser analisado por um conjunto maior de participantes, pois é utilizado, entre outros, como veículo de engajamento civil. Assim, além das práticas inerentes aos objetivos científicos, o papel social da pesquisa científica leva a ações que envolvam a compreensão do presente.

Os desafios são diversos, nos levando a questionar como os arqueólogos/cientistas, os empreendedores, os órgãos patrimonialistas e, especialmente, as comunidades podem ampliar a interação de forma co-criativa para encontrar soluções que permitam o empoderamento cultural, preservação, fruição e sustentabilidade do patrimônio cultural?

Entende-se que a questão não é somente transmitir conhecimentos gerados, mas, acima de tudo, formar sujeitos capazes de, através dos conhecimentos repassados e codificados, criarem novos “esquemas” cognitivos que os façam refletir criticamente, construindo novos

conhecimentos e adaptando-os à sua realidade, considerando que as ações educativas centradas no patrimônio cultural devem ser forjadas com as comunidades e não para as comunidades (FREIRE e PEREIRO, 2002).

Diante desta conjuntura, a busca por novas abordagens conceituais e didáticas vêm crescendo exponencialmente. Várias são as possibilidades implementadas e adaptadas de outros campos do saber, como da pedagogia, da sociologia, da antropologia, do marketing cultural e do campo empresarial.

Ramaswamy e Gouillart (2010) fornecem uma abordagem adotada com sucesso no ramo empresarial, alicerçada no conceito de que, para ter sucesso, a empresa deve reconhecer e administrar o relacionamento com os diferentes Stakeholders (no caso, clientes e consumidores) num processo de cocriação criativa de valor. Ou seja, a cocriação é um processo pelo qual pessoas criam (ou desenvolvem) ideias conjuntamente, por meio de procedimentos de interação e envolvimento, contribuindo com as suas experiências pessoais. As possibilidades são inúmeras, ilimitadas. Envolvem as práticas, as experiências, os serviços e, com isso, é possível dar um salto na inovação, [...] “é preciso investir no diálogo com os diferentes Stakeholders, no qual as pessoas podem dar sua opinião sobre o que melhor se adapta às suas necessidades” (RAMASWAMY e GOUILLART, 2010:2).

Trazendo esta discussão para o contexto de envolvimento com as comunidades, o processo de cocriação de valor é o caminho para se pensar na abordagem da Educação Patrimonial Colaborativa por intermédio de uma abordagem participativa. É preciso considerar todos os envolvidos, as suas necessidades, opiniões - é trazer as discussões para dentro e desenvolver ideais conjuntamente.

Nesse sentido, Ramaswamy e Gouillart (op.cit.) fazem refletir sobre a ideia de como desenvolver o valor cultural/patrimonial por meio da cocriação com os diferentes stakeholders? Qual o elo que os une, quais os pensamentos comuns, as experiências comuns, as práticas comuns, como cocriar e transformar os conflitos em oportunidades de aprendizagem, empoderamento e fruição cultural? Trazer todos esses questionamentos e reflexões para o nosso campo de atuação é fulcral: interação ativa entre os Stakeholders com base na experiência humana, pessoal e social, é o desafio atual.

A incorporação de ações de sustentabilidade cultural do patrimônio das comunidades pode reverter-se em benefícios sem precedentes na região. Este tipo de iniciativa é capaz de aumentar a possibilidade de criação de novos empreendimentos econômicos, gerando novas alternativas de trabalho, principalmente na área do turismo. Além disso, abre-se a possibilidade

do aumento do interesse pelo conhecimento em geral, o que contribui para a melhora do nível educacional dos jovens e seu desempenho escolar, consequentemente, contribui para o bem- estar das populações (DOCUMENTO, 2013).

Não se pode negar que essa nova abordagem se configura como um grande desafio para todos – pesquisadores, comunidades, ONGs, empreendedores – e se torna cada vez mais necessário lhe dar esse enfoque, pois, quando falamos em sustentabilidade das comunidades, é preciso estar ciente, antes de tudo, que são as pessoas que vivem naquele espaço, que nasceram ali, que possuem conhecimentos acumulados sobre a sua história, memória, tradição e território. Vivemos em um país pluricultural com uma diversidade histórica e cultural, com sensibilidades diversas. Mas, como definem Smith e Ehrenhard (2002 apud FUNARI e ROBRAHN- GONZÁLEZ, 2008),

Não temos apenas um público a considerar, mas vários, cada qual com sua singularidade histórica e sociocultural e com seus próprios interesses nos acontecimentos do passado. Embora a pergunta – O que deve ser socialmente sustentado? – nunca vá encontrar uma resposta unânime, poderemos chegar a um consenso sobre a efetiva participação da comunidade na investigação arqueológica, baseada em uma forma não hierárquica, em que métodos e interpretações convirjam para a interação. (2008:8)

Além disso, as pesquisas arqueológicas mexem com o conhecimento que é público e tutelado pela própria legislação brasileira e envolvem de forma “cocriativa” (RAMASWAMY e GOUILLART, 2010) os detentores legítimos nesse processo. Ajudar as populações a dar significância para o seu patrimônio, criando mecanismos de adequação à sua realidade, pensando sempre em medidas sustentáveis no sentido de garantir às gerações do futuro o conhecimento e o usufruto da sua história e herança cultural, é fundamental.

O próximo capítulo apresentará a análise dos estudos de casos. Veremos que os programas de investigação permitiram, não somente, realizar pesquisas sobre os modos de vida das populações pretéritas, mas aliar o desenvolvimento dos estudos com a preservação, manutenção e gestão do patrimônio identificado, de forma integrada e colaborativa com a comunidade envolvente, num processo de fruição cultural e gestão participativa em busca da sustentabilidade cultural do patrimônio local existente e o localizado.

Colar em osso, identificado no Programa Teles Pires. Acervo Documento/IHB. Foto Vinicius Camargo

CAPITULO 3. CASO I: PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO