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Ética do trabalho e estética do consumo

Nunca é demais insistir na relação entre a exclusão e um tipo de sociedade que, desde o capitalismo nos seus estádios iniciais, elegeu o mercado como divindade a seguir no plano terreno (na verdade na história da política não faltam modelos secularizados de intenções teológicas).

Existem autores que referem duas fases distintas do capitalismo: primeiro como disciplina e repressão e depois como hedonismo, sendo esta última devido ao consumismo.65

Zygmunt Bauman responsabiliza a globalização negativa pela produção de pessoas supérfluas, levando a formas de exclusão de uma massa populacional que se tornou excedente. O que fazer com eles? Que destino dar àqueles a quem o antigo Estado- providência já não dá resposta e que se tornaram subitamente a fonte dos nossos medos e ansiedades? Assim, diz ele: «Os refugiados, os deslocados, os que pedem asilo, os imigrantes, os sem papéis são o refugo da globalização.» (Bauman, 2006a: 110)

Qual era o objectivo da ética do trabalho numa sociedade de produtores?

O sacrossanto apego ao trabalho de outrora transformou-se em consumo desenfreado, em «centro-comercialismo». A bandeira do crescimento económico e a criação de empregos é o constante ardil que agita a desacreditada política actual, como uma sereia de pobreza virtual.

Algo de muito sólido se dissolveu no ar, no que alguns autores gostam de chamar uma segunda modernidade ou a sua fase tardia. Bauman prefere a designação de

modernidade líquida, celebrada como uma Era do consumo e da precarização, do volátil

e dos novos pobres. O mundo do trabalho corroeu-se, desenganchou-se como um velho comboio de mercadorias que se desengata subitamente, que saiu dos ferrolhos à entrada do túnel, deixando-nos incrédulos e a especular sobre a sua possível passagem para o outro lado. Bauman afirma que a auto-proclamação do mercado de consumo é uma ideologia pós-moderna que põe fim a todas as ideologias; os novos pobres não são os incapazes de produzir mas os que não conseguem consumir. Provavelmente Bauman exagera quando diz que a sedução do mercado substituiu a necessidade da repressão e que a autoridade reside na publicidade e na criação de necessidades. Quais os traços distintivos de uma cultura de consumo? Seguramente uma dependência face ao mercado, mas também uma destruição das aptidões sociais. Fazer shopping «é também um divertimento muito engraçado, uma fonte inesgotável de estímulos sensuais e, visto que partilhado por todos, um acontecimento social por excelência.» (Bauman, 1987: 166)

                                                                                                                         

Não estaremos ainda perante o que Marx anunciou sobre o fetichismo da mercadoria? O que a sociedade de consumo celebra antes de mais é o próprio jogo do consumo, conformando-se com o carácter efémero do objecto, desligado do seu fim. A sociedade de consumo, máquina moderna de produção de excluídos em série, tem um ascendente liberal: a divinização do mercado. O desejo de consumir consome-nos, um desejo que se auto-devora, consuming desire of consuming (Bauman, 2002b: n. 188. 343).

Ter os recursos necessários para escolher, padecendo de uma possibilidade infinita, onde o que conta é a capacidade de mudar continuamente, viver a relação pura, onde apenas conta a satisfação mútua. Estamos separados mas compramos, diz o autor em

Liquid Modernity. Mas estas relações puras originam uma intimidade de pessoas que

suspendem a sua identidade como sujeitos morais – as relações puras constituem uma intimidade sem ética.

A impossibilidade de consumir e de escolher um estilo de vida produz os excluídos. Uma das suas formas mais drásticas é a exclusão permanente, em que as novas «classes perigosas»66, a underclass são, no fundo, os excedentes do progresso económico. Esses excluídos contemporâneos já não podem ser assimilados pela sociedade; o que ocorre é uma «irrevogabilidade da sua expulsão e fragilidade das chances de apelar do veredicto.» (Bauman, 2007a: 75) Estar desempregado e economicamente fora do sistema, corresponde a uma situação quase irreversível pela progressiva redução da força de trabalho. Na modernidade líquida a nova elite global que se movimenta livremente entre os países condena os pobres à imobilidade e ao ostracismo. E a política, aprisionada por problemas gerados globalmente, não acompanha as questões geradas nesse turbilhão transnacional: «Um dos mais surpreendentes paradoxos revelados em nossa época é que, num planeta que se globaliza rapidamente, a política tende a ser apaixonada e constrangedoramente local.» (Bauman, 2007a: 88) Os marginalizados da globalização, esse excedente populacional a que o Estado já não presta atenção –

                                                                                                                         

66 Michel Foucault fez a genealogia do «indivíduo perigoso» a partir da psiquiatria do séc. XIX,

reconstituindo a jurisprudência da loucura criminal no artigo «A evolução da Noção de “indivíduo perigoso” na psiquiatria Legal do Século XIX» (1978). A psiquiatria desta época inventou um conceito –

monomania homicida – para dar conta dos crimes sem motivo impondo-se junto do poder judicial de

modo a assegurar uma higiene pública. As condições do perigo social a evitar – a superpopulação, promiscuidade, alcoolismo, libertinagem – apelavam a uma intervenção do médico que se tornou um protector da alma individual e do corpo colectivo. Assim sendo, o acto de punir tornou-se uma técnica de controlo e uma forma de modificar os delinquentes.

Estado-Providência desmantelado – deixa descontrolado o mercado e a concorrência. A finança internacional, móvel, que se desloca de país para país torna-se uma quase- soberania (não será uma mundialização que enriquece apenas os mais ricos?) A figura do consumidor ideal é a sua inconstância, ou seja, o facto de nunca estar satisfeito, ele vai para além da sua sedução, o consumidor é um indivíduo em movimento (Bauman, 1999: 130).

Da mesma forma, além do consumidor falhado ou deficiente, existem outros modos de marginalização porventura citadinos.

A lógica de guetificação impõe um mecanismo de segregação e de exclusão (guetos norte-americanos e banlieues francesas), um depósito de pobres que leva à sua criminalização.

Tal é o caso da prisão de Pelican Bay na Califórnia, o apogeu das situações em que a flexibilidade laboral produz distorções; ela é uma fábrica da exclusão e da imobilização (Bauman, 1999: 171). Quem está nas prisões?

O estranho cruza-se connosco nas ruas e acolhemo-lo com uma indiferença cortês. Relacionamo-nos com eles com uma não atenção pública (Goffman); esta é mesmo a modalidade básica que conduz os nossos encontros com ele que mobiliza ou não a nossa confiança – ele é o que perdeu o rosto e vemo-lo como uma concha vazia. Se a cidade é um local de desencontros, a sua presença lança-nos na incerteza. Não falar com estranhos, aconselha o sensato.

A elite vive também isolada num território urbano que forjou novas relações de poder, a cidade e as suas muralhas interiores: «As cidades contemporâneas são campos de batalha em que os poderes globais e os significados e identidades obstinadamente locais se encontram, se chocam, lutam e procuram um acordo que se mostre satisfatório ou pelo menos tolerável.» (Bauman, 2003a: 103) Estes estrangeiros que nos são próximos servem muitas vezes de exutório para os medos, ansiedades, incertezas do mundo globalizado; os refugiados, os imigrantes que vêm de longe e se instalam nas nossas cidades sofrem o resultado dos estilos de vida modernos, que também produzem o refugo na sua ânsia da ordem e da organização. As práticas de exclusão começam na modernidade, logo, é preciso saber como lidar com os seus «retardatários», isto é,

aqueles que chegaram tarde aos tempos modernos, mas que têm que ser integrados, os chamados países em vias de desenvolvimento.

A cidade, a vida urbana tornou-se sobrecarregada; aí desemboca o resultado das contradições globais, o cruzamento dos fluxos (como diz Castells) que escapam ao controlo dos Estados-nação – as cidades são cada vez mais espaços de incerteza. Na época pré-moderna, os estranhos não sofriam tanto o estigma do seu absoluto desencontro com os locais: ou eram domesticados e integrados ou expulsos, em todo o caso, haveria uma tentativa de estabelecer um esquema pessoal para reduzir o medo e a sua condição de forasteiros indesejáveis. Neste momento inventaram-se os condomínios, onde se pretende delimitar um fora e um dentro. Entre eles temos a cerca que separa o mundo do «gueto voluntário» dos ricos dos que são socialmente inferiores. O condomínio promove o isolamento e a auto-exclusão e parece atenuar a proximidade repugnante com os estranhos. Mas poderá nascer aí um oásis de segurança? Que tipo de comunidade é essa que visa a criação de um sentimento de um «nós» expurgando a alteridade?

Eis um desafio para os conceitos de filosofia política: a passagem do povo soberano a um Estado (homem-máquina ou animal artificial à maneira de Hobbes, a que chamou Leviatã) até desembocarmos no conceito de soberania e na constituição de uma verdadeira comunidade homogénea e aberta a influências exteriores sem cair na xenofobia.

O impulso na direcção de uma «comunidade de semelhança» é um sinal de recuo não apenas em relação à alteridade externa, mas também ao compromisso com a interacção interna, ao mesmo tempo intensa e turbulenta, revigorante e embaraçosa. A atracção de uma «comunidade da mesmidade» é a da segurança contra os riscos de que está repleta a vida quotidiana num mundo polifónico. Esta não reduz os riscos, muito menos os afasta. (Bauman, 2003a: 110-111)

Edificar uma comunidade significa também uma escolha para as minorias étnicas e culturais: assimilar ou perecer. A estratégia da maioria é a de despojar o Outro da sua alteridade, torná-lo semelhante, e isso implica muitas vezes a dissolução na identidade

nacional ou a exclusão; do nacionalismo ao liberalismo temos as duas opções para as comunidades, respectivamente a assimilação ou o pretenso acolhimento benévolo, a rigidez perante a tolerância, a busca da essência nacional, elemento mitológico que o Estado-nação forjou para sedimentar o seu poder, ou afastar a ansiedade diante do estigma da alteridade. Os que são rejeitados carregam consigo um estigma indelével: «Não há solução evidente e sem riscos para o dilema enfrentado pelas pessoas declaradas “minorias étnicas” pelos promotores da unidade nacional.» (Bauman, 2001: 95)

É nesse sentido que a vida nas cidades é ambígua, marcada por sentimentos de

mixofilia (a socialização com estranhos) e de mixofobia (a aversão aos desconhecidos).

«A cidade favorece a mixofobia do mesmo modo e ao mesmo tempo que a mixofilia. A vida urbana é intrínseca e irreparavelmente ambivalente.» (Bauman, 2003a: 112) Por um lado, os arquitectos e urbanistas podem propagar espaços públicos abertos, hospitaleiros para as pessoas se misturarem (mixofilia), mas por outro, surge uma alergia aos estranhos, uma ansiedade presente nas ruas, que faz da cidade o aterro sanitário de preocupações globalizadas, propensas à xenofobia. E Bauman cita mesmo o político português Paulo Portas como violentamente contrário à imigração (Idem: 121) quando Portugal, no fundo, sempre foi um exportador de mão-de-obra.