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A hereditarização dos comportamentos: compreender o genocídio

A biologização da política capaz de detectar essa «imagem hereditária» do homem requeria um novo personagem: o médico da hereditariedade que velaria pela saúde nacional.

Um novo tipo de médico formou-se: o médico da hereditariedade. Este médico, para além da imagem aparente dos sintomas patológicos individuais, consegue descobrir a imagem hereditária. O seu olhar ultrapassa a vida do indivíduo; ele abarca gerações; vê o futuro e a sua preocupação é prever as doenças das crianças e dos recém-nascidos. A evolução política actual abriu uma via decisiva à aplicação dos resultados obtidos no domínio da biologia da hereditariedade e da higiene da raça. (Verschuer «L'image hereditaire de l'homme» 1942: 78-79)

A imuno-esterilização asseguraria a protecção de uma população saudável com base em pressupostos hereditários. A novidade biopolítica fundamental é que esses pressupostos sofrem um alargamento para a ordem social que já está em latência em

todo o projecto eugenético, seja o do séc XIX, ou o nazi, ou até o contemporâneo como veremos. A intromissão da (eu)genética na ordem social é uma das bases do poder soberano extra-jurídico, uma suspensão de toda a lei e neste caso, a Lei de esterilização nazi vigorou como uma anti-lei, tal como a lei de saúde mental introduzida por Esquirol o seria, porquanto os seus fundamentos permanecem (a)científicos e totalmente politizados. A politização dos fundamentos biomédicos conduz a uma zona de indiscernibilidade da lei que entra assim numa região imunológica. A imunologia política necessita sempre e uma vez mais de fundamentos biológicos, embora vertidos num léxico biomédico inteiramente politizado, extensível ao corpo social que foi assim entendido como «corpo biológico da nação». A figura proeminente da imunologia política nazi foi o heredo-médico, o médico que providencia a selecção hereditária no exterior como no interior do Lager. Nesse sentido, toda a sociedade da Alemanha nazi estava transformada num imenso Lager onde se decidia a manutenção ou não das condições de vida. O médico do Lager e do hospital psiquiátrico é um executante da imunologia política na sua dimensão tanatológica. Porém, Verschuer, numa proposta mais abrangente sobrepõe um tipo médico, o heredólogo, a quem está reservada uma missão, não propriamente a de curar ou de aliviar o sofrimento mas do que chamaríamos a selecção social.87 Um tal empreendimento de darwinismo social pede a colaboração do corpo de médicos por duas razões: 1) A sua capacidade «científica» de poder isolar o agente patológico, diagnosticando o corpo social em profundidade; 2) A confiança que naturalmente o paciente deposita nesse mesmo conhecimento.

O seu papel é velar pela hereditariedade, velha noção que se encontra no cerne da biopolítica nazi e que encabeça as exigências eugénicas dirigidas aos heredo-doentes. Uma das vertentes mais singulares desta biopolítica é que os seus destinatários não são os judeus mas o próprio povo alemão que colaborará para o auto-escrutínio das patologias genéticas. Aqui vemos subitamente reunidos os requisitos de uma predisposição disciplinar (trata-se de uma análise corpo a corpo até atingir a multiplicidade da espécie ou o corpo social) que apela a uma iniciativa do cidadão. Na medida em que o despiste da doença hereditária faz problema à comunidade, a questão imediatamente levantada é então a seguinte: o sujeito está hereditariamente doente ou

                                                                                                                         

87 No primeiro parágrafo do Regulamento para os médicos do Reich de 13 de dezembro de 1935, o

médico é convocado a desempenhar essa tarefa de selecção hereditária: «O corpo médico alemão é chamado a agir para o bem do povo e do Reich, no sentido da manutenção e da melhoria da saúde, do património hereditário e da composição racial da etnia alemã.» (Apud Verschuer, 1943: 239)

saudável? A individualidade deve ser aniquilada a favor de uma comunidade a cumprir, aniquilamento da doença e também extinção da vontade individual para que um todo orgânico elevado a Estado geral possa ser higienizado.

Dezenas de milhar de cidadãos alemães deixaram-se esterilizar. Trata-se de um sacrifício do qual todo o povo alemão, e sobretudo as crianças e recém-nascidos, devem estar reconhecidos. Devemos manter e fomentar este espírito de abnegação. Devemos ainda pedir aos esterilizados o sacrifício suplementar de uma alargada limitação dos casamentos. (Verschuer, 1943: 240)

E neste voluntarismo abnegado, o heredo-médico tem um papel crucial no aniquilamento da singularidade, em benefício da comum imunidade (comunidade):

A actividade do médico heredólogo, no quadro da execução das leis eugénicas, distingue-se da acção médica normal porque aquela não acarreta qualquer alívio terapêutico, e frequentemente não traz nenhum benefício imediato pessoal ao doente. No entanto, totalmente subordinadas que estão aos superiores desideratos da eugenética étnica e familiar, as medidas de higiene racial são verdadeiras práticas médicas de saúde. (Idem: 240)

Mas convém que nos detenhamos num ponto: a vida indigna de ser vivida, a que justamente todo o programa eugénico se dirige, não é um conceito médico ou ético.88 É um conceito político. Mas na medida em que o médico desempenha um papel de relevo, as motivações estritamente políticas sofrem um deslocamento, como se a exposição soberana à morte fosse uma necessidade elevada em prol de uma intensificação real da manutenção do vivente - uma autopreservação do vivente a partir da morte e um sacrifício da vida sem valor em prol do vivente.

                                                                                                                         

88 Por isso, tem razão Agamben quando a propósito do Programa de Eutanásia, declara: «La «vita

indegna di essere vissuta» non è, con ogni evidenza, um concetto etico, che concerne le aspettative e i legittimi desideri del singolo: è, piuttosto, um concetto politico, in cui è in questiome l'estrema metamorfosi della vita uccidibile e insacrificabile dell'homo sacer, su cui se fonda il potere sovrano.» (Agamben, 1995: 157)

O que Agamben pretende demonstrar, e fá-lo sem qualquer dificuldade, é o profundo entrosamento entre vida e política, tendo como resultado a suspensão da norma que incide sobre a vida sem valor (homo sacer ou vida nua). Este procedimento entre o corpo do vivente, que entra numa zona de indeterminação jurídico-política, e o soberano que decide sobre a instauração desse vazio onde uma violência emerge, captado apenas na esfera jurídico-política, não esclarece o papel dos médicos.

O que é um facto é que o Reich nacional-socialista marca o momento em que a fusão entre medicina e política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, começa a assumir a sua forma mais completa. Isto implica que a decisão soberana sobre a vida nua abandona as motivações e âmbitos estritamente políticos, deslocando-se para um terreno mais ambíguo, em que o médico e o soberano parecem trocar de papéis. (Agamben, 1995: 159, ênfase nosso)

Ora, a conexão necessária entre a atitude terapêutica e a tanatopolítica (a imunologia política negativa) parece não ter interessado a Agamben, ficando aquém da sua conceptualização, para desenvolver apenas a dimensão onto-política da violência soberana. E isto apesar de considerar, como atrás se encontra devidamente assinalado, que a «fusão entre medicina e política» é «uma das características essenciais da biopolítica moderna». Se assim é, e apesar de estar num limiar prometedor em que se deixa insinuar essa conexão profunda, Agamben não desenvolve os termos dessa relação, cuja pedra-de-toque é a medicalização. Não se trata de um mero deslocamento da problemática como o autor deixa entrever, mas uma conexão ou imbricação filosófico-política.

Com Esposito, o genocídio deve ser visto no ponto de intersecção/intercâmbio entre norma biológica e norma jurídico-política, onde as categorias de degeneração- hereditariedade-regeneração89 desempenham um papel fulcral na lógica nacional- socialista.

                                                                                                                         

89 Foucault assinala de forma suficiente e em vários passos da sua obra esta ligação entre a degeneração e

a medicalização pelo que bastará um dos momentos: «La Dégénérescence est la pièce théorique majeure de la médicalisation de l'anormal. Le dégénéré, disons en un mot que c'est l'anormal mythologiquement - ou scientifiquement, comme vous voudrez - médicalisé.» (Foucault, AN: 298)

Os conceitos a mobilizar são claramente o de degeneração (ausente nas reflexões de Agamben), medicalização (ignorado deliberadamente) e eugenia. Agamben, profundo conhecedor da obra de Foucault, está ciente da importância do conceito de medicalização para a biopolítica da modernidade, preferindo concentrar-se na relação entre a vida nua e o direito. É esta indissociável "socialidade" entre medicalização e biopolítica, que não despertou a atenção de Agamben, que se torna imprescindível desenvolver, ou repor, para a compreensão extensiva da higiene racial.

A biologização da política deve ser, assim, retomada a partir de Foucault, para quem a medicalização é uma chave hermenêutica no entendimento das relações de poder e para os critérios de distinção entre o norma(l) e o (a)norma(l). O confronto entre a lei e a norma, ao arrepio do paradigma da soberania é certo, ocupou a reflexão foucaultiana nesse esforço de fundar o poder disciplinar. A genealogia que conecta perversão-hereditariedade-degeneração mantém-se na linha de continuidade de uma biopolitização que vai de Morel a Verschuer.

Agamben filia-se nesse ponto de intersecção entre biopolítica e soberania ou como linha de fuga, linha de derivação, da soberania como produção da vida nua. O médico-sacerdote rivaliza com o soberano na produção da vida nua sem que se esclareça a ligação fundamental ao impulso medicalizador como controlo ou higiene social, cujo levantamento genealógico Foucault foi elaborando desde os seus estudos sobre alienismo/psiquiatria.

Para Foucault o governo da vida que marcaria o aparecimento da biopolítica provém de uma crise da soberania. Mas o soberano que controlava outrora a vida (outorgando a morte aos súbditos em rebelião) obstinado com a morte como controle não deixou de vigorar na tanatopolítica. Seria suposto a modernidade organizar a saúde das populações sustentada na relação entre o indivíduo e a comunidade. Mas seria a biopolítica um governo vital das populações? Para Esposito a preocupação biopolítica dirige-se ao ser vivo na sua constituição específica, ou seja, a metáfora organicista dirigir-se-ia ao corpo material dos indivíduos constituídos em população (população em sentido biológico). E nesse sentido a biopolítica converte-se em instituição sanitária (precisamente o que Foucault designa a nosopolítica) imiscuindo a intervenção estatal no saber médico. E é nesta implicação na cena pública de um saber médico que remete para uma implicação absoluta entre norma e direito, encerrando a política nos limites da

vida. Assim conclui Esposito na obra Immunitas: «Daí o processo de ilimitada medicalização que vai muito para além do campo sanitário, numa osmose crescente entre o biológico, o jurídico e o político.» (Esposito 2002, 165) Esta correlação autorizou a ingerência da medicina na esfera jurídica, nomeadamente na distinção entre o normal e o patológico permitindo a transitividade entre a lei e a norma.90 Mas Esposito irá inscrever decisivamente o paradigma biopolítico na dimensão imunitária, onde o vivente se confronta com o seu contrário. Nesse cruzamento entre política e vida a primeira instância ou finalidade é a protecção da vida mas, no seu limite, isso implicará uma via negativa. As razões para essa vida negativa estão bem descritas por Foucault no processo de medicalização onde se explicitam os limites firmados pelas normas político-administrativas e higiénico-sanitárias. A intervenção terapêutica produziu a seu tempo uma reciprocidade inversa e indissociável entre protecção e risco. E na história da medicina essa implicação disjuntiva foi evidente:

Uma das principais refere-se ao mesmo tratamento imunitário que, para defender o organismo, acabou por debilitá-lo, determinando um decréscimo geral no seu umbral de sensibilidade aos agentes agressores. Isto quer dizer que - como sucede amplamente no âmbito dos sistemas sociais contemporâneos, cada vez mais neuroticamente obcecados com o imperativo de segurança - é justamente a protecção que gera o risco do que pretende defender. (Esposito, 2002: 169)

Para Foucault, a dimensão da norma é ainda biopolítica por excelência e a protecção contra riscos é uma perigosa fronteira que se transpõe, que nos leva a uma ambiguidade insanável. A saúde tornou-se uma finalidade da luta política e a tecnologia médica, a luta contra as doenças, tornou-se um dos objectivos do Estado. Esse facto revela a profunda implicação entre a história do homem e a vida. Medicina como prática social, sobre uma descolagem sanitária (décollage sanitaire) mas que instaura uma distância entre a sua positividade e a sua eficácia. O efeito nocivo da medicina estende-

                                                                                                                         

90 «Esso è ben rappresentato dal transito, semantico ed orfinamentale, dal linguaggio sovrano della legge

a quello, biopolitico, della norma: se la legge ancora sottometteva la vita ad un ordine ad essa presupposto, la norma rimanda ad una implicazione assoluta tra biologia e diritto che, mentre stabilisce giuridicamente i confini della competenza medica, consente al medico di definire la soglia di punibilità di una condotta illegale attraverso la distinzione tra criminilità ed anormalità.» (Esposito, 2002: 165)

se ao uso dos medicamentos, cujos efeitos terapêuticos positivos produzem igualmente uma destruição do ecosistema, quer do indivíduo quer da espécie. O que Foucault chama a economia política da medicina e que conduz aos «Estados Médicos abertos» com uma medicalização sem limites, é o facto de a medicalização se ter convertido à economia, a uma bio-economia, a uma mercantilização. De facto, a eficácia da medicina produz efeitos incontrolados (podemos dizê-lo, autoimunitários, embora Foucault não fale no conceito) mas a história da medicina é igualmente uma história dos riscos, do nascimento do risco. A história da medicina desde o século XVIII é a história do risco médico, isto é, o laço paradoxal entre os efeitos positivos e os negativos, entre as consequências positivas e negativas.91 Com esta questão Foucault aflora claramente a lógica antitética do modelo da medicina e dos seus efeitos sociais quando aplicados ao governo dos vivos.

Se a medicina sancionou um modelo eugénico este não se destinava apenas a um destinatário judaico; ao invés, a aplicação do modelo aos judeus resultou a partir de uma generalização do modelo a toda a sociedade a melhorar. Não se tratava, na medicina nazi, de uma extirpação do corpo judaico no corpo alemão mas da eliminação do grau virulento em toda a sociedade, da qual os judeus eram parte integrante. A primeira lei nazi no âmbito da política racial criada a 14 de Julho de 1933 (no mesmo dia em que se proibiram os partidos políticos), Lei para a Prevenção da Descendência Geneticamente Doente (Gesetz zur Verhütung erbkranken Nachwuchses) ou Lei da Esterilização, não se dirigia apenas a judeus mas a indivíduos portadores de doenças genéticas e que, sob o veredicto do tribunal de doenças genéticas, deveriam ser esterilizados incluindo os portadores de atraso mental, esquizofrenia, loucura maníaco-depressiva, epilepsia genética, coreia de Huntington, surdez ou cegueira genética ou alcoolismo severo. A ligação entre a legislação genética e a prevenção da criminalidade embora esta lei não tivesse um sentido punitivo. Em 1938 existiam 181 tribunais para aplicação da Lei de Esterilização. Veschuer era editor do suplemento Der Erbarzt, onde se discutiam os métodos de esterilização e, no seu primeiro número, anunciava-se como intenção do

                                                                                                                         

91 «On sait, par exemple, que le traitement anti-infectieux, la lutte menée avec le plus grand sucées contre

les agents infectieux ont conduit à une diminution générale du seuil de sensibilité de l'organisme aux agents agresseurs. Cela signifie que, dans la mesure où l'organisme sait mieux se défendre, il se protège, naturellement, mais, d'un autre côté, il est plus fragile et plus exposé si l'on empêche le contact avec les stimuli qui provoquent les réactions de défense. [...] La protection bacillaire et virale, qui représente à la fois un risque et une protection pour l'organisme, avec laquelle il a fonctionné jusqu'alors subit une altération due à des attaques contre lesquelles l'organisme était protégé.» (Foucault, «Crise de la médicine ou crise de l'antimédecine», DEIII: 46).

jornal a ligação entre os ministérios da saúde pública, os tribunais de doenças genéticas e a comunidade médica alemã. Vershuer proclamava a recondução da medicina tradicional à saúde genética sob o estandarte biopolítico de uma ligação inteiramente biológica entre o povo (Volk), a família e a raça. A intensificação da saúde do povo necessitava de uma proclamação da sua singularidade como todo diante de partes que se devessem submeter-lhe. A forma dessa submissão reproduziria o modelo disciplinar, para usarmos a terminologia foucaultiana. O propósito da higiene racial não é um

leitmotiv individual; ele deve basear-se na dissolução numa identidade nacional. O

médico genético seria, neste caso, o mediador entre o indivíduo e a sociedade e a imposição dessa relação não contratual, ou pelo menos, não democratizável ou discutível, seria a legislação genética.92 Divisa-se aqui uma engrenagem genética por via de um mecanismo disciplinar soberano médico-legislativo.

O recurso crescente a metáforas medicalizadoras na imunopolítica nazi, das quais as mais tristemente famosas apontavam para o judeu como sendo um cancro no corpo do povo alemão, convergia para a intenção de considerá-lo como tendo maior incidência de doenças mentais e metabólicas. A ligação entre a saúde genética (Erbgesunden) e o sangue Alemão (Deutschblütigen) excluiam os não-Arianos foi estabelecida sobretudo com as leis de Nuremberga de 1935, colocando a medicalização do judeu sobre bases biológicas. (Proctor, 1988: 195)

A imunopolítica do totalitarismo e a protecção sacrificial da