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A cruzada antimasturbatória e a modernidade do onanismo

Os motivos do discurso antimasturbatório que se inicia no século XVIII não são económicos; eles relevam do investimento medicalizador sobre a família afectiva e sexual de forma subordinada à intervenção externa do médico - um saber externo que inscreve a masturbação na ordem patológica e menos no domínio moral. O saber médico patologiza a infância e faz a sexualidade falar, porém o médico é o único ouvinte. O médico que escuta a confissão é herdeiro das técnicas pastorais (Foucault,

AN: 238) e a família como agente medicalizador é intermediária no processo educativo.

De um lado o silêncio discursivo da família e do outro o médico-confessor que desenvolve unilateralmente o aparelho discursivo, a instância de controle, intrusão científico-política.

A cruzada é menos da ordem da moralização do que da somatização, discurso que fez falar o sexo durante décadas sobre um tema que aproximou a medicina do corpo sexual da criança, corpo descarnado, pleno de ulcerações, que exalava um odor nauseabundo em vida. O discurso da cruzada antimasturbação é uma introdução à morte do corpo infantil derramada nos tratados de medicina. Quais as formas dessa somatização? 1) A fabulação da doença total. O jovem masturbador é o retrato da morte com o esgotamento de um corpo debilitado, inteiramente invadido num discurso a meio termo entre a ficção científica e a medicina oficial; 2) Codificação etiológica e polimorfismo de sintomas. A masturbação origina diferentes doenças: meningite, mielite, danos na medula espinal, degeneração óssea, tísica e tuberculose. Neste caso a masturbação é essa causa imaginária de doenças inexplicáveis; 3) Delírio hipocondríaco. O doente fala de si, escreve a sua «carta do doente» onde descreve os sintomas imaginários envoltos na auto-culpabilização: «Meses depois [...] ao levantar-me de manhã, cuspia sempre sangue, ora vivo, ora decomposto.» Auto-somatização permanente por ordem dos médicos. (Foucault, AN: 225)

Qual o motivo dessa cruzada, por que se pede afinal aos pais que cuidem dos filhos? Foucault adianta duas respostas. Por uma lado, torna-se a família penetrável às técnicas de poder cujos transmissores são a medicina e os médicos, por outro, a sexualidade é um dos instrumentos que permitiu o deslocamento da criança do espaço familiar para o «espaço institucionalizado e normalizado da educação». A sexualidade da criança foi o engodo que tornou possível a ilusão parental de uma educação sexual assumida pela escola, pelo Estado e pela instância-psi, que Foucault não hesita em classificar como um engodo, um logro.29

A masturbação é um problema da modernidade. Por que motivo? O que liga uma pretensa perturbação social e fisiológica a uma etapa histórica, a um momento de apropriação pelo discurso médico e moral a ponto de sobre ela se erguer todo um manancial discursivo que durou décadas, unindo o «discurso da carne e a psicopatologia sexual?» (Foucault, AN aula de 5 Mar 1975) No fundo, é a intensa patologização do corpo de prazer, é a carne que é patologizada na rotação do eixo que liga e devolve a renúncia pastoral à subjectividade médica. É a carne arcaica que é alvo das políticas sexuais da modernidade e a protecção do jovem contra o malefício do prazer não pretende a salvação da alma mas a saúde da população.30 Vigiar o corpo e cuidar da alma é a partir desta época um procedimento médico-administrativo às custas de uma «medicalização do espaço social» (Rose «Medicine, History and the presente»). O dispositivo de sexualidade age no caso da masturbação num contexto claramente repressivo, repondo a hipótese repressiva que Foucault afasta decisivamente no primeiro volume da Histoire de la sexualité. Se o dispositivo de sexualidade não é meramente repressivo ele acaba por representar uma instância de controle, neste caso coercitiva,

                                                                                                                         

29 «Dêem-nos os seus filhos e o poder de vocês sobre o corpo sexual deles, sobre o corpo de prazer, será

mantido. E agora os psicanalistas começam a dizer: "A nós, a nós, o corpo de prazer das crianças!"; e o Estado, os psicólogos, os psicopatologistas, etc. dizem: "A nós, a nós, essa educação!" Aí está o grande engodo no qual o poder dos pais caiu.» (Foucault, AN: 242) Em abono da verdade, a educação sexual hoje ou melhor, a educação para a saúde, é mais um motivo de desorientação do que um investimento do Estado, das famílias e da escola. O que fazer com o corpo da criança? Ninguém sabe no imenso falatório que continua a proliferar. A instância-psi continua a tentar manter a supremacia de séculos, autoridade científica confusamente outorgada nesse séc. XVIII (conforme demonstra Foucault), naturalmente isenta dos equívocos para fixar a autoridade médico-científica. O prazer é possível e o que se pretende evitar são as doenças sexualmente transmissíveis. Mas como uma instância externa produz essa regulação de comportamentos? Apelando naturalmente à responsabilidade pessoal, fazendo circular a informação necessária. Mas quem assume esse papel, as campanhas, os médicos, a escola, o Estado, o indivíduo, a ciberpornografia, a cibermedicalização?

30 A intrusão familiar do dispositivo de sexualidade é uma nova pastoral que deriva do dispositivo de

aliança: os seus instrumentos são a penitência e o corpo da sensação. É a problemática da carne que depois é psicologizada e psiquiatrizada. «La famille, c'est le cristal dans le dispositif de sexualité: elle semble diffuser une sexualité qu'en fait elle réfléchit et diffracte.» (Foucault, HS1: 147)

que filtra a sexualidade pelas regras sociais e instaura um discurso do patológico que mais não é do que a sobreposição da norma social sobre a norma vital.

Poderíamos citar muitos outros centros que a partir do século XVIII ou do século XIX, entraram em actividade para suscitarem os discursos sobre o sexo. Em primeiro lugar, a medicina, por intermédio das «doenças de nervos»; seguidamente, a psiquiatria, quando se põe a investigar para os lados do «excesso», e depois do onanismo, e depois da insatisfação, e depois das «fraudes à procriação», da etiologia das doenças mentais, mas sobretudo quando anexa, como seu domínio próprio, o conjunto das perversões sexuais; e ainda a justiça penal, sobretudo sob a forma de crimes «graves» e contra a natureza, mas que, por volta dos meados do século XIX, se abre à jurisdição minuciosa dos pequenos atentados, dos ultrajes menores, das perversões sem importância; por fim, todos aqueles controlos sociais que se desenvolvem no fim do século passado e que filtram a sexualidade dos casais, dos pais e das crianças, dos adolescentes perigosos ou em perigo - procurando proteger, separar, prevenir, assinalando por toda a parte perigos, despertando atenções, exigindo diagnósticos, acumulando relatórios, organizando terapêuticas; em torno do sexo, eles irradiam os discursos, intensificando a consciência de um perigo incessante, que por sua vez relança o incitamento a que dele se fale. (Foucault, HS1: 42-43)

Em Histoire de la sexualité Vol. 1, a cruzada contra o onanismo é integrada na «pedagogização do sexo da criança». Mas qual o agente dessa «implantação perversa» que se conjuga com a «medicalização do insólito sexual»?31 qual o agente senão o «regime médico-sexual» que sobre-codifica os códigos já existentes - o direito canónico, a pastoral cristã e a lei civil - e provoca uma demanda sobre as «sexualidades

                                                                                                                         

31 «L'une des raisons pour lesquelles cette interdiction stupide de la masturbation a persisté pendant si

longtemps tient au plaisir et à l'inquiétude, à tout le réseau d'émotions que cette interdiction suscite. Chacun sait bien qu'il est impossible d'empêcher un enfant de se masturber. Il n'y a aucune preuve scientifique qui indique que la masturbation soit nuisible. On peut être sûr, au moins, que c'est le seul plaisir qui ne niut à personne. Alors, pourquoi donc a-t-on interdit la masturbation pendant si longtemps? À ma connaissance, on ne trouve pas, dans toute la littérature gréco-latine, plus de deux ou trois références à la masturbation. La masturbation n'était pas considérée comme problème. Elle passait, dans la civilisation grecque et latine, pour une pratique à laquelle s'adonnaient les esclaves ou les satyres. Il n'y avait aucun sens à parler de masturbation pour des citoyens libres.» (Foucault, «Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins» DEIV: 531-532

periféricas»? Não assistimos nós ao nascimento da perversidade sexual nesse mundo de pequenas infâmias sujeitas à vigilância da pedagogia e da terapêutica? Não é a repressão que as move mas o exercício do poder. «Mas a medicina essa entrou em força nos prazeres do casal: inventou toda uma patologia orgânica funcional ou mental, que nasceria das práticas sexuais «incompletas»; classificou cuidadosamente todas as formas de prazeres anexos; integrou-os no «desenvolvimento» e nas «perturbações» do instinto; chamou a si a sua gestão.» (Foucault, HS1: 56) É a sociedade burguesa que atrai a si todas as esquisitices, acaricia os corpos, na relação difusa entre o poder e o prazer: «O prazer difunde-se no poder que o persegue; o poder fixa o prazer que acaba de detectar». (Idem: 49) Esse jogo perpétuo tem os seus protagonistas que se envolvem no governo da saúde: o médico/doente, o psiquiatra e o seu histérico e o seu perverso. A implantação perversa é uma corporificação/incorporação, um inclusão identitária no corpo do indivíduo moderno (a sociedade moderna é perversa dirá Foucault), na forma como vive nos seus espaços (o lar, a escola, a prisão), é um «efeito-instrumento» que mais não faz do que consolidar essas sexualidades num exterior que é transportado para o interior mas sempre exteriorizável. Sobre a perversidade não se elege um processo de repressão mas de integração, entronização científica, ou melhor, auto-entronização porque auto-glorificação da sua cientificidade. As sociedades industriais precisam dos seus perversos; sobre eles edificam discursos e anamneses infindas, narrativas de auto- narrativas, terapias e prescrições e auto-terapias do corpo que fala sobre si e se molda a uma imagem que já não é exterior nem interior. A imagem da perversidade é uma imagética de fronteiras esbatidas e próximas, distantes e aniquiladas, necessárias oferecidas à saciedade do público e dos peritos biopolíticos. Da mesma forma assistimos ao apogeu e ao declínio da histeroepilepsia recodificada a partir da velha noção de concupiscência cristã. A alma pecadora possui agora uma versão racional e científica e da concupiscência à histeroepilepsia, é a convulsão que ganha forma na neuropatologia. Convulsão que vai ser o protótipo da loucura, mecanismo instintivo do organismo humano.

Compreende-se como se pôde edificar, no seio da psiquiatria do século XIX, esse monumento para nós heterogéneo e heteróclito que é a famosa histeroepilepsia. No centro mesmo do século XIX, a histeroepilepsia (que reinou desde os anos 1850 até à sua demolição por Charcot em 1875-1880, mais ou menos) foi a maneira de

analisar, sob a forma da convulsão nervosa, a perturbação do instinto tal como havia surgido da análise das doenças mentais, em particular das monstruosidades. (Foucault, AN: 208)

O homossexual torna-se uma nova espécie, cuja categorização psicológica, psiquiátrica e médica data de 1870 com o artigo de Westphal. A medicina confere um princípio de inteligibilidade às perversões, cola-as aos comportamentos, torna-as «coisa medicalizável», essencializa-as, podemos dizê-lo, no «fundo do organismo, na «superfície da pele» ou nos «sinais de comportamento». No século XIX, o poder é visual, mas também háptico, é um poder apaixonado pela anatomia, pela sensualidade e pelo prazer, poder incorporado ou corporificado, não deixando de projectar-se de forma problemática sobre o casal heterossexual, pelo menos enquanto modelo familiar. Na verdade, os prazeres e poderes sobre a família agem num regime de multiplicidades, numa rede saturada de sexualidades múltiplas pelo facto de convocarem outras formas de sexualidade. «A sociedade «burguesa» do século XIX, sem dúvida ainda a nossa, é uma sociedade da perversão esplendorosa e difundida.» (Foucault, HS1: 64) A sociedade moderna é perversa, declara Foucault, mas qual o motivo dessa multiplicação das esquisitices sexuais, para falar delas? Os prazeres do corpo e a sua problematização não existiam nas sociedades pré-modernas ou mesmo na Antiguidade? Que transformação se deu entretanto? Sugiro que o princípio de generalização que operou baseou-se na medicalização sucessiva dos comportamentos. O cepticismo moral cristão, o paradigma teológico da perversão declina a favor de uma explicação médica «científica» dos comportamentos, mais terrena, mas igualmente com maior grau de certeza. O princípio da certeza entronca com o princípio de generalização em relações cada vez mais difusas que a coerência nosográfica e classificadora ordena à sua maneira. O médico, o alienista descentraliza os prazeres denunciados pela visão teológica do mundo e recentraliza-os sobre si; ele é agora o pólo difusor dos heretismos e explica-os com uma nova autoridade. Assistimos, assim, ao nascimento de uma autoridade biopolítica, a mais importante em matéria de perversão sexual. A sensualidade do corpo é confiscada ao pecado da carne e a organização da anomalia far-se-á em torno de outros conceitos, como a noção de instinto. Se a masturbação foi retirada à revelação penitencial do século XVIII ela é agora trazida para o campo da anomalia - a medicina pedagógica da masturbação é uma anatomia política do corpo. A modernidade que

produziu a racionalidade médica inventou também a anomalia. E a matriz desse discurso que se encastoa nas pequenas perversões, anódinas umas, espectaculares outras, é a confissão, a velha máquina de fazer falar e calar do ritual monastical, ritual que faz coincidir o sujeito falante com o sujeito do enunciado, que leva a uma prática de si (conceito tardio) mas sobretudo a uma dominação de quem escuta. Quem fala submete- se e constitui um arquivo; e é precisamente esse arquivo que a medicina e a pedagogia começará a organizar criando um registo, um catálogo infinitesimal dos prazeres. Os psiquiatras tinham o sentido do acontecimento, eles medicalizam os efeitos da confissão, diz Foucault. «Era o momento em que os prazeres mais singulares eram chamados a proferir sobre si próprios um discurso de verdade que tinha de se articular já não com aquele que fala do pecado e da salvação, da morte e da eternidade, mas com o que fala do corpo e da vida - com o discurso da ciência.» (Foucault, HS1: 86) Mas não é só a vida. A anomalia traz consigo a morte imanente e simultaneamente uma imanentização das relações de poder, uma transferência horizontal que se dissemina numa multiplicidade de pontos descontínuos, que actua nos aparelhos de produção, nas famílias, nas instituições e em todo o corpo social. O poder não segue uma relação binária, dividindo dominadores e dominados como na visão ortodoxa marxista. Visão nominalista do poder que o projecta para todos os espaços, omnipresença de uma outra divindade teológico-política, um reino sem glória que não deixa de fazer a sua guerra. E a política é a guerra empreendida por outros meios. E esse investimento nos prazeres polimorfos, essa teia que se urde entre o saber e o poder, por via da medicalização conferem uma matriz de relações de poder, uma grelha de inteligibilidade sem um ponto central por onde irradiaria essa dominação; o poder é um agenciamento, um diagrama de redistribuições e alinhamentos, arranjos de série e colocações em convergência, estratégias anónimas. Mas o corpo resiste e as resistências acompanham essas estratificações quer ao nível individual, quer ao nível institucional. «Os pontos, os nós, os centros de resistência, são disseminados com maior ou menor densidade no tempo e no espaço, erguendo às vezes grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo.» (Foucault, HS1: 127)

E o sexo tem valor político, tanto para as disciplinas como para o biopoder. 32 Foucault oscila em Histoire de la sexualité vol. 1 entre a definição das disciplinas

                                                                                                                         

32 O sexo é um elemento charneira entre a anatomopolítica e a biopolítica. Como argumenta Foucault:

(como forças de adestramento) e a biopolítica (como intervenção reguladora). E nas duas definições de poder o primado da soberania é afastado. A resistência da vida contra essas dominações, essa oposição da vida contra os mecanismos de domínio desse «limiar da modernidade biológica», não se identifica com uma luta contra a soberania. Mas a sombra fantasmática da soberania continua a pairar nessa bio-história, até ao momento em que ela se torna vida nua (como veremos na problematização de Agamben). Diante de uma biopolítica negativa que dissolve a política no biológico, reduzindo a sua função simbólica ao aniquilamento da vontade e ao emaciamento do corpo «muçulmano», do imbricamento entre o biológico e o histórico, onde encontrar a resistência?

Daí o aparente fracasso da psicanálise ao insurgir-se contra a neuropsiquiatria da degenerescência, procurar instituir a figura da lei como regente da sexualidade, lei do Pai-Soberano. O princípio de soberania apenas poderia edificar-se por meio da repressão sob a forma da sua figura maior: o princípio de castração. A psicanálise pretende fundar uma nova teocracia do sexo: o poder edifica-se em torno do desejo e da sua repressão (castração); ela convoca o biológico e o histórico nos mesmos moldes da psiquiatria, com a psiquiatrização da infância e o relevo dado ao instinto ou pulsão. A psicanalização das perversões é diferente da psiquiatrização dos desvios, a função do instinto e do «sexo» diverge?

O conceito de degenerescência que fez fortuna a partir da segunda metade do século XIX sobretudo com Morel, não é uma projecção do evolucionismo biológico sobre a psiquiatria. Ele é anterior mas acaba por se relacionar com o darwinismo.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

psiquiatrização das perversões oscila entre um discurso anódino e charlatão (como no caso da cruzada antimasturbatória), a biologia, a fisiologia e a moral. No caso da histerização das mulheres, assistimos mesmo a uma medicalização minuciosa do corpo feminino. À medida que se incrementa a biopolítica, ou seja, a politização da vida, o biológico e o histórico-político interferem cada vez mais numa relação ambivalente. O dispositivo de sexualidade faz a conexão de todos esses elementos heterogéneos - elementos anatómicos, funções biológicas, comportamentos, sensações e prazeres - numa unidade que Foucault designa como fictícia (unité fictive) (Idem: 204) Mas o sexo não se organiza tanto em torno de uma biopolítica positiva (gestão da vida) como é afirmado na p. 193: «Le sexe devient une cible centrale pour un pouvoir qui s'organise autour de la gestion de la vie plutôt que de la menace de la mort». Num passo decisivo e mais adiante onde alude ao pacto faustiano onde se pode trocar a vida pela verdade do sexo, sendo este atravessado pelo instinto de morte: «Et tandis que le dispositif de sexualité permet aux techniques de pouvoir d'investir la vie, le point fictif du sexe, qu'il a lui-même marqué, exerce assez de fascination sur chacun pour qu'on accepte d'y entendre gronder la mort.» (Idem: 206-207) Ele lida com processos de morte (no caso das perversões, o onanismo, a SIDA, etc) Foucault nunca problematizou a questão da Sida face ao dispositivo de sexualidade, talvez porque se encontrasse numa fase muito preliminar da epidemia.

Por outro lado, o outro conceito em face do conceito de "instinto" é o de "degenerescência" - conceito infeliz este, de degenerescência, ao passo que o de instinto, no fundo, prosseguiu a sua carreira de validade por muito mais tempo. [...] A degenerescência, tal como Morel a define, intervém antes de Darwin, antes do evolucionismo. E o que é a degenerescência na época de Morel, e o que continuará a ser fundamentalmente até ao seu abandono, isto é, no início do século XX? Será chamada de "degenerada" a criança sobre a qual pesam, a título de estigmas ou de marcas, os restos da loucura dos pais ou dos ascendentes. A degenerescência é, portanto, de certo modo, o efeito de anomalia produzido na criança pelos pais. E, ao mesmo tempo, a criança degenerada é uma criança anormal, cuja anomalia é tal que pode produzir, em certo número de circunstâncias determinadas e após certo número de acidentes, a loucura. A degenerescência é portanto a predisposição para a anomalia que, na criança, vai tornar possível a loucura do adulto, e é na criança a marca em forma de anomalia da loucura dos seus ascendentes.

Assim, vocês estão vendo que essa noção de degenerescência vai demarcar a família, os ascendentes, por enquanto tomados em bloco e sem definição vem estrita, e a criança, e vai fazer da família a espécie de suporte colectivo desse duplo fenómeno que são a anomalia e a loucura. Se a anomalia conduz à loucura e se a loucura produz a anomalia, é porque já estamos no interior desse suporte colectivo que é a família. (Foucault, PP: 220-221)

A psicanálise critica a degenerescência elegendo como campo de aplicação o instinto. O «destino familiar do instinto», distinto da noção de degenerescência é o outro ponto de generalização da psiquiatria.

Se a campanha antimasturbatória é uma vigilância médica a partir de um plano de exterioridade que utiliza a família como intermediário, é notório que a família também desenvolveu a sua tecnologia endógena de poder. Isto é visível nas lettres de

cachet disciplinarização intra-familar das relações do poder que apelam à lei (sob a

forma da figura do rei) para velar pela sua auto-regulação. A moralização familiar tem