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Democracia, razão de Estado e liberalismo

Para Yves Zarka, a razão de Estado, aquando da sua constituição teórica, situava-se na mesma flexão problemática dualista já indicada por Foucault, ou seja, a da justificação religiosa da arte de governar e a da racionalização da política. Contudo, numa ordem puramente secular como a nossa, o conceito deve lidar sobretudo com a legitimidade política que opõe a democracia, que em princípio não necessita de uma razão de Estado, ao totalitarismo que a invocaria como os arcana imperii de outrora (a ideia de um segredo de Estado), só que de forma ilegítima. («Peut-on se débarasser de la raison d’État?» in Zarka, 2001: 109). É, portanto, no interior desta oposição que se joga o papel da razão de Estado, visto que as práticas ligadas à razão de Estado conflituam com o Estado de direito e corresponderiam mesmo à sua suspensão. Assim sendo, que sentido faria a invocação de uma razão de Estado num regime democrático? Zarka adianta quatro ordens de motivos: 1) a necessidade da suspensão pontual do estado de direito devido a uma conjuntura excepcional inesperada (guerra, golpe de Estado, atentado terrorista); 2) uma tensão entre direito e poder manifestada por uma crise no interior da democracia, violando por conseguinte, a legalidade; 3) por uma sobreposição do interesse privado sobre o interesse público (o caso da corrupção); 4) a destruição do princípio de soberania do povo (demagogia dos eleitos e despotismos dos nomeados). Como se depreende, a invocação da razão de Estado mascara a crise que atinge a democracia.

No curso Naissance de la biopolitique, Foucault faz a genealogia do liberalismo, de que nos ocuparemos apenas para concretizar alguns temas próprios desta arte de governar e a sua atitude face à razão de Estado. O que pode ser dito, desde já, é que a razão de Estado acaba por enfrentar um princípio de limitação interna da sua racionalidade, logo uma limitação intrínseca. Esta crítica interna da razão governamental sob a forma de uma autolimitação ou autoregulação deve-se a um instrumento que, no fundo, se destina a assegurar a prosperidade de uma nação: a

economia política. «Creio que a economia política foi o que fundamentalmente permitiu assegurar a autolimitação da razão governamental.» (Foucault, NBP: 15)

É precisamente nesta autolimitação da razão governamental que reside um novo tipo de arte de governar a que nomeamos liberalismo. Esta nova tecnologia governamental possui como traços distintivos uma frugalidade do governo, uma regulação a partir do mercado que funciona como verdade, visto que permite através da troca unir a oferta, a procura, a produção, o valor, o preço, etc. é portanto o mercado que sanciona e que legitima a inteligibilidade e fundamento do processo económico. Por outro lado, o liberalismo é consumidor de liberdade: liberdade de mercado, do vendedor e do comprador, do direito de propriedade. A introdução do mercado como princípio regulador da sociedade implica não tanto um modelo baseado em trocas comerciais mas sim um tipo de racionalização concorrencial. O neoliberalismo alemão veio inserir esta liberdade de mercado no seio da razão de Estado – a liberdade económica é caucionada pelo Estado. Eucken, professor de economia influenciado por Husserl, que conheceu e que influenciou vários juristas da teoria do direito do século XX. Em 1936 funda a revista Ordo (Escola de Friburgo) que dá origem à corrente do ordoliberalismo. O seu objectivo era fundar um espaço de legitimidade estatal para os parceiros económicos em regime de liberdade. É a dinâmica concorrencial que impera. «A sociedade regulada segundo o mercado pensada pelos neoliberais, é uma sociedade na qual o que deve constituir-se como princípio regulador não é tanto a troca das mercadorias, mas os mecanismos de concorrência.» (Idem: 152)

Encontramo-nos perante o homo œconomicus, e a política de sociedade (Gesellschftspolitik) que o ordoliberalismo defende assenta, por um lado, no modelo de empresa (o indivíduo empreendedor e produtivo) e, por outro, a redefinição jurídica das regras em função da economia concorrencial. De que modo se equaciona o Estado de direito (Rechtsstaat) para os ordoliberais, ou seja, numa economia regulada pelo mercado? Ele opõe-se, em primeiro lugar, ao despotismo e, em segundo, ao Estado de polícia (Polizeistaat). «O Estado de polícia, qualquer que seja a origem do carácter coercitivo das injunções do poder público, estabelece um continuum entre todas as formas possíveis de injunção desse poder público. (Foucault, NBP: 174)

O Estado de direito permite que cada cidadão tenha ao seu alcance possibilidades concretas e institucionalizadas contra o poder público, o que faz com que

não se aja apenas no quadro da lei. As instâncias judiciárias – tribunais administrativos – podem interpor-se entre o indivíduo e o poder público. O Estado hitleriano visava a instrumentalização da vontade popular, justamente o oposto da intervenção legal na ordem económica procurada pelos liberais. O que se pretende é um princípio de intervenção meramente formal (economia não planificada). De acordo com uma economia formal, os agentes económicos movem-se num quadro de liberdade; é uma sociedade de empresa cuja dinâmica da concorrência apela a uma organização monopolística. Evitam-se os erros da economia planificada que suprime as liberdades. O neoliberalismo critica o Estado polimorfo, omnipresente, todo-poderoso apresentando uma crítica ao Estado nacional-socialista e ao regime económico da União Soviética. Como situar o Estado totalitário nesta perspectiva? Para Foucault, o Estado totalitário representa uma governamentalidade de partido (governamentalidade não estatal) e não algo como um Estado administrativo do século XVIII ou o Polizeistaat do século XIX.

[...] o que se passa é que, o que está actualmente em questão na nossa realidade, não é tanto o crescimento do Estado e da razão de Estado, mas sobretudo o seu decréscimo, que vemos surgir nas nossas sociedades do século XX sob estas formas: uma, que é precisamente o decréscimo da governamentalidade de Estado devido ao crescimento da governamentalidade de partido e, por outro lado, a outra forma de decréscimo como a que podemos constatar em regimes como o nosso, onde tentamos procurar uma governamentalidade liberal. (Idem: 197)

O ordoliberalismo viu no nazismo um crescimento indefinido do poder estatal. Para Foucault, ao contrário, o nazismo representa um enfraquecimento do Estado. De facto, o ordoliberalismo de Eucken, Röpke, Müller-Armack preconizava uma

Gesellschaftspolitik orientada para a constituição de um mercado, evitando a

centralização. Esta Gesellschaftspolitik comporta alguns equívocos que Foucault designa como económico-ético que deriva do alargamento da forma «empresa» a todo o tecido social em detrimento do indivíduo. Trata-se de uma reinscrição da sociedade sob a forma de empresa. Quanto ao neoliberalismo americano que é analisado a partir da lição de 14 de Março de Naissance de la biopolitique, este não se funda numa autolimitação do Estado – é ele próprio o fundador do Estado. O liberalismo americano reintroduziu o trabalho na análise económica, constituindo o homo œconomicus o

modelo do empreendedor, a fonte dos seus rendimentos. Trata-se da teoria do capital humano que transpõe para o campo económico uma série de preocupações alheias à economia clássica. O que é o capital humano? Ele é composto por um equipamento genético inato79 e, por outro lado, pela melhoria do desempenho ligado à competência- máquina com vista a uma maior produção e rendimento, o que significa um investimento educativo e formação profissional. Outro elemento deste capital genético é a mobilidade, a migração.

O homo œconomicus é um modelo da razão governamental desde o século XVIII seguindo a regra do laissez-faire. Na definição de Becker, ele é o que aceita a realidade, isto é, deixa-se governar pelas variáveis artificiais que intervêm no meio. É a dinâmica dos interesses que é preciso seguir na teoria jurídica do contrato de acordo com este princípio do laissez-faire. «[...] visto que a mecânica económica implica que cada um siga o seu próprio interesse, é preciso deixar cada um actuar. Não se deve intervir, segundo o poder político, nesta dinâmica que a natureza inscreveu no coração do homem.» (Idem: 284)

Este facto atesta que a economia é uma disciplina sem totalidade, funcionando a economia política como uma crítica da razão governamental anulando toda a possibilidade de um soberano económico. Isto contraria o Estado de polícia, a razão de Estado desde o século XVII como constituição de um princípio de soberania em matéria económica. Para os fisiocratas do século XVIII o soberano deveria manter uma postura de passividade teórica; o soberano é, portanto, o limite da actividade económica: pode tocar em tudo excepto no mercado. Finalmente um outro elemento vem juntar-se a esta nova arte de governar: a sociedade civil. Ela é o novo campo de referência:

A sociedade civil não é, portanto, uma ideia filosófica. A sociedade civil é, creio, um conceito de tecnologia governamental, ou antes, o correlativo de uma tecnologia de governo cuja medida racional se deve indexar juridicamente a uma economia entendida como processo de produção e de troca. (Idem: 299-300)

                                                                                                                         

79 Foucault salienta que a genética aplicada às populações humanas pode permitir a detecção de tipo de

risco ou doenças e também, por manipulação, melhorar o capital humano (utilização política da genética). (Foucault, NBP: 234 – 235).

A sociedade civil seria, assim, no pensamento político do fim do século XVIII até hoje, uma questão de limitação do exercício do poder do Estado, um descentramento da razão governamental.

Podia jurar: em todo aquele percurso, não falei com um único estrangeiro. E, no entanto, todos os meus conhecimentos mais profundos e rigorosos se articularam, de facto, naquele preciso instante. Ali, mesmo à nossa frente, estavam a ser queimados os nossos companheiros de viagem, todos aqueles que tinham querido ir nos camiões e todos os que o médico, por razões de idade ou por quaisquer motivos, havia considerado inaptos, bem como as crianças e, com elas, as mães e todas as outras que em breve o seriam, aquelas em quem esse estado se notava já, como diziam. Também eles tinham seguido directamente da estação para os balneários. Também eles haviam sido informados sobre os cabides, os números e o decorrer do banho, tal e qual como nós. Também lá teriam estado barbeiros - afirmava-se - e também lhes havia sido entregue sabão. E tinham sido conduzidos para os balneários, onde, disseram-me, também havia tubos e chuveiros: só que, deles, não tinham feito sair água, mas gás. Não soube tudo isto de uma só vez, mas a pouco e pouco, completado, aqui e acolá, com mais pormenores, alguns dos quais iam sendo postos em dúvida, outros aceites e mesmo corroborados por novos dados emergentes.

Imre Kertész, Sem Destino

De certo modo, a questão imunológica é a questão biopolítica por excelência, aí onde se cruzam os campos políticos, jurídicos e biológicos.

CAPÍTULO III