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Reconhecimento e comunidade O que fazer com os estrangeiros?

Referindo-se aos insurrectos da banlieue parisiense, Castel defende que «A violência colectiva é o modo de expressão política dos grupos privados de reconhecimento político.» (Castel, 2007: 61) Entre o estigma e a criminalização o enjeu continua a ser a raça.55 O perigo continua a residir na pertença a uma comunidade, que essencializa de tal modo a sua vivência cultural, que fornece uma base para a discriminação. Por outro lado, e em matéria de segurança o «espírito paroquial» de trancar janelas e instalar sistemas de vigilância nas fronteiras, patrulhas policiais para garantir o bem-estar individual, não diminui a intensidade das forças globalizadas. A defesa obsessiva da comunidade intensifica o medo.

Balibar sustenta que a etnicidade é uma categoria fictícia produzida por dois tipos de elementos que conferem credibilidade à nação: a língua e a raça. A ideia de uma nação ideal e a naturalização de uma pertença caminham a par. No entanto a ficção de uma identidade de raça e o simbolismo a ela associado como uma espécie de começo histórico produz a ideia de uma comunidade «natural» e «normal».

A ideia de uma comunidade de raça surge quando as fronteiras do parentesco se dissolvem ao nível do clã, da comunidade de vizinhança e, teoricamente pelo menos, da classe social, reportando-se imaginariamente ao limiar da nacionalidade.56

Bauman, por seu turno, não compreende o «fascínio popular com a questão da identidade» que liga a insegurança a problemas de identificação, argumentando que esse é um diagnóstico errado. De facto, comunidade é sinónimo de mesmice, repetição e absorção do Outro negando-lhe a sua alteridade. «O comunitarismo é uma resposta flagrantemente equivocada para questões evidentemente legítimas. Como remédio

                                                                                                                         

55 Cf. Balibar, Étienne, Le Racisme après les races, PUF, 2004. E ainda: Balibar, 2007. 56 Cf. Balibar, «La forme nation: histoire et idéologie», (2007a: 136).

contra a praga da insegurança endémica, o comunitarismo é mais do que um fracasso.» (Bauman, 2000: 199)

Bauman prefere o conceito de sociedade policultural visto que o termo multiculturalismo sugere erroneamente uma variedade de culturas, uma pureza cultural enquanto totalidade natural, como se estas não estivessem impregnadas umas nas outras ou não se estabelecesse uma comunicação e uma tradução constantes. A hipótese de uma pureza ou homogeneidade cultural é profundamente inadequada para dar conta desse hibridismo. Da mesma forma, não existe um Outro identificável em si mesmo como totalidade completa, mas Outros com sentidos múltiplos: o exótico, o étnico e cultural, o social, familiar, político, económico, afirma Wallerstein em Utopistics (Augé, 2005: 20 e ss). Os tempos modernos líquidos, anuncia Bauman, possuem comunidades explosivas e também Cloakroom communities (aludindo aos bengaleiros onde se depositam os casacos para uma determinada ocasião) que se dão mal com a territorialidade na medida em que são voláteis e provisórias, ao sabor de particularismos. Após o espectáculo as pessoas voltam a colocar os seus casacos e dissolvem-se na multidão. No fundo, quebram a monotonia quotidiana mas são indivíduos com uma causa comum virtual que nada tem de genuíno e duradouro. Dessas pretensas comunidades emerge o gueto.

Wallerstein em Utopistics, assinala que a identidade étnica, que nunca é uma coisa em si mesma, é muitas vezes uma forma de luta que surge perante o enfraquecimento e a deslegitimação do Estado. (1998: 55 e ss) Este tipo de reivindicação étnica não tem a ver com o nacionalismo e a glorificação da tradição passada; é um acto desesperado dos pobres nas nações ricas.

O que fazer então com os estrangeiros para não os relegar para o domínio da exterioridade absoluta e inimiga? Beck propõe a figura política da transnacionalidade nada devedora do multiculturalismo (que para ele conduz a um relativismo, onde as perspectivas culturais são incomensuráveis e não se comunicam) afirmando que «a categoria do transnacional abole a distinção entre estrangeiros e nacionais, amigos e inimigos, estrangeiros e autóctones.» (Beck, 2006: 132) Balibar propõe, por seu turno, uma categoria de cidadania de residência conferindo direito de voto aos residentes permanentes; pensar a cidadania não em termos de soberania mas de direito de cidade ou de direito de residir na cidade com todos os direitos. (Balibar, 2007: 20-22)

Honneth propõe a estrutura intersubjectiva do reconhecimento que se opõe a situações de desprezo social culminando numa solidariedade. No entanto, uma auto- realização deste tipo não pode cingir-se ao ordenamento jurídico-democrático ou aos direitos constitucionais. Sempre que no mundo interpessoal os homens tendem a ser tratados de acordo com uma atitude apenas observadora e não participante podemos falar de reificação, conceito que Honneth recupera de Lukács. Esta realiza a função de superfluidade, na medida em que o sujeito esquece o reconhecimento do outro, não conseguindo colocar-se numa posição de segunda pessoa.

Sempre que se autonomizam práticas que consistem simplesmente em observar os homens, registar friamente a sua existência, considerá-los como factores independentemente do contexto do mundo vivido ao qual pertencem, e isto sem que sejam inseridos no seio de relações jurídicas, desenvolve-se uma ignorância do reconhecimento prévio que descrevemos como sendo o núcleo de toda a reificação intersubjectiva. (Honneth, 2007b: 116)

Nancy Fraser critica a perspectiva de Honneth de um reconhecimento que se baseia na auto-realização propondo, por seu turno, um modelo do status, isto é, um afastamento das relações de subordinação entre os sujeitos, rumo a um princípio de paridade de participação (parity of participation) (Honneth; Fraser, 2003: 36). De acordo com este modelo, a justiça requer que os sujeitos interajam como pares. Para que esta se realize é necessário preencher duas condições: a) uma distribuição dos recursos materiais para assegurar uma independência dos participantes, a que chama condição

objectiva e b) padrões culturais institucionalizados que expressem um respeito igual

para todos os participantes, a que chama condição intersubjectiva. No primeiro caso, reivindicamos uma redistribuição e no segundo, um reconhecimento. Parece-nos que esta hipótese de Nancy Fraser é tributária do pensamento de Habermas, ao passo que para Honneth a estrutura do reconhecimento não se apoia somente numa interacção linguisticamente mediada com vista a um acordo comunicacional. Para Honneth o social apenas se pode compreender como um campo de lutas e confrontações sociais e, apesar de uma abordagem metodológica em termos linguísticos como em Habermas, com vista a uma intercompreensão, é necessário em termos factuais um processo de interacção

que não recorre apenas ao linguístico mas ao pré-linguístico, como no caso da primeira forma de reconhecimento entre o bebé e a mãe. Esta dimensão pré-verbal está relacionada com a corporeidade, pelos gestos, pelo mimetismo, etc. «A intersubjectividade emerge geneticamente de formas prélinguisticas e de formas de comunicação social fortemente ligadas ao corpo.» (Honneth 2006: 164)

Mas o sentimento de ser desprezado não gera só por si uma justificação das lutas. Que formas de cultura moral podem os desprezados e os excluídos assumir no espaço público democrático sem se envolverem em contra-culturas da violência? Com esta questão Honneth procura estabelecer as bases normativas da acção que uma teoria do reconhecimento pode constituir.