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Para Ulrich Beck, a modernidade alterou-se radicalmente, passando de uma Primeira Modernidade 67 , o apogeu do Estado-nação, o desenvolvimento da industrialização, da democracia e da ciência, a uma Segunda Modernidade, onde as fronteiras são esbatidas, surgem organizações internacionais, supranacionais e novos regionalismos, o que faz com que os problemas já não possam ser encarados no âmbito de um nacionalismo metodológico, confortado numa óptica nacional circunscrita, mas abrangendo novas modalidades e construção de identidades cosmopolitas. A Europa cosmopolita permanece nacional mas integra agora um regime de interdependências; a perda de soberania nacional (tão lamentada pela direita nacionalista) representa afinal um ganho de soberania no contexto supranacional, quer do ponto de vista jurídico, quer no domínio da defesa das liberdades que o Estado-nação já não pode garantir, desde que Hannah Arendt nos anos 50 salientou que os direitos humanos são afinal limitados aos direitos de cidadania e que uma grande massa itinerante de povos sem Estado sobeja sem rumo numa crescente multidão de excluídos (refugiados, apátridas, etc). A pluralidade de pertenças num quadro transnacional permite uma etnicidade desterritorializada, com um acréscimo de poder fora da soberania territorial; os novos campos de experiência anulam os absolutismos étnicos centrados na axiomática nacional.68

                                                                                                                         

67 Bauman conceptualiza este tipo de modernidade obcecada com a territorialidade como sólida, que não

se adapta a um jogo de poder nómada. «Quando se trata de confrontos, e particularmente confrontos militares, as elites nómadas do mundo moderno líquido percebem a estratégia territorialmente orientada das populações sedentárias como «bárbara» por comparação à sua própria estratégia militar «civilizada».» (Bauman, 2001b: 226)

68 Agamben concebe uma possibilidade de encararmos a Europa não como a «Europa das nações» mas

O regime de transformação cosmopolita traz consigo um meta-jogo de poder, um poder em rede [perspectiva tributária da analítica do poder de Foucault] que não dimana de um ponto central, mas que se ramifica em várias instituições numa governança de múltiplas configurações, sistema de multi-níveis fundado numa interdependência de negociação. Não existe um poder hierárquico dominador mas uma estrutura em rede. Que consequências isto acarreta para a soberania nacional? Ela própria se transforma numa soberania cosmopolita complexa onde a pedra-de-toque é justamente o engrandecimento dos espaços de alteridade, uma imbricação do poder que se reparte de modo singular e formal. A soberania, a velha soberania de Bodin e de Hobbes cede agora lugar a uma renúncia voluntária num contexto de mundialização. O Estado renuncia à soberania legal para recuperar uma parcela material – é isto que define a transnacionalização da política de acordo com uma percepção da interdependência. Imaginemos que a União Europeia se dissolvesse, propõe Beck. Nesse caso, o custo de reposição das fronteiras e de recuperação da moeda e dos regulamentos seria de tal forma que o melhor é mantermos as «algemas douradas» face aos riscos globais. Porém, uma política de interdependência necessita de um capital de confiança – o Império europeu cosmopolita está longe de ser nivelador e consensual. Cosmopolitismo representa, ao invés, uma quebra de consenso; qualquer movimento de cosmopolitização implica uma atitude de anticosmopolitização; o cosmopolitismo possui como antinomia a propensão para o ilimitado e a delimitação traduzida em condições jurídicas de acolhimento. O mesmo se passa com a europeização:

Por europeização, entendemos assim por um lado a disposição de instituições supranacionais (autoridades, opinião pública, cidadania, etc.), e por outro, os efeitos que este surgimento de instituições supranacionais exerce em contrapartida sobre as sociedades nacionais, por exemplo a conformação das normas e das instituições nacionais com as directivas europeias. (Beck, 2007: 141)

O ponto fulcral de uma sociedade cosmopolita é o não impor a outrem um modelo de pensamento, um modo de vida. Como escrevem Beck/Grande: «A óptica

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

(cidadãos e não cidadãos) estariam em posição de êxodo ou de refúgio. O estatuto europeu significaria então o ser em êxodo [l’essere-in-esodo] (mesmo imóvel, evidentemente) do cidadão.» (1996: 28)

cosmopolita obriga a observar a Europa com os olhos dos Outros.» (Beck, 2007: 164). É óbvio que isto pode internalizar conflitos, desigualdades sociais e mal-entendidos, e até alguma revitalização dos fantasmas neo-nacionalistas, para quem o imigrante é o responsável pelos males deste mundo; mas são precisamente estas identidades em movimento, desterritorializadas, que ajudam a perceber que a aposta para os direitos humanos reside na transnacionalização visto que os Estados nacionais muitas vezes não os garantem. É preciso perceber que não existe uma identidade essencialista que nos demarca decisivamente dos Outros, desse Estranho que é preciso afastar. Pelo contrário, importa criar novos espaços de acção para as ONG’s, para os grupos de cidadãos para dar maior incentivo à integração europeia. «A Europa apenas existirá como unidade cosmopolítica fundada no reconhecimento e na reconciliação de numerosas histórias nacionais e regionais – ou ela não existirá de todo.» (Beck, 2006: 342)

A óptica cosmopolita afasta-se do ideal de unidade étnica, dissipa o sentido de uma pureza antes perseguida pelo nazismo que mais não fez do que desembocar em genocídios e orienta-se para um common sense cosmopolítico que aceita as minorias. A acepção do apátrida que tanto preocupou Arendt perde o seu sentido apocalíptico, aceita a mistura de culturas e identidades para além do essencialismo aferrolhado nas lógicas nacionais. O que facilita esta comunicação? É a percepção do risco comum, a compreensão de uma realidade que supõe o que Beck chama a «imaginação dialógica do Outro internalizado» (Beck, 2006: 156) ou seja, a noção de interconnectedness. Esta

cosmopolis global nada tem a ver com a Pax Americana que pretende impor a sua

hegemonia de valores ao resto do mundo. Da mesma forma não se aceita a concepção de choque de civilizações proposta por Huntington, como se o mundo muçulmano tivesse que se opor ao mundo ocidental. A Europa não pode ser um clube de cristãos – a Turquia tem partes europeizadas, logo não se pode reduzir o cosmopolitismo europeu a uma religião. Daí a afirmação polémica: «Sem os democratas muçulmanos, a Europa seria uma Europa cristã, isto é, uma Europa não europeia.» (Beck, 2006: 324). A suposta «ameaça islâmica» é uma discriminação religiosa incompatível com os valores republicanos. Como pergunta Castel: «Por que motivo deveremos suspeitar a priori que a religião muçulmana possui uma carga política incompatível com a exigência de evoluir também ela para a modernidade, como o fez o cristianismo com muita reticência e atraso?» (Castel, 2007: 55) A Europa cosmopolita deve evitar duas tentações: 1) Ver a identidade étnica como uma essência, uma natureza, algo dado de uma vez por todas,

concreta e objectiva; 2) E a tentação inversa que consiste em ver nas diferenças étnicas uma ilusão que é abolida à medida que progride a europeização.

Dito isto, voltamos ao refrão da tolerância cultural e étnica sem fazer dele um princípio vazio, quando na prática vemos o estrangeiro como o grande usurpador. Mas estarão os europeus preparados para não discriminar?

A questão será então a seguinte: em que Europa queremos viver? Será que este Tratado Reformador, acolhido de modo tão entusiástico, servirá o propósito de um cosmopolitismo realista e mais abrangente? A legitimidade democrática europeia actual é ainda insuficiente, e a integração dos países está assombrada por um cenário de estagnação: por um lado, o espaço económico dominado pela ambição económica neo- liberal e, por outro, o apoio dos Estados Unidos, que em matéria de segurança está longe de acolher o consentimento; nem todos reconhecem que a americanização é a melhor maneira de defender o velho continente. Provavelmente este precisa de um exército próprio. Além disso, o modelo de democracia parlamentar apresenta deficiências de legitimação devido à transferência da soberania nacional para o nível supranacional: a Comissão europeia não tem legitimidade democrática e o Conselho europeu é frágil.

Uma das vertentes da doutrina neo-liberal declara que a Europa apenas se integra no plano económico. Para esta, a «Europa não deveria ser outra coisa do que um grande supermercado obedecendo exclusivamente à lógica do capital» (Beck, 2007: 39). Porém, esta solução tem resultado numa desregulação dos mercados e numa ruína dos fundamentos sociais do projecto político europeu. A desestatização neo-liberal, com a racionalidade dos mercados, põe em causa o cosmopolitismo, levando a um sentido contrário das políticas reformadoras; é apenas uma bandeira da direita populista.

A globalização não é um mal em si mesma mas o Estado-nação declinante assume cada vez menos o seu papel social, ocupando-se de tarefas de vigilância dos estrangeiros, dos imigrantes, dos que pedem asilo. A globalização económica enquanto perspectiva de um comércio sem obstáculos conduz a um depauperamento dos países; numa época pós-colonial emerge o que Giddens designa como uma «colonização ao contrário»: a latinização de Los Angeles, a alta tecnologia na Índia e os programas de televisão brasileiros em Portugal.

Beck propõe o reforço da sociedade civil em matéria de participação e a formação de uma opinião pública consistente que possa denunciar nos media os erros cometidos pela economia translegal. Neste momento ninguém consegue controlar os responsáveis pela política europeia, logo é necessário aprofundar outros modelos de democracia pós- nacional ou participativa que permitam aprofundar o princípio de representação. De que modo? Por meio de formas directas de participação política: referendos à escala europeia. O instituto do referendo deve cumprir cinco condições: 1) referendos europeus e não nacionais; 2) Alargar de forma ilimitada os temas a referendar; 3) Os cidadãos devem poder iniciar referendos e não apenas instituições supranacionais como a União Europeia; 4) O resultado dos referendos deve comprometer as instituições europeias conferindo um poder de decisão efectivo aos indivíduos; 5) as instituições supranacionais devem integrar o resultado dos referendos como aprendizagem política e não como meras forças de bloqueio. Só assim a Europa pode constituir uma plataforma de integração e reconhecimento do Outro, combatendo as desigualdades. O princípio da maioria pode igualmente coabitar com outras formas de resolução de conflitos que recorram ao consenso com uma base mínima de argumentação e negociação. O princípio de integração cosmopolítico da Europa não assenta em qualquer vontade de homogeneização, mas de respeito pelas diferenças, não é um Federalismo nivelador; o que importa é assumir a diversidade interior e exterior.

O cosmopolitismo europeu segue, deste modo, cinco valores: 1) Procurar soluções transnacionais para não multiplicar os conflitos étnicos; 2) Promover princípios de proximidade com os seus vizinhos: os estados saídos da ex-União soviética e a Turquia; 3) reconhecer os problemas mundiais numa lógica global; 4) Não aceitar apenas o ponto de vista americano mas procurar vias alternativas; 5) desenvolver uma política económica de reconhecimento dos outros, afastando o narcisismo étnico e religioso.

  Radicalizando a proposta de Beck, e encaminhando-se noutra direcção, Frédéric Neyrat em Biopolitique des catastrophes, propõe uma extensão do domínio da biopolítica ao não-humano. Tal como defende, a nossa situação contemporânea é da ordem da catástrofe. Se a sociedade de risco é uma sociedade da catástrofe, segundo Beck, e o estado de excepção ameaça tornar-se permanente, é necessário um processo de auto-sensibilização e um princípio de precaução. «A biopolítica das catástrofes é uma hiper-biopolítica que, sobre um modo conjuratório (profético) ou regulador

(analgésico), tenta assumir a totalidade da vida humana e do vivente do qual faz uso.» (Neyrat, 2008: 36)

O que Neyrat propõe é uma nova sensibilidade que permita uma prevenção dos riscos globais que tomam foros epidémicos.69 Perante este devir epidémico, o princípio de precaução da hiper-biopolítica assume a forma de uma ecologia política ou, como preferimos, uma eco-biopolítica. Esta hiper-biopolítica reveste duas modalidades: um modo conjuratório, fixando-se na possibilidade do desastre e um modo regulatório, agindo de imediato.70 O erro global (tort global) planetário afecta as formas de vida humanas e não-humanas diminuindo as possibilidades de existência. O capital é um

aparelho de captura, mais do que um sistema de exploração, visto que pressupõe uma

privatização dos saberes e do vivente sob a forma de informação (capitalismo cognitivo) instalando-se num processo de criação destrutiva. «[...] capturar não é uma operação abstracta, capturar implica um aparelho info-técnico muito desenvolvido, uma estética e sem dúvida uma religião, implica a retoma do que é capturado num aparelho consistente.» (Idem: 140)

O papel da ecologia política é o de prevenir esta negação da existência (déni

d'existence), este efeito destrutivo que alcança todo o planeta sob a forma de uma

individualização da Terra. A tese central de Neyrat é da ordem da imunologia política: toda a intervenção criativa do Capital, mesmo que intensifique a vivência humana, redunda numa passagem ao negativo, ou melhor, numa catástrofe. A resistência a opor a uma busca da indemnidade ontológica (a formação de um planeta sem exterioridade) é favorecer tudo o que intensifica o ser das formas de vida incluindo as não-humanas. Este processo abrange um corpo-espécie para além da homogeneidade do humano (processo anti-humanista), sob a modalidade de um devir comum eco-esférico atento à biodiversidade.

                                                                                                                         

69 «[...] la communication d'un Globe devenu boule contagieuse. Nos sociétés, nous dit Frédérick

Lemarchand, ont un caractère profondément «epidémique»». (Neyrat, 2008: 38)

70 «En mode régulatoire, hyper-biopolitique maintient sa dimension prospective dans son mode même de

régulation: idéalement, il s'agirait de réguler les événements avant qu'ils n'arrivent, de conjurer ce qui a

Um enunciado político materialista relativo à possibilidade de um erro planetário apenas por ser anti-humanista, não contra o homem (misantrópico), mas a favor de agenciamentos que liquidem as fixações e as divisões desastrosas das quais suportamos ainda os efeitos. (Neyrat, 2008: 152)

Os fluxos da existência da nossa época eco-técnica são ainda dominados por uma matriz hobbesiana, guiados por uma indemnidade ontológica71 de que se ocupa a política, ao que Neyrat responde com uma perspectiva de cosmologia profunda que reconfigura o ser em relação; o que se visa é o vivente no seu sentido mais amplo.