• Nenhum resultado encontrado

A vida secreta dos excluídos: a figura do pária

   

Quer de forma consciente ou no seu subconsciente, os homens e mulheres do nosso tempo vivem assombrados pelo espectro da exclusão.

Z. BAUMAN, Identity

Num texto célebre, «O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem», Hannah Arendt refere-se aos povos sem Estado, enorme população desnacionalizada, que desde finais da primeira Guerra Mundial vagueia, refugiados sem estatuto político que põem em causa a efectiva aplicação dos Direitos Humanos.

A calamidade dos que não têm direitos não decorre do facto de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades –, mas do facto de já não pertencerem a qualquer comunidade. (Arendt, 2004: 392)

Privados de um lugar no mundo, e apesar de vivermos num planeta único, eles são expulsos da Humanidade. Mesmo os escravos, afirma Arendt, pertenciam à Humanidade mas, em plena civilização chegámos a um paradoxo que se pode enunciar assim: a Humanidade acaba por pretender liquidar certas partes de si mesma. Essa

abstracta nudez dos homens que perdem o seu lugar na comunidade redu-los à sua vida

privada. Ora, as comunidades políticas esperam livrar-se desses «estranhos» que ameaçam a sua homogeneidade, cuja diferença abissal levanta suspeitas. Eliminar o

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

minorias concebidas em série (em particular os estrangeiros extra-comunitários vindos de países do Sul ou da Europa oriental) e aplica-se a lugares particulares (as banlieues).» Polices en réseaux: L’expérience

européenne, Presses de la Fondation National des Sciences Politiques, 1996, p. 256. Sobre a política de

controle dos fluxos migratórios, da política do medo e da segurança/insegurança como consequência da desregulação neo-liberal, consultar: Mathieu Bietlot «Le camp, révélateur d’une politique inquiétante de l’étranger». (www.conflits.org)

«escuro pano de fundo das diferenças» (Arendt, 2004: 400) leva-nos ao lugar de nascimento do pária e da vontade de o discriminar. Os sistemas totalitários, nazi e soviético, foram as grandes fábricas de produção do inumano, da figura das pessoas supérfluas destinadas a serem expurgadas ou exterminadas. No entanto, a figura do pária ou do excluído não deixa de atormentar a civilização democrática que o acolhe no seu seio.

O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma acção pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular que, privada da expressão e da acção sobre um mundo comum, perde todo o seu significado. (Arendt, 2004: 401)

Estamos assim perante um indivíduo despojado da sua vida política, não tendo mais do que o seu corpo proscrito e relegado para uma situação selvagem. O pária é o que não tem outro lugar senão ele próprio; mas privado de direitos pouco valor a sua vida pode alcançar. A figura do pária deriva da palavra tâmil parayan e nunca chegou a pertencer ao vocabulário indiano. Os chamados intocáveis foram designados por Mahatma Gandhi como Harijans (filhos de Deus) e chamados hoje oficialmente dalit (povos oprimidos).64 O que nos interessa não é que esta figura se tenha convertido em personagem dos textos de ficção, mas como metáfora política dos excluídos. Para Varikas, o pária encontra-se numa posição de alteridade heterodefinida, visto que é privado da sua humanidade e da sua singularidade, nada partilha com os outros nem tão pouco se diferencia deles – está, assim, numa situação de excepção que confirma a regra. Ele é invisível num sistema de categorização discriminatório como no romance de Ralph Ellison, O Homem Invisível, onde o personagem negro nota que as pessoas “vêem” através dele como se não existisse.

                                                                                                                         

64 Seguimos as informações de Eleni Varikas (da Universidade Paris VIII) presentes no seu artigo «La

figure du Paria: une exception que éclaire la règle» in Revista Tumultes ed. nº 21-22, nov 2003, Le paria.

A figura do pária acompanha politicamente a problemática da exclusão, de tal modo que nos compete perguntar por que motivo a acção política se constitui, antes de mais, por meio do acto de excluir. Assim declara Agamben na sua obra Homo sacer. Il

potere sovrano e la nuda vita: «Colocando a vida biológica no centro dos seus desígnios,

o Estado moderno não faz mais do que trazer à luz a relação secreta que une o poder à vida nua. […] é necessário, sobretudo, perguntar por que é que a política ocidental se constitui antes de mais através de uma exclusão (que é, na mesma medida, uma implicação da vida nua.) Qual é a relação entre política e vida, se esta se apresenta como o que deve ser incluído através de uma exclusão?» (Agamben, 1998: 16) O que é chamado aqui vida nua é esse conjunto de homens que na sociedade chamamos os excluídos, os que dispõem apenas da sua vida, mas que acabam na situação de

abandono.

O excluído passou de mão-de-obra excedente do capitalismo inicial a desempregado de longa duração. No decorrer da história ele foi sempre, de algum modo, o seu resíduo, o seu resto, aquele que não tinha direito de participar nos jogos, ora devido ao seu carácter improdutivo, o louco, o delinquente apanhado na máquina de produção das infracções, ora o que trazia consigo o estigma desqualificador que o arredava do contacto com os outros homens, os válidos. Também o desviante se encontrava nessa categoria, o libertino, que se auto-exclui da moralidade. Remetido ao silêncio, a vida do excluído permaneceu secreta; a sua única escolha parece ter sido do lado do secretismo e da ocultação – o claustro fatídico da discrição imposta. Internado ou expulso, encarcerado ou ignorado, ele adopta (in)voluntariamente o estatuto das margens e dos redutos.