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Suponhamos que os universais não existem»

 

Existem várias acepções do termo modernidade em Foucault. Politicamente, a modernidade começa com a Revolução Francesa e filosoficamente com Kant. Noutras obras fala-se da modernidade ligada a Descartes. Em Les Mots et les Choses, começa no Renascimento, o equivalente à época do Homem, da analítica da finitude e das ciências humanas. Com Surveiller et punir Foucault caracteriza a modernidade como o exercício do poder (os procedimentos de normalização). Podemos ainda falar da modernidade como atitude, como ethos. É esta última acepção que nos interessa.

Foucault situa «a filosofia como superfície de emergência de uma actualidade» (Foucault, GSO: 14) e, nesse caso, permite fazer a genealogia da modernidade como questão. Estamos sempre no meio, nunca no fim, nunca o acabamento, a teleologia.

Deleuze assinalou a diferença entre o devir e a história; a sua simpatia pelo texto foucauldiano «A vida dos homens infames» situa-se nesse apego aos corpos- acontecimento que escapam ao grande protagonismo dos factos, para fluírem de modo oculto na entretela do devir como uma linguagem menor. O diagnóstico da actualidade proposto por Foucault consiste em destacar as «linhas de vulnerabilidade» do presente, fazendo crer que as coisas que são como são podiam não sê-lo.

Recusar um universal antropológico é minar a evidência; Foucault vai colocando minas nos campos da História, acolhendo a contingência e a singularidade. Como escreve num texto de auto-apresentação: «Recusar o universal da «loucura», da «delinquência» ou da «sexualidade» não quer dizer que as coisas a que se referem essas noções não são nada ou que se trata de meras quimeras inventadas pela necessidade de uma causa duvidosa; trata-se, no entanto, de muito mais do que a simples constatação que o seu conteúdo varia com o tempo e com as circunstâncias. É questionarmo-nos acerca das condições que permitem, segundo as regras do dizer verdadeiro e falso, reconhecer um sujeito como doente mental ou de fazer com que um sujeito reconheça a parte mais essencial de si mesmo na modalidade do seu desejo sexual.» (Foucault «Foucault» DEIV: 634) Recusar o universal é verificar que a subjectivação se deve aos dispositivos de poder e de saber que operam sobre nós e que fazem com que sejamos qualificados desta ou daquela maneira, como sujeitos sexuais determinados assim ou como uma indicação de loucura ou delinquência. Como escapar a essas determinações que, sendo precárias, se pretendem verdadeiras e incontornáveis? Como recusar esse modo de subjectivação opondo-lhe uma insubmissão metódica? Recusar o universal é oferecer resistência a um poder que prescreve e que nos assinala um destino e uma identidade; é mostrar que essas determinações não são apenas ilusões mas práticas coordenadas segundo um regime de verdade. A política não está isenta desse regime de verdade; ela é algo que se inscreve no real de acordo com esse regime de verdade que lhe permite distinguir o verdadeiro do falso. (Foucault, NBP: 22)

Pensar a actualidade em termos filosóficos, eis o que inaugurou a modernidade. De que modo pertencemos à actualidade? – é a questão da possibilidade de pensar o acontecimento como actualidade. Podemos encontrar aí uma contingência histórica ou uma mera continuidade de tempos presentes?

Eventualizar (événementialiser) significa quebrar as evidências, fazer despontar uma singularidade onde outros tentam referir-se a uma constante histórica. Uma história feita de singularidades, o que significa isto? «Aí onde seríamos bastante tentados a

referir-nos a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência que se imponha do mesmo modo a todos, trata-se de fazer surgir uma «singularidade». (Foucault «Table ronde du 20 mai 1978» DEIV: 23) O que Nietzsche chamava a História Efectiva (Wirkliche Historie) e que passa por essa singularização, um fio de acontecimentos sem um sentido originário, momentos descontínuos de um devir sem necessidade de totalização; uma história sem absoluto, uma história crua dos erros e da verdade. Reconhecer aí os modelos de dominação: o poder sobre o corpo. A verdade faz parte integrante de um discurso e liga-se a este pelos efeitos de dispositivo que engendra. Não existe uma verdade da loucura fora de certos processos históricos, processos de normalização, de urbanismo – de toda uma população flutuante que o capitalismo originou. É essa a verdade da loucura. Não existe uma instância suprema de verdade mas procedimentos, enunciados que podem ser considerados como tal. «Entendo por verdade o conjunto dos procedimentos que permitem pronunciar, em cada instante e a cada um, enunciados que serão considerados como verdadeiros.» (Foucault, «Pouvoir et Savoir» DEIII: 407)38

Maio de 68 como acontecimento micropolítico aponta para uma linha de fuga molecular, escapando de uma organização macropolítica da sociedade, um movimento que atravessou todas as instituições. Neste nível não conta apenas o molar como centro de poder, mas a infinidade de fluxos que deslizam da centralidade do poder para uma segmentaridade. Se o poder é omnipresente, não se trata de o eliminar, de fazer desaparecer o Estado, como pensavam ingenuamente os anarquistas. Do que se trata é da possibilidade de resistência e da sublevação, de negar o intolerável; nesse caso a revolução emerge como possibilidade de resistência, para além das ameaças, das violências e das coerções, diante das forcas e das metralhas. (Foucault, «Inutile de se soulever?» DEIII: 791) É que para Foucault não existe uma totalização do poder a ponto de impedir qualquer hipótese de liberdade. Mesmo no auge da sua cristalização, nas circunstâncias em que se torna patológico, nenhum estado de dominação resiste à morte, ao definhamento do ditador (Salazar, Franco, Castro) e na sua vigência comprometida é ainda possível o tentame libertário.39 O que é desejável na Revolução é o

                                                                                                                         

38 A verdade não se encontra no conjunto de coisas verdadeiras. A verdade está entrelaçada nos efeitos de

poder e desempenha um papel económico-político. (Cf. Foucault, «La fonction politique de l’intellectuel»

DEIII: 113).

39 «Nul n'a le droit de dire: «Révoltez-vous pour moi, il y va de la libération finale de tout homme.» Mais

je ne suis pas d'acord avec qui dirait: «Inutile de vous soulever ce sera toujours la même chose.» On ne fait pas la loi à qui risque sa vie devant un pouvoir. A-t-on raison ou non de se révolter? Laissons la

enfrentamento do poder, visto que ele é sempre perigoso, a singularidade que se subleva confronta-se com o intolerável. O desencantamento da História dá-se com a ruína do corpo, das pequenas vidas destroçadas, o corpo do louco, do delinquente, da criança psiquiatrizável, das vidas infames, a molecularização dos gritos que povoam as constelações do poder.

A revolução, de qualquer modo, corre o risco de cair na rotina, mas como acontecimento cujo conteúdo próprio não é importante, a sua existência atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida.» (Foucault, «Qu'est-ce que les Lumières?» DEIV: 686)

O que é importante na revolução, não é a própria revolução, é o que se passa na cabeça dos que não a fazem ou, em todo o caso, naqueles que não são os actores principais, é a relação entre eles próprios e essa revolução da qual não são os agentes activos.» (Idem: 685)

Não é a gesticulação revolucionária que conduz ao progresso; é o entusiasmo defendeu Kant no Conflito das Faculdades.40 Pouco importa que ela seja bem sucedida ou fracasse, o que interessa verdadeiramente é esse entusiasmo. É a base de uma ontologia da actualidade.

A modernidade como atitude é assumir uma des-subjectivação que conduz a uma des-sujeição, uma auto-estilização. A tarefa moderna implica uma análise de nós mesmos como seres historicamente determinados, fora dos modelos coercitivos, sendo que essa consciência histórica é também política – opõe-se às grandes narrativas de legitimação (o que Lyotard designava o pós-moderno) e a uma atenção às singularidades empíricas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

questions ouverte. On se soulève, c'est un fait; et c'est par là que la subjectivité (pas celle des grands hommes, mais celle de n'importe qui) s'introduit dans l'histoire et lui donne son souffle». (Foucault, «Inutile de se soulever?» DEIII: 793). Foucault refere-se aqui ao eclodir da Revolução iraniana que teve, também ela, um devir infame.

40 O extracto de Kant é este: «A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias,

pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades […] esta revolução, afirmo, depara todavia, nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, por conseguinte, não pode ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano.» (Kant, 1993: 102) Essa disposição moral divide-se em duas vertentes 1) como direito, isto é, a possibilidade de um povo edificar uma constituição civil e 2) como fim, isto é, que essa Constituição evite a guerra ofensiva.