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Biopolítica e modernidade 2: a máquina imunitária História do eugenismo na Idade Moderna Princípios de imunologia política

A genealogia do racismo é inseparável da medicina e da biologia, ou melhor da sua propensão medicalizadora pelo lado eugenético que evidencia. Mas convém defender que o racismo não é apenas uma heterofobia; não se trata aqui de um inimigo político mas da destituição genética de uma parte da espécie. O racismo postula uma distribuição sistemática e geneticamente reproduzida de atributos no organismo humano que pretensamente teriam consequências morais, estéticas ou políticas. Na origem do eugenismo e sob uma base médica, a melhoria da espécie humana, com o afastamento da degenerescência, confunde-se rapidamente com a noção de ordem social. Sugiro que a compreensão do fenómeno totalitário moderno deve compreender-se sob a eclosão do eugenismo ou eugenética, aprofundado em meados do séc XIX, sem o qual permanece obscuro no seu móbil essencial. A sua relação à biopolítica é o que importa esclarecer neste percurso. O desbloqueio da arte de governar sobre a população aumenta vectorial e exponencialmente a preocupação com a saúde, mas de forma ambígua, uma vez que a necessidade de protecção é acompanhada por uma possibilidade de exposição à morte. O nascimento do racismo moderno (a capacidade de colocar indivíduos fora de circuito) não é alheio a todo um movimento de higiene pública.

São esses fenómenos que se começa a levar em conta no final do século XVIII e que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior de higiene pública, com organismos de coordenação dos cuidados médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizagem da higiene e de medicalização da população. (Foucault, IDS: 217)

Foucault declara na sessão de 17 Março de 1976 do Curso «Il Faut Défendre la Société», que o racismo é precisamente a pedra-de-toque da biopolítica nazi. O que ele empreende agora nessa derradeira aula do Curso é um afastamento metodológico da distinção entre soberania e disciplina, cujo ponto de articulação é claramente a medicina politizada, para promover o aparecimento da biopolítica, onde a espécie está em causa

justamente na consciência de raça, consciência que se pretende «cientificamente» baseada. Porém, Foucault vai mais longe, tocando o limiar antitético dessa biopolítica nazi, entrevendo o seu paradoxo essencial. Se em Bauman é evidente o papel da medicina e a modernidade da engenharia social, a higiene racial é vista como patamar de construção de um mundo perfeito por meio da burocracia.

O judeu é apanhado na zona de incerteza onde o mundo moderno se anuncia no pré-moderno. E nesse anúncio o que temos é o reflexo do biológico sobre o histórico, a emergência de um poder sobre a vida (ou uma correlação entre a história e a vida) que emerge num poder-saber e que Foucault designa o «limiar da modernidade biológica». (Foucault, HS1: 188)

A decomposição e fragmentação da morte, esse acontecimento único, sob a égide da biologia é pautado pela ideia da hereditariedade. Afirma Pichot: «Na Alemanha, a higiene racial combina, além disso e simultaneamente, o eugenismo e o racismo em proporções variáveis.» (Pichot, 2000: 307) Os corpos portadores de (imuno)deficiência, biologiamente determinados, deveriam ser separados, demarcados, não pelo tratamento mas pela separação. Afastar e depois aniquilar devido ao terror da degenerescência, colocando em campos opostos a normalidade e a protecção e a angústia do processo vital que a doença vem desencadear (doença biológica e social). Esse padrão foi introduzido pela modernidade.

A morte colonizava, por assim dizer, a vida e combater a morte - a sobrevivência, a autopreservação - transformou-se no sentido da vida. [...] Este amplo terreno da ansiedade moderna foi, uma vez mais, ocupado e administrado pela biologia e pelas tecno-ciências a ela associadas - sobretudo a medicina e a psiquiatria. (Bauman, 1995: 168)

O combate contra a degenerescência implicava o reforço da saúde e a eliminação da doença por meio de instrumentos de separação: vassouras, escovas, esfregões, sabões,

sprays de limpeza, detergentes em pó e também arame farpado, muralhas, vedações dos

campos de concentração, reservas, guetos. O judeu caminha para a câmara de gás munido da sua toalha e do sabão, separado já pelas teorias sociobiológicas que o

condenavam a uma existência sem utilidade. O campo é antiutilitário por natureza, campo de extermínio, mas também de experimentação da nova sociedade saída da «ciência racial». O seu carácter antiutilitário, como disse H. Arendt, não significava o acto de punir pessoas totalmente inocentes, mas na ausência de benefício do seu proponente, ao contrário da escravatura ou da colonização que empregava meios que resultavam num ganho. («As técnicas da ciência social e o estudo dos campos de concentração» in Arendt 2001: 147-148) A harmonia brilha na invisibilidade a

Umvertes Leben, perfeição consagrada pela destruição erigida em acto construtivo e

redentor, serviço prestado à causa da saúde.80

O argumento económico e o argumento eugénico, a propósito da vida indigna de ser vivida (o doente mental e o judeu) caminham a par, mas este útlimo acaba por prevalecer quando se trata de melhorar as forças vitais da nação recorrendo a uma ideologia socio-darwiniana. O papel contra-evolutivo da mestiçagem, a hierarquização evolutiva das raças desembocou na destruição das «vidas sem valor». A Alemanha nazi constituiu um caso único de passagem do eugenismo ao racismo, da esterilização ao extermínio, em suma, a eliminação sistemática das raças inferiores.

A ideologia biológico-médica faz derivar as causas das doenças, a etiologia das perturbações comportamentais e psíquicas, não às condições sociais mas a uma degenerescência biológica. O social explica-se por causas biológicas e a ficção antropológica (ou a antropologia imunitária) baseia-se num reportório da degenerescência da espécie humana. A fraqueza da espécie produz uma hereditariedade mórbida; eis que desponta o pseudo-cientismo de Vacher de Lapouge com Les

Sélections sociales e Race et milieu social.

                                                                                                                         

80 Reforça Bauman: «The carriers of disease; the incurable; the defective; the incarnation, the

embodiment of death, the hurdle on the road to rational order, the smudge which needs to shine through.

Umwertes Leben - lives of no visible use for a society struggling for self-improvement and perfection.

Eliminating them was a redeeming experience - not a destructive, but a construtive act, a service rendered to the holy cause of the nation's health and fitness.» (Bauman, 1995: 171-172)

Berlim, 1 de Setembro de 1939 Reichsleiter BOUHLER e

Dr BRANDT

São, sob sua responsabilidade, encarregues de alargar a competência de alguns médicos - a designar nominalmente - a conceder a libertação pela morte (Gnadentod) aos doentes que, nos limites do julgamento humano e após um exame médico aprofundado, forem declarados incuráveis.

Adolf Hitler81

Qual o papel da sanitarização ou, se quisermos, da higiene social e política, na semântica imunológica moderna? Porque desponta esta com particular acutilância no séc. XVIII e XIX, atingindo o apogeu no século XX? Isso dever-se-á ao processo civilizacional e demográfico sem dúvida mas também à obsessão capitalista de fixar o detentor de mão de obra ao aparelho produtivo. Mas deve-se igualmente à consciência tipicamente moderna de erradicação do medo, das classes vagabundas ou perigosas e da delimitação do seu Fora. A psiquiatria vai funcionar como agente macro-imunológico de defesa da sociedade, e isto, segundo três domínios de ingerência detectados na genealogia efectuada à implantação do aparelho médico-jurídico. Estes domínios implicam um deslocamento de instâncias de controlo com vista à constituição de um discriminante psiquiátrico-político. Esta nosopolítica que assume a doença como problema político e económico não se situa apenas no aparelho de Estado mas emerge em pontos e instâncias múltiplas: 1) Psiquiátrico-judiciário (lei de 1838); 2) Psiquiátrico-familiar (psiquiatrização da infância); 3) Metassomatização (hereditariedade).

                                                                                                                          81 Apud Ternon; Helman 1971: 57.

A noção eugénica do degenerado definida nos longínquos anos de 1857 por Morel vai ser recuperada no séc. XX e será em torno desta que todo um eugenismo será construído como medicalização do anormal/associal; protecção científica e biológica da espécie. Nessa medida escreve Foucault: «A degeneração é a peça teórica maior da medicalização do anormal. O degenerado, digamos, numa palavra, que é o anormal mitologicamente - ou, se preferirem, cientificamente - medicalizado. » (Foucault, AN: 298)

Essa protecção negativa da espécie, identificada como racismo mesmo antes do Curso «Il Faut Défendre la Société», tido como nascimento «oficial» da biopolítica, é outorgada ao papel da psiquiatria (o que está ausente naquele curso). A ligação entre a psiquiatria e o racismo subjaz a uma outra mais ampla que envolve a biologização da política.

Vocês vêem como, nessas condições, a psiquiatria pode efectivamente, a partir dessa noção de degeneração, a partir dessas análises da hereditariedade, conectar- se, ou antes, dar lugar a um racismo, um racismo que foi nessa época muito diferente do que poderíamos chamar racismo tradicional, histórico, o "racismo étnico". Conectar-se. [...] Que a psiquiatria alemã tenha funcionado tão espontaneamente no interior do nazismo, não há por que se surpreender. O novo racismo, o neo-racismo, o que é próprio do século XX como meio de defesa interna de uma sociedade contra os seus anormais, nasceu da psiquiatria, e o nazismo nada mais fez do que conectar esse novo racismo ao racismo étnico que era endémico no século XIX. (Foucault, AN: 299)

E Foucault conclui o curso propondo a ligação entre a psiquiatria e a noção de ordem, noção central para a origem histórica dos fenómenos de degeneração (teoria formulada por Morel e que data de 1857). Mas a questão biológica de que se ocupa o século XVIII, é orientada pela ideia de higiene pública, a vitalidade e a salubridade das populações com o consequente afastamento dos fenómenos patológicos (epidemias, endemias, mortalidade infantil). É neste contexto que a metáfora jurídica se transmuta em realidade biológico-política que se articulará sempre em torno da figura do médico como técnico do corpo social.

O "corpo" social deixa de ser simples metáfora jurídico-política (como a que encontramos no Leviatã) para surgir como uma realidade biológica e um campo de intervenção médica. O médico deve ser então o técnico do corpo social, e a medicina, uma higiene pública. A psiquiatria na viragem entre os séculos XVIII e XIX, conseguiu a sua autonomia e se revestiu de tanto prestígio pelo facto de ter podido inscrever-se no âmbito de uma medicina concebida como reacção aos perigos inerentes ao corpo social. Os alienistas da época puderam discutir interminavelmente sobre a origem orgânica ou psíquica das doenças mentais, propor terapêuticas físicas ou psicológicas: através das suas divergências, todos eles tinham consciência de tratar um "perigo" social, seja porque a loucura lhes parecia ligada a condições insalubres de vida (superpopulação, promiscuidade, vida urbana, alcoolismo, libertinagem), seja ainda porque ela era percebida como fonte de perigos (para si mesmo, para os outros, para o meio e também para a descendência, através da hereditariedade). A psiquiatria do século XIX, pelo menos tanto quanto uma medicina da alma individual, foi uma medicina do corpo social. (Foucault, «L'évolution de la notion d'«individu dangereux» dans la psychiatrie légale du XIXe siècle» DEIII: 450).

A implicação entre política e vida que promove essa derivação, essa relação com a questão da ordem, acarreta justamente a conservação da vida por meio de processos artificiais erigidos como categorias histórico-conceptuais. Defende Esposito: «Poder-se- ia até dizer que não foi a modernidade a pôr a questão da autoconservação da vida, mas sim esta a fazer nascer, e assim a «inventar», a modernidade, como aparelho histórico- categorial capaz de a resolver.» (Esposito, 2004: 52)82

Esposito pretende resgatar a problemática da vida do que chamámos o seu embaraço epistemológico, a saber, a zona de indescernibilidade entre a sua conservação, entre a sua taxa de morbidade e a produção pura e simples da morte e ainda por cima uma morte em larga escala: o genocídio. A figura do extermínio em massa desmente ou

                                                                                                                         

82 «Se ciò è vero, vuol dire che tutte le grandi categorie politiche della modernità vanno interpretare non

nella loro assolutezza, cioè per quello che dichiarano di essere, e neanche, esclusivamente, in base alla loro configurazione storica, ma piuttosto come le forme linguistiche ed istuzionali assunte dalla logica immunitaria per garantire la vita dai rischi derivanti dalla sua configurazione, e conflagrazione, collettiva.» (Esposito, 2004: 53)

parece afastar categorialmente qualquer intenção de velar por um aumento da vida das populações. Porém, a hipótese imunitária, a invasão do paradigma imunitário no regime dos saberes e dos discursos biopolíticos vem pretensamente sanar esse enigma, a ligação aporética entre o princípio de vida e a tanatologia política, situada no nazismo mas, como veremos, muito longe de se circunscrever aos regimes totalitários.

O dossier Binding & Hoche de 1922 é o precursor da operação T4 ou Programa

da Eutanásia nazi. O dossier pretende opor uma moral estatal superior a seres que

seriam qualificados num estado de sem-valor, encontrando-se, assim, numa contradição entre o direito subjectivo à existência e a utilidade e necessidade. O que se pretende nesta argumentação é a destituição do corpo mental e socialmente inútil e improdutivo ou afectado por uma imbecilidade incurável e definitiva. Que tenham sido um médico e um jurista a definir esses critérios de selecção não é estranho a uma imunologia política que se pretendia «científica». O morto mental deveria acolher um significado ou uma definição biopolítica consistente para que se pudesse responder à questão de fundo que obsecava o Doutor em Direito e em Filosofia proveniente de Leipzig, Karl Binding e Alfred Hoche, psiquiatra de Fribourg. A questão foi formulada deste modo: «Existem vidas humanas que tenham perdido a sua qualidade de bem jurídico a um tal ponto que a sua continuação perdeu definitivamente qualquer valor tanto para o seu seu autor como para a sociedade?» (Dossier editado por Schank; Schooyans 2002: 81 e 103.) Estas existências que pesam sobre a comunidade são qualificadas como um «puro acto de cura» e não um acto de homicídio e deveríam inscrever-se na ordem jurídica como um valor negativo, devendo a sua destruição ser classificada como um acto de altruísmo elevado. É de salientar a tentativa de fundamentar a liberalização da destruição de uma vida indigna de ser vivida (que dá título ao dossier) em pressupostos de ordem jurídica, social, moral ou religiosa. Porém, a «Solução Final» dos judeus excedeu no tempo da sua execução posterior a necessidade destes pressupostos (nem sequer tomou a forma de lei), limitando-se a um código secreto de actuação. Contudo, a linguagem biológico- jurídica ou jurídico-política que a suportava era da mesma ordem, ou seja, a relação imediata entre o plano biológico e o plano da política ou, como retoma Agamben parafraseando o dito da época: «A Política, isto é, dar forma à vida de um povo». Nesta

medida, a sua articulação com o estado de excepção produtor da vida nua, exige uma compreensão biopolítica sob pena de permanecer obscura e infundada.83

Da mesma forma que o economista e o comerciante são responsáveis pela economia dos valores materiais, também o médico é o responsável pela economia dos valores humanos. [...] A saúde é essencial a todo o rendimento. É necessário que o médico colabore para uma economia humana racional que veja no padrão de saúde do povo a condição do rendimento económico. [...] É por isso também que consideramos o homem apenas como uma parte da comunidade nacional, a saúde de cada um como uma parte da saúde nacional, o rendimento de cada um como rendimento parcial da comunidade. [...] Vemos cada vez mais na ideia de saúde a expressão da intensidade de vida, tal como se manifesta na conservação e na multiplicação da espécie, quer dizer enquanto potencial biológico de um povo. [...] aproximamo-nos cada vez mais de uma síntese lógica da biologia e da economia. [...] o médico deve, por um lado, considerar a saúde e a capacidade de trabalho dos homens como um fermento económico e, por consequência, velar por elas para os dirigir e os proteger. [...] o médico deve ser consultado amiúde para que muitas das questões económicas encontrem a sua solução em métodos de trabalho que tornem impossíveis todos os danos causados à saúde e, consequentemente ao rendimento de cada um. (Conti, «L'organisation de la santé publique du Reich pendant la guerre» 1942: 40-49)

A biopolítica nazi elegeu como problema securitário do «corpo biológico da nação» a imagem hereditária da população; isto permitiria traçar a imagem da raça como um invariante antropológico. Daí que a preservação da raça necessitasse de uma intervenção do Estado para manter a imagem hereditária nas suas duas vias: 1) Favorecendo a continuação da raça nos indivíduos sãos e inteligentes; 2) Excluindo da reprodução os indivíduos afectados por graves doenças hereditárias. (Verschuer, «L'image hereditaire de l'homme», 1942: 77)

                                                                                                                         

83 «La novità della biopolitica moderna è, infatti, che il dato biologico è, come tale, immediatamente politico e vice-versa.» «Il totalitarismo del nostro secolo ha il suo fondamento in questa identità dinamica di vita e politica e, senza di questa, rimane incomprensibile.» (Agamben, 1995: 164-165).

Mesmo no interior do Lager, no sector médico, é evidente esta categoria destitutiva da vida indigna de ser vivida ou vida nua; o universo concentracionário mantém uma isonomia ideológica que vai da rua do guetto, a famosa rua Chlodna da Varsóvia (das famílias ricas), da Umschlagplatz para a deportação, da rua Piotrkowska em Lodz, até à indigência suprema de Auschwitz.

Nascido em 1888, o doutor Fritz Klein exerceu medicina até 1943 numa pequena localidade dessa mesma região de Siebenbürgen. Se parecia pouco à vontade no uniforme das SS, revelava um antisemitismo assumido. Ella Lingens, a única médica detida no campo, podia permitir-se o que outros não ousariam, lembrando-lhe que o dever do médico seria salvar todas as vidas humanas. Ele replicava-lhe que era precisamente em atenção dessa vida que ele livrava um corpo são de um apêndice inflamado: os judeus constituíam um foco de infecção para a Europa. (Langbein, 1975: 335)

O eugenismo não é redutível à questão racial: ele abrange a preocupação de todo o corpo popular (Volkskörper). Que esse eugenismo se tenha fundido no corpo judeu como corpo indigno de viver é um patamar político que deriva de um outro mais amplo que é a preocupação pela vida do povo. A exclusão dos factores de degeneração biológica para a saúde hereditária do povo inscrevem-se na ciência genética da época e igualmente na tradição herdada da ciência de polícia do século XVIII que se absolutiza (Agamben, 1995: 163) A imunologia política, convém dizê-lo, não se dirigiu apenas aos judeus embora tenha feito do antisemistismo o seu estandarte principal. Todavia, Hitler estava disposto a abranger todos os cidadãos devido ao enraizamento do político no corpo biológico. O judeu representou o lado quantitativamente maior de equação biopolítica, mas o reportório eugenético, marcadamente tanatológico, visava toda a comunidade alemã, erigida em povo, com vista à fortificação da sua saúde. A valorização do «capital humano» da comunidade segue uma biologia da hereditariedade através da ideia de intensificação da vida. A obrigação da autoconservação (base topológica para a raça pura) leva à des-identificação do antissocial e do incurável, do ser biologicamente inferior que não cabe na comunidade assim imunizada como corpo social homogéneo.

Vemos cada vez mais na ideia de saúde a expressão da intensidade da vida, tal como ela se manifesta na conservação e na multiplicação da espécie, isto é, enquanto potencial biológico de um povo. ("La Biologie dans La Gestion de L'État», Reiter 1942: 42)

Porém, Reiter vai mais longe, lançando as bases de uma imunidade legal ou melhor, do direito ao serviço da imunologia política (o que já era visível no dossier Binding & Hoche embora num sentido bem mais alargado que visava todo o corpo social e não apenas os incuráveis), imunidade penal que não é propriamente um dado novo no eugenismo da época nem um fenómeno tipicamente alemão, a não ser que esteja apenas disponibilizado na sua versão exterminadora do cidadão.

A Legislação biológio-hereditária preocupa-se em suprimir pouco a pouco a criação de gerações novas de indivíduos associais, de modo que as somas empregues até agora para esses incapazes sirvam cada vez mais para a educação de cidadãos de valor. É preciso acrescentar a estes meios completamente excluídos do rendimento nacional, numerosos elementos associais que pertencem à massa dos psicopatas, dos que temem o trabalho, dos antissociais e dos criminosos. Aqui, ainda, será ao médico que incumbirá decidir até que ponto os elementos biológicos permitem utilizar estes indivíduos no processo do trabalho nacional, ou se os devemos considerar como totalmente incapazes. [...] Excluir