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A identidade perdida da errância

Um dos autores que Bauman gosta de citar é Michel Agier que nos propõe uma análise, Aux Bords du Monde, Les réfugiés sobre a situação terrível dos refugiados e deslocados, esses excluídos por excelência. Como vive essa parte da humanidade que ninguém pretende integrar, indesejáveis, na sua liminaridade maldita? Clandestinos e nus:

Os deslocados e os refugiados encontram-se por um tempo fora do nomos, fora da lei normal dos humanos. A sua existência funda-se na perda de um local, ao qual estavam presos por atributos de identidade, relação e memória, e na ausência de um novo lugar social. (Agier, 2002: 55)

A segregação é aqui sinónimo de impureza, do que escapa ao controlo, modulada por termos biológicos como a intocabilidade do pária. A retórica biológica promove uma bio-segregação levada a cabo pela violência. De facto, um dos grandes efeitos da globalização é a desregulação das guerras, a sua exportação para locais longínquos. Os campos de refugiados acolhem, por um lado, os que fogem das guerras e limpezas étnicas mas reproduzem, a seu modo, a exclusão do político: o ser humano é reduzido a um portador de cartão que lhe assegura a assistência alimentar diária. O que é um campo de refugiados? É um dispositivo policial, alimentar e sanitário que é suposto proteger uma população contra a violência, formando identidades e comunidades fechadas (gated identities, gated communities) de sobreviventes das guerras sujas. A vida nos campos possui um carácter ambivalente incontornável: «Os

campos-cidade não são completamente fechados, nem verdadeiramente abertos, os

refugiados não são pessoas realmente mortas, nem completamente vivas.» (Agier, 2002: 125)

O refugiado está continuamente à espera; o único papel que lhe é permitido desempenhar é o de vítima. As townships do apartheid sul-africano constituíam formas de vida amputadas na cidade, onde os residentes se deslocavam de manhã para o trabalho e regressavam à noite. Porém, os refugiados habitam cidades nuas, visto que nenhuma actividade económica ou política aí tem lugar. (Agier, 2002: 112, 113) O princípio que vigora nos campos de refugiados é o silêncio político dos sujeitos sem capacidade reivindicativa; na mistura étnica dos campos relativizam-se os nacionalismos e engendram-se novas formas de socialização, aprende-se uma globalização no local. Os desplazados colombianos, os que escapam dos grupos rebeldes da Serra Leoa, os refugiados de Dadaab, de Walda no Quénia, as lutas entre Hutus e Tutsis no Ruanda, os curdos do Iraque, todos se entregam a um êxodo, procurando estratégias de invisibilidade que ocultem as suas origens, os motivos da perseguição. Os campos são dispositivos de urgência humanitária e de assistência médica entregues à gestão do Alto Comissariado para os Refugiados e ONG's, mas obrigados a permanecer nessa situação de excepção durante longos anos, os refugiados tornam-se seres fora do tempo e fora do lugar. O seu único estatuto é o de vítima. Ser refugiado é perder a identidade; toda a existência social e os agentes humanitários podem tornar-se, eles próprios, uma peça involuntária na cadeia de exclusão. Ao que

parece os campos de refugiados reproduzem o estigma, demarcam o «lixo humano», o refugo (Bauman, 2007a: 46, 47) É nessa medida que os campos são situações de excepção que se tornam permanentes.

A vida é-lhe «dada» pelo princípio humanitário. A aplicação deste princípio instaura uma contradição entre a vida biológica mínima (protecção, alimentação, saúde) e a existência social e política dos indivíduos: o refugiado está certamente vivo, mas não «existe». (Agier, 2002: 93)

Qual a origem desta situação? O excedente populacional é uma consequência da modernidade e da globalização, e o planeta cheio implica que os «economicamente inviáveis» sejam banidos para o estatuto do consumidor falhado.

Loïc Wacquant, da Universidade da Califórnia-Berkeley e do Centro Europeu de Sociologia, estuda a relação entre o declínio do Estado-providência e as políticas em matéria criminal. Ele argumenta que a atrofia do Estado social correspondeu a uma hipertrofia ou aumento do sistema carcerário e da população prisional. Analisando o tipo de detidos na Califórnia, Wacquant conclui que as prisões estão repletas, não de perigosos criminosos implacáveis e violentos mas de pequenos delinquentes de direito comum devido a estupefacientes e pequenas desordens da ordem pública, saídos essencialmente das populações precárias e da classe operária que deixaram de ter protecção social. O aparelho carcerário, na prática, assume um papel no governo da miséria, isto é, os que não possuem contrapartidas no mercado de trabalho. Nesse sentido, diminui artificialmente o nível de desemprego, encarcerando sobretudo negros e pessoas oriundas de guetos urbanos. O encarceramento, sugere Wacquant, é um meio de manutenção da ordem social e uma forma de exclusão da mão-de-obra excedente, assim como dos imigrantes, em suma, todos os que não são abrangidos por uma segurança social enfraquecida. A precariedade parece ser um dos pólos cruciais do aumento da população reclusa. Diz o autor: « […] existe uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efectivos encarcerados, ao passo que não existe nenhuma relação comprovada entre a taxa de criminalidade e a taxa de encarceramento. » (Wacquant, 1999: 100)

A tese de Wacquant é clara e baseia-se em estatísticas, essa nova forma de ordenar as populações que se tornou subitamente biopolítica: o desinvestimento no Estado social

obcecada com a segurança e com a vigilância electrónica como modo de tratamento penal da miséria. Esta criminalização da miséria é uma importação americana, eis a nova bandeira neo-liberal e Portugal não escapou a isto. Afirma ainda:

Se os países latinos, Espanha, Portugal, Itália, viram também a sua população penitenciária aumentar brutalmente nos últimos anos, é porque criaram apenas recentemente programas de ajuda social relativamente restritos e «modernizaram» o seu mercado de trabalho, isto é, flexibilizaram as condições de despedimento e alargaram as condições de exploração da mão-de-obra copiando o modelo britânico (logo, indirectamente americano) (Wacquant, 1999: 139-140)

Noutra obra sobre os párias urbanos, Wacquant analisa o desenvolvimento do capitalismo a partir dos anos 60, principalmente nos Estados Unidos, no que chama a transição do gueto comunitário ao hipergueto. Na fase inicial – princípios do séc. XX – tínhamos o gueto como instituição de exclusão racial; porém, na fase do chamado pós- fordismo, o gueto transformou-se devido a novas formas de organização capitalista (mobilidade do capital, autonomização do sector financeiro, especialização flexível, redução generalizada da protecção dos assalariados), rumo a uma predominância de serviços e empregos a tempo parcial. Esta nova ordem pós-industrial ajudou a marginalizar o gueto americano associando-o cada vez mais à criminalidade, à depravação e à anarquia. Divididos entre os bons negros e os maus negros (os que habitam o gueto), os habitantes enquadrados nesta última (des)qualificação estavam afastados dos empregos. (Wacquant, 2006: 81).

Robert Castel analisa a génese dos bairros periféricos parisienses e a estigmatização forjada na lógica de guetização enquanto défice de cidadania. Para ele a conflitualidade social das «classes perigosas» nasceu da liberalização do mercado de trabalho; os vagabundos de outrora foram criminalizados devido ao seu afastamento ou impossibilidade de aceder ao trabalho. Podemos falar do retorno do estigma, na medida em que o fracasso da República implicou um racismo social dos grupos privados de reconhecimento político.

Talvez seja preferível começar a falar de «excluídos», mas com a condição de compreender que se trata de excluídos do interior. Entendo por isso que a exclusão que os atinge é o produto de mecanismos de ocultação, de denegação e de discriminação que relevam de um uso perverso do modelo republicano. (Castel, 2007: 77)

Referindo-se à génese dos subúrbios franceses no sentido moderno do termo, Michel Kokoreff indica quatro fases: 1) a marginalização do espaço urbano desde a primeira metade do séc. XIX; 2) a construção de alguns mitos fundadores, como por exemplo “a cintura negra” a “zona” (em Portugal poderíamos dizer a «zona J»; 3) a construção massiva de grandes conjuntos de habitação social, o que marca uma certa territorialização, as zonas de urbanização prioritária (ZUP) o que faz aumentar exponencialmente a população dos subúrbios; 4) o nascimento de uma retórica político- mediática que assinala uma renovação ou reabilitação dessas zonas. (Kokoreff, 2003: 162-167)

A conotação racial é preponderante para essencializar as diferenças culturais naturalizando-as, de modo a separar os modos de comportamento como se fossem mundos paralelos. A marca do estrangeiro torna-se uma marca indelével de estranheza do imigrante, como um «estrangeiro do interior» (Balibar). O universalismo republicano exige o abandono dos particularismos das minorias étnicas, lançando o comunitarismo no afastamento irredutível da comunidade fechada sobre si mesma. É o que significa viver em bairros delimitados pelo estigma do fora; o pluralismo não passa de uma promessa imaginativa. Wacquant refere mesmo que o início da segregação racial se tornou permanente devido a uma política de alojamento e renovação urbana após a Segunda Guerra mundial que concentrou os desfavorecidos nas inner cities, nos subúrbios. O abandono institucional adopta uma estratégia já denunciada por vários autores e que consiste nisto: transformar as condições sociológicas dos habitantes da periferia em traços psicológicos que lhes são imputados e que acentuam a sua carreira como população urbana marginalizada. A pobreza urbana passa a ser assim o resultado de patologias colectivas. Mais do que discriminados eles tornam-se medicalizados como anti-sociais.

Ser pobre torna-se um delito, sustenta Bauman, por parte daquele que pretende o direito ao consumo e não (quer?) trabalhar. A sedução do mercado traça as fronteiras e a assistência social é substituída pelas prisões. A consequência disso é libertarmo-nos da

responsabilidade moral de os defender contra o seu destino. Nesse caso, estaríamos a defender a sociedade das pessoas decentes dos marginais do gueto. É como se os excluídos tivessem escolhido a sua própria desgraça… Nesse caso, a vigilância e o controle seriam actos de caridade para aqueles que não conseguem aceitar a ideia de uma sociedade bem ordenada. Num mundo de consumidores, os pobres são os inútei