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Do poder pastoral ao nascimento do Estado moderno

Ao analisar a proximidade entre o poder religioso e a dimensão política em Michel Foucault, é possível divisar a conceptualização de um poder secular no seio daquilo a que chamou o poder pastoral ou pastorado. O novo eixo governamental deve referir-se, no entanto, a uma crise no seio do próprio pastorado. Como podemos situar metodologicamente esta ideia de secularização em Michel Foucault? E qual a relação entre a evanescência do poder pastoral e a nova racionalidade política?

O núcleo nocional da secularização refere-se a um acoplamento ou a um novo agenciamento de poder em torno, não já da figura do pastor, mas da razão de Estado. Que novas orientações assume esta nova forma de governamentalidade? Afastando a questão jurídico-teológica do fundamento da soberania, os políticos irão estabelecer toda uma nova arte de governar a partir sobretudo do século XVII, visto que muitas das funções pastorais são retomadas no exercício da governamentalidade. (Foucault, STP: 253)

                                                                                                                         

71 O princípio de indemnização ou indemnidade ontológica é fruto de um mecanismo auto-destrutivo

antropocêntrico e deletérico na sua versão humanista: «L'humanisme conduit à la construction d'un territoire d'exception mettant l'être humain à l'abri de tout dommage, et l'humanisme mondialisé accomplit le fantasme d'une indemnité absolue sans prendre acte des destructions qu'il opère.» (Idem: 159) E acrescenta no seu programa: «À la question «Qui vive?», question immunologique des frontières impeccables, question posée du haut d'un mirador, nous substituons la politique sur le qui-vive, attentive aux nouvelles formes de l'être et de la politique.» (Idem: 161)

Apesar de Foucault não tematizar directamente a questão da secularização, ainda assim é possível salientá-la na trama de uma genealogia da governamentalidade, sendo a problemática exposta nestes termos: «a passagem da pastoral das almas ao governo político dos homens.» (Idem: 232) Esta passagem far-se-á com as revoltas anti-pastorais do séc. XV e XVI (que Foucault designa como insurreições de conduta), que não implicarão o desaparecimento do pastorado mas o surgimento em paralelo de uma outra arte de governar, a saber, a razão de Estado. Essa intenção é adiantada como programa do curso Sécurité, Territoire, Population (1977-1978):

Pretendo mostrar como a governamentalidade nasceu a partir de um modelo arcaico, o da pastoral cristã, apoiou-se em seguida numa técnica diplomático- militar e finalmente como esta governamentalidade apenas pôde adquirir as suas dimensões actuais graças a uma série de instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo e que se chama, no antigo sentido do termo, o dos séculos XVII e XVIII, a polícia. Pastoral, novas técnicas diplomático-militares e finalmente a polícia: eis os três pontos de apoio a partir dos quais se pôde produzir este fenómeno fundamental na história do Ocidente: a governamentalização do Estado. (Idem: 113)

A razão governamental sofre uma primeira metamorfose até ao conceito de razão de Estado a partir do séc. XVI e, nova mutação, com o advento do liberalismo. A pedra-de-toque da nova governamentalidade é a questão da população que surge numa territorialidade de tipo feudal. A matriz do Estado moderno parece residir, assim, no poder pastoral através do conceito de individualização.

Isto deve-se ao facto de o Estado moderno ocidental ter integrado, numa nova forma política, uma antiga tecnologia de poder, originada nas instituições cristãs. Podemos designar esta tecnologia como poder pastoral. De certa forma, podemos ver no Estado uma matriz da individualização ou uma nova forma de poder pastoral. (Foucault, «Le sujet et le pouvoir» DEIV: 229-230)72

                                                                                                                         

72 Foucault parece seguir aqui na mesma linha que Schmitt quando este afirma na sua Teologia Política

que «Todos os conceitos pregnantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados.» (Schmitt, 1988: 46); Contudo, Foucault não faz qualquer alusão a uma omnipotência do Legislador nem

O poder pastoral acabou por se generalizar a todo o corpo social, tomando uma nova modalidade nas relações de poder: «o poder de tipo pastoral, que durante séculos – por mais de um milénio – foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de instituições.» (Idem: 231) «O pastorado, se perdeu na sua forma estritamente religiosa o essencial dos seus poderes, encontrou no Estado um novo suporte e um princípio de transformação». (Foucault, «La philosophie analytique de la politique» DEIII: 551) O que leva à intrusão das técnicas pastorais cristãs na nova razão governamental?

Se o pastorado, argumenta Foucault, preludia a razão governamental é em virtude de uma transformação, uma alteração que, todavia, mantém alguns dos seus vestígios. Em lugar de aludir a uma continuidade ou descontinuidade, importa deslindar o seu ponto de cristalização, a partir do qual nasce o Estado moderno:

Em suma, o pastorado não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica. É algo de inteiramente diferente; trata-se de uma arte de governar os homens e é a partir desse lado, creio, que é necessário procurar a origem, o ponto de formação, de cristalização, o ponto embrionário desta governamentalidade cuja entrada na política marca, nos fins dos séculos XVI- XVIII, o seio do Estado moderno. (Foucault, STP: 169)

De facto, o pastorado deu origem a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de guiar e ter sob a mão, o que constituiu o pano de fundo da nova governamentalidade visto que, ao contrário do que acontecia no mundo antigo, as suas técnicas tenderam sempre para uma progressiva institucionalização. A figuração do monaquismo ocidental segundo o pastorado apresenta-se, assim, deste modo: a salvação, a obediência e a verdade. (Foucault, STP: 240-241) Governar de forma pastoral é atender a uma economia da salvação e da obediência, onde importa desvelar uma verdade oculta, manifestando-se por meio de um zelo e uma aplicação indefinida sobre o indivíduo mais do que sobre um território. Embora a metáfora política do pastor se encontre em Platão,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

aceitaria o decisionismo schmitiano. Para Locke, ao invés, o poder do Legislador emana do povo, o que justificaria, em caso de despotismo, um direito de resistência.

nomeadamente em O Político, é apenas com o cristianismo e com a ideia de uma comunidade constituída em Igreja a fim de salvar a humanidade que ela adquire a sua vertente histórica mais acentuada. O elemento que diverge entre os gregos e o cristianismo é a categoria da obediência.73

O pastorado incide num rebanho a partir da figura de um guia que o salva, sendo que o exercício desse poder é um dever. Supõe, assim, uma atenção individual a cada elemento do rebanho. (Foucault, ««Omnes et singulatim»: vers une critique de la raison politique» DEIV: 134) Esse vínculo individual face ao pastor baseia-se numa ideia de obediência e submissão, e a relação de verdade entre um e outro induz um exame de consciência. A técnica de confissão e de mortificação (como renúncia ao mundo e a si) acompanha a génese dessa forma de poder. Poderemos ver aqui uma ressonância da

utilidade e docilidade presentes na configuração do poder disciplinar da obra Surveiller et punir? De facto, diz o nosso autor, a modernidade inventou a liberdade mas inventou

igualmente as disciplinas, isto é, a sociedade disciplinar.

Trata-se de um poder individualizante o do pastorado74 e suporta-se num princípio de sujeição (assujettissement), termo caro a Foucault no interior da sua genealogia ético-política, como se sabe, e que enquadra de imediato o sentido da história do sujeito enquanto destinatário de uma salvação, lei e verdade. É sobretudo em torno de uma obrigatoriedade da direcção de consciência que surge a novidade do pastorado relativamente à Antiguidade, relação de dependência integral, indefinida e, por vezes, absurda. A humildade assim definida é sobretudo uma renúncia à sua própria vontade numa finalidade sem fim: «O fim da obediência é o de mortificar a sua vontade, fazer com que a sua vontade enquanto vontade própria seja morta, isto é, que não haja outra vontade do que a de não ter vontade.» (Foucault, STP: 181) O cristianismo impôs- se junto da sociedade civil através de um ascetismo que procurava controlar os indivíduos por meio da sua sexualidade. «A carne é a própria subjectividade do corpo, a

                                                                                                                         

73 «O pastorado cristão, ele próprio, creio, organizou algo completamente diferente e que é estranho,

parece-me, à prática grega, organizando o que podemos chamar a instância da obediência pura, a obediência como tipo de conduta unitária, conduta altamente valorizada e que tem a sua razão de ser essencial nela própria.» (Foucault, STP: 177)

74 Sobre o poder individualizante do pastorado consultar: Foucault, «La philosophie analytique de la

politique» DEIII: 534. Como escreve neste texto: «O indivíduo tornou-se um assunto essencial para o poder. O poder é tanto mais individualizante quando, paradoxalmente, é mais burocrático e mais estatal. O pastorado, se perdeu na sua forma estritamente religiosa o essencial dos seus poderes, encontrou no Estado um novo suporte e um princípio de transformação.» (Idem: 551).

carne cristã é a sexualidade presa no interior dessa subjectividade, dessa sujeição do indivíduo a ele mesmo, e este foi o primeiro efeito da introdução do poder pastoral na sociedade romana.» (Foucault, «Sexualité et pouvoir» DEIII: 566.)

Esses procedimentos de individualização foram retomados pelas sociedades capitalistas, embora num contexto político onde o governo se definia (segundo La Perrière) pela correcta disposição das coisas a fim de as conduzir a um fim conveniente. A nova arte de governar relacionava-se com o aparelho administrativo da monarquia, com a ciência do Estado e com o mercantilismo. É o problema da população que, no séc. XVIII, incrementa a nova arte de governar e conduz a duas consequências: o reforço do pastorado na esfera religiosa e o aparecimento de uma razão de Estado onde transparece uma relação do Estado consigo próprio, uma auto-manifestação ou, nas palavras de Botero: «um conhecimento perfeito dos meios pelos quais os Estados se formam, se fortificam e aumentam.» (Foucault, STP: 296)75

Uma das implicações que decorre do desenvolvimento da razão de Estado é a concorrência entre os Estados – a abertura de um espaço de concorrência política, afrontamento e rivalidade, sob o signo da força. Isto implica que se procure uma dinâmica de forças que permita conter a mobilidade e a ambição dos estados sem prejudicar o seu crescimento.

A situação da Europa no século XVII a partir do Tratado de Vestefália era a de um recorte geográfico que não compreendia a Rússia, com múltiplos Estados, diferenciados, apresentando um desnível entre pequenos e grandes. Daí a emergência da temática do equilíbrio europeu, de modo a que as maiores potências não pudessem impor a sua lei aos outros.

Segundo Foucault são utilizados dois instrumentos para o equilíbrio da Europa: a guerra e o dispositivo diplomático-militar. O sistema diplomático-militar assegura o equilíbrio, visto que cria uma carreira de armas, a profissionalização do homem de guerra e um mecanismo de recrutamento. «A existência de um dispositivo militar permanente, dispendioso, importante, especialista no próprio interior do sistema de paz,

                                                                                                                         

75 Sobre os teóricos da razão de Estado, Botero, Palazzo e Chemnitz, ver «Omnes et singulatim» DEIV:

foi certamente um dos instrumentos indispensáveis à constituição do equilíbrio europeu.» (Foucault, STP: 313)

O segundo instrumento da arte de governar segundo a razão de Estado é a polícia. O desígnio da polícia nesta acepção, prende-se com a condução dos homens com a finalidade de assegurar a administração do Estado e favorecer a vida dos cidadãos. Com a polícia, a função do Estado dirige-se à gestão da vida e do bem-estar das populações, numa espécie de utopia política.

Na Alemanha surge nas universidades a ciência da polícia (Polizeiwissenschaft) que se difunde pela Europa. Assegurar a ordem do Estado, assim pensaram os autores desta utopia, Turquet, Delamare e Justi. O primeiro afirmava que a polícia deveria conduzir a cidade ao seu esplendor. De que se ocupa a polícia? É um tipo de administração que deve ser entendido em sentido lato. Ele concerne ao território, aos homens e às relações de propriedade, as suas necessidades, o controlo do comércio, a saúde, a actividade laboral e a circulação das gentes. «Aquilo de que se ocupa a polícia é, no fundo, a sociedade.» (Foucault, STP: 333)76

Delamare afirma mesmo que a polícia vela pela felicidade dos homens embora num contexto mais urbano. Contudo, o seu poder regulamentador deve ser distinguido da justiça sendo que, no século XVIII surgirá uma crítica do Estado de polícia empreendida pelos fisiocratas. O governo pela polícia sofrerá um deslocamento; se por um lado ele possui todo o tipo de mecanismos de gestão das populações, por outro lado, assumirá um pendor claramente repressivo, evitando as desordens, os ilegalismos e a delinquência. Este é o seu sentido negativo. Serão os economistas a empreender uma crítica e a conferir uma nova forma à arte de governar.