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A descrição genealógica não pretende ser prescritiva; ela revela as redes de contingência e a forma de racionalidade que preside à sua instituição. A actualidade que é a nossa deve ser encarada com modéstia, não que não seja importante, mas não é um momento único e decisivo da História. É preciso evitar o dramatismo que qualifica o momento em que vivemos como a perdição da História, como o mais negativo relativamente a todos os que o antecederam. Foucault não pretendeu apresentar um programa político definido. O que designa como política da verdade é, antes, um critério

                                                                                                                         

42 «Par le petit geste qui consiste à déplacer le regard, il rend visible ce qui est visible, fait apparaître ce

qui est si proche, si immédiat, si intimement lié à nous qu'à cause de cela nous ne le voyons pas. Son rôle est beaucoup plus proche du rôle de celui qu'on a appelé le «philosophe» au XVIIIe siècle»» (Foucault,

«La scène de la philosophie», DEIII: 594).

estético, um modo de fornecer indicadores tácticos, um imperativo condicional que evite dizer: combatam desta ou daquela maneira! O sentido da luta é sobretudo indicar os pontos-chave, as linhas de força e os bloqueios que assumem os mecanismos de poder. (Foucault, STP: 5)

Deleuze e Foucault participaram de forma militante em causas de rebeldia aos poderes instituídos, formas de resistência micropolítica organizadas em torno do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões) formado na década de 70 que consistia sobretudo em conferências de imprensa e inquéritos aos reclusos destinados a denunciar a situação das prisões francesas nessa época.44

Em Maio de 68, Deleuze encontrava-se em Lyon e Foucault em Sidi-Bou-Saïd na Tunísia, mas ambos se entusiasmaram com o evento. Para Foucault particularmente, Maio de 68 representou o declínio do marxismo e o surgimento de novos interesses políticos. Esses acontecimentos de Maio colocaram questões à política que escapavam ao quadro teórico tradicional (questões sobre as mulheres, as relações entre os sexos, a medicina, a doença mental, o ambiente, as minorias, a delinquência) repondo-as num discurso que o marxismo era impotente para explicar. (Foucault, «Polémique, politique et problématisations», DEIV: 595) No entanto, o nível de militância dos dois filósofos não ultrapassou os pequenos grupos. Para eles, a tarefa do intelectual na sua luta contra as formas de dominação, não consistia em propor um modelo de sociedade mas uma experimentação de novas práticas em grupos restritos e sobretudo numa conceptualização. (Idem: 372) Isso não impediu o céptico Foucault de tomar parte contra ou a favor de determinadas reinvidicações políticas seguindo a elaboração de um discurso histórico-crítico e problematizador de situações políticas, do que veio a designar uma ontologia do presente: era a favor do aborto, contra a pena de morte, contra o encarceramento injustificado, etc.

Foucault situa a emergência das lutas num plano de recusa da subjectivação. Para ele existem três tipos de lutas: contra as formas de dominação, contra as formas de exploração e, finalmente, contra aquilo que constitui uma subjectivação, um modo de identidade, que prende o indivíduo a um sistema de signos que lhe prescrevem o que ele é. As lutas contemporâneas devem assumir uma resistência contra essa individualidade

                                                                                                                         

44 Cf. cap. 17 “Deleuze et Foucault: une amitié philosophique” in Dosse, François, Gilles Deleuze et Félix Guattari. Biographie croisée, Paris, La Découverte, 2007.

social, a que chamou o «governo da individualização». (Foucault, «Le sujet et le pouvoir» DEIV: 227)

Foucault declara que as relações de poder são da ordem da estratégia. O que significa isto? Explanando as três acepções de estratégia: 1) meios para atingir um fim ou um objectivo, 2) acção segundo o que perfeccionamos da acção dos outros; 3) confronto para levar o adversário a renunciar à luta, ele privilegia claramente esta última. O poder traz consigo uma resistência e esta sonha sempre em tornar-se, ela própria, poder. Encontrar o ponto de inversão possível, eis a estratégia do poder. Por outro lado, o poder em si mesmo desencadeia estratégias de confronto, uma vontade de insubmissão, um desejo de Revolução, dizemos nós.

Deleuze afirmou que a Filosofia é uma criação de conceitos. Que relevância podem estes assumir contra as formas de dominação?

O que representa o regresso aos gregos na última fase foucaultiana? Considerando a dupla acepção do que chamou «modos de subjectivação», primeiro, o modo como o poder constitui os sujeitos (sujeição) e, segundo, o trabalho ou procedimento de si a si, isto é, uma prática de si (auto-estilização); o estilo de

existência.45 A questão da actualidade coloca-se, assim, nessa encruzilhada de sujeição e subjectividade em que nos encontramos e que importa analisar e problematizar; relatar o conteúdo histórico assenta num empreendimento crítico sob a forma de um inquérito ao discurso produzido pelas ciências, desemaranhando a hipótese do poder nesse saber constituído – é isso a singularização, o procedimento de eventualização (mostrar as conexões entre o conhecimento e os mecanismos de coerção).46 A filosofia é um procedimento de des-sujeição, de recusa do que somos enquanto identidades formadas pelas instituições, pelo campo social dominado por uma rede de poder e de conhecimento.

                                                                                                                         

45 «A moral grega está bem morta e Foucault achava tão pouco desejável quanto impossível ressuscitá-la;

mas um detalhe desta moral, a saber a ideia de um trabalho de si sobre si, parecia-lhe susceptível de retomar um sentido actual, à maneira de uma dessas colunas dos templos pagãos que vemos por vezes utilizadas em edifícios mais recentes.» (Paul Veyne, «Le dernier Foucault et sa morale», Critique, Ago- Set 1986: 939).

46 «[…] qu'est-ce donc que je suis, moi qui appartiens à cette humanité, peut-être à cette frange, à ce

moment, à cet instant d'humanité qui est asujetti au pouvoir de la vérité en général et des vérités en particulier? Désubjectiver la question philosophique par le recours au contenu historique, affranchir les contenus historiques par l'interrogation sur les effecta de pouvoirs dont cette vérité dont ils son censés relever les affecte, c'est, si vous voulez, la première caractéristiqu de cette pratique historico- philosophique.»» (Foucault, «Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]» in Bulletin de la

O grande medo da vida moderna é o medo da subdeterminação, da falta de clareza, da incerteza – por outras palavras, da ambivalência.

BAUMAN, Z., Life in Fragments