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A crise de governamentalidade e as revoltas de conduta

Se o pastorado se caracterizou por uma economia das almas, cuja dispersão tomou a forma da governamentalidade, enquanto poder e como forma de conduzir

                                                                                                                         

76 Para Von Justi: «La police, c'est l'ensemble de lois et des règlements qui concernent l'intérieur d'un État,

qui tendent à affermir et à augmenter sa puissance, à faire un bon emploi de ses forces» Apud Foucault,

condutas, acção sobre acções, ele é simultaneamente inseparável dos pontos de

resistência ou de contra-conduta, isto é, movimentos que têm por objectivo uma outra conduta, outras formas de ser governado. Na lição de 1 de Março de 1978 do Curso

Sécurité, Territoire, Population, Foucault elenca essas formas de resistência que, no

seio do pastorado, acabaram por constituir uma crise que assumiu igualmente uma dimensão política e que acabaram por corroer o poder pastoral. Estranhamente o ascetismo é apresentado como uma forma de contra-conduta, provavelmente na sua modalidade extrema, visto que colide com a obediência, acabando por reivindicar para si o estatuto de uma anti-pastoral, formando comunidades onde se contavam os

beguines como movimento do Espírito Livre, etc; mesmo não sendo heréticos estes

movimentos levavam ao limite as experiências místicas.

Sendo o poder uma instância estratégica e dinâmica, ele implica uma resistência que lhe é contemporânea e coextensiva77. Foucault não esconde a sua simpatia pela história religiosa e política da resistência, pelo seu papel de recusa dos modelos vigentes de governamentalidade. A sua análise das contra-condutas pastorais releva disso mesmo, de uma apologia do contrapoder; apesar dessa postura antifeudal, as contra-condutas não chegaram a eliminar radicalmente o poder com que se defrontavam (em certa medida reforçaram o vigor pastoral), mas transformaram o seu campo de actuação que passou a ser político. Nesse caso, na genealogia das contra-condutas deparamos com a génese do próprio fenómeno político, com o nascimento da Revolução. Toda a política do séc. XIX é feita sob a égide da Revolução francesa. A lenta ascensão das contra- condutas dessubstancializou a história do seu lastro de dominação, da sua arreigada cristalização no pólo dos dominadores, lançando em jogo a liberdade. É por isso mesmo que o poder e a liberdade se tornam conciliáveis. Como ele afirma: «A relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem, então, ser separadas.» (Foucault, «Le sujet et le pouvoir» DEIV: 238) E, facto assinalável, a insubmissão eclode tanto no campo religioso como nos domínios em que a pertença religiosa dá lugar a novas modalidades de conduta.

Jean-Claude Monod destaca o conceito de crise de governamentalidade presente no Curso Naissance de le Biopolitique como matriz da arte de governar do liberalismo,

                                                                                                                         

77 «Pour résister, il faut qu'elle suit soit comme le pouvoir. Aussi inventive, aussi mobile, aussi productive

que lui. Que, comme lui, elle s'organise, se coagule et se cimente. Que, comme lui, elle vienne d'en bas et se distribue stratégiquement..» (Foucault, «Non au sexe roi», DEIII: 267).

crise que ocorre no interior do antigo dispositivo de poder monárquico. Esta crise do séc. XVIII acaba por opor o paradigma despótico da soberania (tal como exposto em

Surveiller et punir), um excesso de governo que se centrava no conceito jurídico de

poder, na relação de poder que faz morrer, a que se opõe o conceito de sociedade.78 Nesse sentido, Monod refere três crises de governamentalidade em Foucault: a crise do pastorado (séc. XVI), a crise do despotismo (séc. XVIII) e a crise do liberalismo clássico (séc. XVIII), interessando-se particularmente pela questão do liberalismo como fim da Era pastoral, embora Foucault refira enigmaticamente que o poder pastoral é algo de que nunca nos libertámos verdadeiramente. (Foucault, STP: 152)

Por outro lado, no Curso Les Anormaux, é indicado o papel da medicina como secularização dos domínios religiosos: o médico imiscui-se e confisca o campo dominado pela anatamo-política religiosa, invadindo a área da sexualidade anómala e edificando sobre ela um dispositivo de saber sintomatológico; recodifica a convulsão enquanto concupiscência (poder eclesiástico) para a psiquiatria – convulsão nervosa, e doença mental (histeroepilepsia). (Cf. AN aula de 26 Fev de 1975)

Perante as metamorfoses do poder, sejam elas eclesiásticas, psiquiátricas ou judiciais, o intelectual posiciona-se do lado das contra-condutas; mais do que prescrever um modelo de sociedade ele funciona como um antidéspota; deve colocar um limite aos excessos de poder.

É visível já em Michel Foucault um certo ocaso do intelectual universal capaz de iluminar e apontar caminhos. Para ele o intelectual «portador de valores universais», estava comprometido com uma verdade que se reclamava de uma postura jurídica (a lei justa), ao passo que o intelectual específico deve questionar os efeitos de poder que se jogam em torno da verdade. Num texto de 1976, «A função política do intelectual» escreve: «É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de «ciência/ideologia», mas em termos de «verdade/poder»». (Foucault, «La fonction politique de l'intellectuel» DEIII: 113) Impõe-se portanto a figura do intelectual

                                                                                                                         

78 «A grande ideia do século XVIII tal como a caracteriza Foucault, é a de deixar operar uma «natureza»,

de deixar jogar o desejo como aquilo que move os indivíduos e contra o qual, de todo o modo, não podemos fazer grande coisa, mas não nos privando de operar certas conexões, governar de modo a obter os melhores efeitos.» «Qu’est-ce qu’une «Crise de Gouvernamentalité?»» in Lumières, Nº 8, Foucault et

específico, o que interroga as políticas de verdade no sentido de se confrontar com as

formas de dominação.