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A imunopolítica do totalitarismo e a protecção sacrificial da vida

Como vimos, apenas a figura da medicalização pode dar conta de uma relação causal necessária para que o fundamento de uma imunologia política venha à luz, na relação entre degeneração e política da vida, que o eugenismo elevou ao seu ponto paradoxal. A obra de Esposito pretende sanar essa lacuna deixada em aberto por Foucault no que chamaremos a antinomia da biopolítica, a saber, como é que um poder

                                                                                                                         

92 Seguimos aqui a obra de Proctor, Racial Hygiene. Medicine under the nazis. «The genetic doctor was

not a new speciality but an entirely new kind of doctor: one who cared for the future of the race, one who put the good of the whole over the good of the part. "Every doctor," Verschuer proclaimed, "must be a genetic doctor" (Jeder Arzt muss Erbarzt sein).» (Proctor, 1988: 105)

sobre a vida visa incrementá-la e higienizá-la através da sua própria aniquilação? A razão política deve interrogar a coexistência entre o impulso de autoprotecção e a pulsão de destruição.93

A tarefa consiste agora em estabelecer a via de conexão entre o paradigma imunitário e a modernidade.

No primeiro volume da trilogia não é ainda evidente o delineamento do paradigma imunitário. Communitas. Origine e destino della comunità de 1998 ocupa-se sobretudo da desconstrução da ideia de comunidade em Hobbes, Rousseau e Kant aproximando-a do niilismo.

Para Esposito a modernidade não inventou a questão da auto-segurança ou auto- preservação, mas coloca-a como opção estratégica, como o seu próprio problema. A modernidade, como defende em Bíos, lança a si própria essa tarefa de auto-conservação ou preservação da vida, como uma meta-linguagem, o que ocorreu quando caíram as defesas de protecção simbólica «a ordem transcendente de matriz teológica». (Esposito, 2004: 52)

A assimilação do paradigma imunitário à modernidade acarreta um nexo causal, ou pelo menos, conceptual entre a modernidade e o totalitarismo, visto que este último representa o paroxismo biopolítico da imunologia política. Porque motivo a modernidade suscita inevitavelmente a questão da imunização social? Vejamos o que escreve Esposito a este respeito na obra Bíos:

Podemos chegar a afirmar que não foi a modernidade que levantou a questão da autoconservação da vida, mas que esta última colocou em evidência, quer dizer, «inventou» a modernidade como aparato histórico-categorial capaz de resolver a questão. Em suma, aquilo que entendemos por modernidade, no conjunto e no essencial, poderia entender-se como a metalinguagem que durante alguns séculos deu expressão a uma reivindicação proveniente do recôndito da vida, mediante a elaboração de uma série de relatos capazes de responder-lhe de maneira cada vez                                                                                                                          

93 «La coexistence, au sein de structures politiques, d'énormes machines de destruction et d'institutions

dévouées à la protection de la vie individuelle est une chose déroutante qui mérite quelque investigation. C'est l'une des antinomies centrales de notre raison politique.» (Foucault, «La technologie politique des individus» DEIV: 815)

mais eficaz e sofisticada. [...] Se isto é verdade, então não se devem interpretar as grandes categorias políticas da modernidade de maneira absoluta, pelo que declaram ser, nem exclusivamente na base da sua configuração histórica, mas sobretudo como formas linguísticas e institucionais adoptadas pela lógica imunitária para assegurar a vida contra os perigos derivados da sua configuração (e conflagração) colectiva. (Esposito, 2004: 53)

Se Bauman, como vimos, defende que a modernidade tem em si uma propensão totalitária devido ao projecto de uma legislação da razão (engenharia social) e uma forte componente burocrático-administrativa, Esposito destaca a figura da conservação da vida, que no entanto, é assombrada pelo projecto de auto-conflagração autoimunitária devido a uma excessiva defesa de uma comunidade nacional restrita (a dos arianos). Nesse caso, a adiaforização que Bauman refere mais não é do que uma forma de imunização. Esposito salienta efectivamente o lado político-terapêutico das populações que nos coloca imediatamente no âmago da biopolítica tal como Foucault o direccionou. A modernidade em Foucault é também o lugar das disciplinas mas também o do biopoder.

O conceito nazi de raça é o exemplo da economia mortífera do biopoder embora pudessemos fazer um recuo genealógico. O potencial do detalhe é o racismo anónimo, detalhe não inteiramente resolvido ou diluído na lógica imunitária. Poder-se-ia aludir a uma deturpação do biopoder, um abastardamento, mas não é isso que Foucault procura. O sinal inverso da descrição biopolítica mantém a sua operância sem sofrer qualquer desnaturalização.

O Estado nazi tornou absolutamente co-extensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja - não só os outros, mas os seus próprios. (Foucault IDS: 311, sublinhado nosso)

E noutro passo ainda sobre a biopolítica nazi:

Um pôr em ordem eugénico da sociedade, com o que podia implicar de extensão e de intensificação dos micropoderes, a coberto de uma estatização ilimitada, era acompanhado pela exaltação onírica de um sangue superior; esta implicava ao mesmo tempo o genocídio sistemático dos outros e o risco de se expor a si própria a um sacrifício total. (Foucault HS1: 197 ênfase nosso)

Estas asserções: «mas os seus próprios» e « o risco de se expor a si própria a um sacrifício total», afloramos o horizonte autoimune, que obviamente Foucault não constrói mas cujo campo abre. Porquê aos seus próprios? Não se tratava, ao invés e apenas, de condenar à morte os seres biologicamente inaceitáveis? Não se impunha no regime nazi a tarefa de excluir o outro, o estranho, o viscoso, o judeu e o cigano? Quando é que um poder protector, retransmitido a todo o corpo social, se vira contra si, contra aqueles que pretende salvar? Numa passagem anterior já temos essa hipótese, esse traço de auto-comum-imunidade que analisa Derrida. «A destruição das outras raças é uma das faces do projecto, sendo a outra face expor a sua própria raça ao perigo absoluto e universal da morte.» (Foucault, IDS: 310)

Arendt, num passo paradoxal e inesperado, parece apontar no mesmo sentido sem adiantar qualquer chave hermenêutica capaz de explicitar a auto-destruição da

Volksgemeinschaft nazi. Embora equacionando a eutanásia como auto-aniquilamento

dos seres mais frágeis da comunidade, seria necessário explicar essa tentativa de purificação da linhagem. «A Volksgemeinschaft era apenas a preparação propagandística para uma sociedade racial «ariana» que, no fim, teria destruído todos os povos, inclusive os alemães.» (Arendt, 2004: 477)

Já na Histoire de la sexualité, Vol. 1, a questão autoimune surge de forma enigmática. Foucault apresenta a questão da ordem eugénica da sociedade e da exaltação onírica de um sangue superior a partir de uma extensão e intensificação dos micropoderes e afirma que isto implicava um «genocídio sistemático dos outros e o risco de se expor a si própria a um sacrifício total.» (Foucault, HS1: 197) Porém, nesta

obra destaca-se a intenção de abordar a biopolítica relativamente à normalização da sexualidade.

A exposição da população inteira à morte, «exposição universal» é condição de constituição de uma raça superior. Foucault apresenta essa exposição de modo descritivo sem adiantar uma explicação plausível a não ser talvez a questão da guerra. Porém, a guerra é para conquistar fronteiras no exterior e não no interior. Qual a explicação para esta guerra interior?

Mas a categoria de imunização permite-nos dar um passo em frente, ou melhor, lateral, em relação à brecha entre as duas versões prevalecentes do paradigma da biopolítica: a afirmativa, produtiva e a negativa, mortífera, vimos que elas tendem a constituir uma forma reciprocamente alternativa que não prevê pontos de contacto: o poder nega a vida, ou incrementa o seu desenvolvimento: violenta- a e exclui-a, ou a protege e a reproduz; objectiva-a, sem termo médio ou ponto de transição. Ora bem: a vantagem hermenêutica do modelo imunitário reside no facto destas duas modalidades, estes dois efeitos de sentido - positivo e negativo, conservador e destrutivo -, encontraremos finalmente uma articulação interna, uma junção semântica, que os põe em relação causal, embora de índole negativa. (Esposito, 2004: 44)94

O autoimune enquanto imunodeficiência é uma falta e não um excesso de reactividade; o horror autotóxico que se desprende do sistema imune produz uma memória no organismo que se activa nos momentos cruciais. Na célula é evidente essa memória da imunização após uma colonização infecciosa, uma capacidade de reconhecer o agente. Segundo a teoria de Burnet, cada célula produziria o seu anticorpo,

                                                                                                                         

94 A imunologia política necessita de uma configuração corpórea, um topos que vai do corpo natural ao

corpo político, Estado-corpo que assumirá uma conflagração imunitária, corpo capaz de acolher a sua própria excorporação (scorporazione). «Il corpo-macchina, la macchina-corpo, è un corpo che non si può piú disfare, perché già disfatto e ricostruito, como imbalsamato, nella sua corazza corporea.» (Esposito, 2002: 138). É nesse corpo que a vida há de ser ameaçada de morte, nessa representação orgânica travar- se-á o combate pela imunidade: «Ma è appunto questa binarietà costitutiva - tra vita e morte, accrescimento e deperimento - che rende il corpo la zona liminare entro la quale si esercita l'intenzione immunitaria della politica: ritardare fin quanto è possibile il transito dalla vita alla morte, spingere la morte nel punto piú lontano dalla attualità della vita. Il corpo è insieme il terreno e lo strumento di tale battaglia.» (Esposito, 2004: 135)

como se o anticorpo se colasse exactamente ao antigene como um espelho; o ADN funciona como um espelho. Se no organismo o sistema imunitário é antecipatório, como se para cada intruso existisse de antemão um anticorpo, na verdade não existe um anticorpo para um antígene mas um grupo de reconhecimento. Um anticorpo pode reconhecer um grupo de antígenes, é um sistema cooperativo que, no entanto, não consegue completar-se de modo a alcançar um reportório completo. No sistema imunitário o processo decorre da variação para a selecção, embora não se possa declarar, como o faz a hipótese higienista que a ausência de doenças faz com que o organismo se vire contra si próprio. O grau de tolerância resulta de um equilíbrio. No nazismo sonhou-se com a imunização através da imunidade do corpo social, descurando que a doença não vem do parasita mas da resposta do corpo social ao parasita. O judeu- parasita eleito como a patologia laborou sobre um erro biológico: o grau de purificação aumenta a incidência autoimune.

Para Foucault, a figura da resistência e o trabalho de si intentam superar esse momento de negatividade biopolítica, em Negri é a decisão da multidão e em Esposito é a construção do impessoal. Agamben não supera a biopolítica negativa.

A imunidade possui, assim, dois sentidos biopolíticos: 1) Um significado de autoprotecção a partir de uma normalização higiénico-sanitária. A sociedade contemporânea revela uma preocupação pela conservação da vida: evitar o contágio da imigração, os vírus informáticos, os movimentos locais ao abrigo da contaminação da globalização; é a metáfora da comunidade como fortaleza assediada; 2) A imunização do corpo social acarreta o sacrifício do vivente (recondução do bios à zoé). A imunização médica implica uma coincidência entre o veneno e a cura (phármakon). A prática imunológica pode bloquear o crescimento alcançando uma situação limite. É o caso das doenças autoimunes.

A biocracia é um regime ambíguo, de defesa da vida, mas também de eliminação do infame, do degenerado, qualificado obviamente em termos médicos; a transposição em termos políticos da categoria de homo sacer o que Agamben faz de modo radical.

Aquele que é dito sacer traz consigo uma verdadeira mancha que o coloca fora da sociedade dos homens: devemos evitar o seu contacto. Se o matamos, não cometemos homicídio. Um homo sacer é para os homens o que o animal sacer é

para os deuses: nem um nem outro têm nada em comum com o mundo dos homens. (Benveniste, 1969: 189)

A noção de sacer em Benveniste radica na sua intrínseca ligação com o termo

sacrifício. Sacrificare significa simultaneamente matar (mactare) e através dessa morte

fazer entrar o humano no domínio dos deuses. A relação indissociável entre sacer e

sacrificare é mediada pela figura do sacerdote (sacerdos) como intermediário entre os

dois planos. É nessa implicação fundamental que se pode compreender o termo sacer (o que Agamben declina pela insacrificabilidade do homo sacer).95 Por outro lado, a palavra sanctum não diz respeito ao que é consagrado aos deuses (no fundo o sacer) nem o profano que se opõe a sacer. Sanctum é defendido por determinadas sanções. Trata-se do muro. É aquele que toca o sagrado e remetido para fora da comunidade.96

Para Agamben, como deixámos exposto, a implicação da vida nua faz-se sobretudo na esfera jurídico-política, numa simetria entre sacratio e soberania, cujo corolário é a vida sagrada ambivalente.

O carácter sagrado da vida, hoje muitas vezes invocado, enquanto direito humano fundamental, por oposição ao poder soberano, exprime, pelo contrário, na origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono. Aqui, a analogia estrutural entre excepção soberana e sacratio ganha todo o seu sentido. Nos dois limites extremos da ordem jurídica, o soberano e o homo sacer apresentam duas figuras simétricas que têm a mesma estrutura e são correlatas, no sentido em que soberano é aquele para o qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos. (Agamben, 1995: 93-94)

                                                                                                                         

95 “Pourquoi le sacrifice comporte-t-il nécessairement une mise à mort? Sur cette implication

fondamentale le mémoire d'Hubert et Mauss a jeté la plus vive lumière. [Essai sur la nature et les

fonctions du sacrifice, Paris, Minuit, 1968] Il montre que le sacrifice est agencé pour que le profane

communique avec le divin par l'intermédiaire du prêtre et au moyen des rites. Pour rendre la bête «sacrée», il faut la retrancher du monde des vivants, il faut qu'elle franchise ce seuil qui sépare les deux univers.” (Benveniste, 1969: 188)

96 «Ce qui est sanctus, c'est le mur, mais non pas le domaine que le mur enceint, qui est dit sacer; est sanctum ce qui est défendu par certaines sanctions. Mais le fait d'entrer en contact avec le sacré n'entraine

pas l'état sanctus; il n'y a pas de sanction pour celui qui touchant le sacer, devient lui-même sacer; il est banni de la communauté, on ne le châtie pas, ni non plus celui qui le tue. On dirait que le sanctum, c'est ce qui se trouve à la périphérie du sacrum, qui sert à l'isoler de tout contact.» (Idem: 190)

O itinerário etimológico-conceptual de Agamben em Profanazoni, desvela o sentido indissociável entre religião, separação e sacrifício:

Pode definir-se religião como aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum, transferindo-os para uma esfera separada. Não só não existe religião se não houver separação, como qualquer separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que acciona e regulamenta a separação é o sacrifício. (2005: 84)

Se o religioso se define sobretudo pelo relegare (e não reenvia à velha noção do religar (religare), da união dos domínios sagrado e profano), pela separação, a profanação, ao invés é a restituição desses objectos enquadrados na esfera divina ao mundo humano fazendo cessar esse escrúpulo que a religião impunha. Se a secularização é uma deslocação que não destitui de forma permanente o sagrado e o profano, a profanação neutraliza a relação, restituindo o objecto sagrado ao seu uso quotidiano.

Deve distinguir-se, neste sentido entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção que deixa as forças intactas, que se limita a deslocar de um lado para outro. Assim, a secularização política dos conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano), não faz mais do que deslocar a monarquia celeste para a monarquia terrestre, deixando, todavia, intacto o seu poder.

A profanação implica, por seu turno, uma neutralização daquilo que profana. Uma vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é restituído ao uso. Ambas são operações políticas; mas a primeira tem a ver com o exercício do poder que garante, reportando-o a um modelo sagrado; a segunda desactiva os dispositivos do poder e restitui ao uso comum os espaços que aquele tinha conquistado. (Agamben, 2005: 88)

A profanação seria uma desactivação dos mecanismos do poder soberano, terrestre e divino. Talvez mesmo uma forma de devolver o homo sacer ao seu uso anterior, repondo a sua inclusão na comunidade de onde tinha sido expurgado ou excluído.

O capitalismo como religião mantém essa separação dos objectos conduzindo-os a um limiar improfanável. Não já o sacrifício mas o espectáculo como operador dessa incapacidade de restituição. O capitalismo como religião é mera culpa e autodestruição, logo autoimunidade. «Exactamente porque tende, com todas as suas forças, não para a redenção, mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo, como religião, não visa a transformação do mundo, mas a sua destruição.» (Idem: 93) O capitalismo transforma a separação objectal em puro meio, dividindo o objecto de si próprio e destinando-o ao consumo ou à exibição espectacular. É nesse sentido que a religião capitalista visa a criação de um absolutamente Improfanável (un assolutamente

Improfanabile). É na sociedade de consumo que a separação se torna mais notável, que

a impossibilidade de usar atinge o cume como nos casos das cidades-museu como Évora e Veneza. É com o museu que a analogia se torna mais clara, porque consagra essa separação.97 Como resistir a este estado de coisas? Precisamente pela profanação como neutralização dos dispositivos de poder, daí que Agamben declare que a tarefa da política da próxima geração seja a de profanar o Improfanável.

Pode-se ainda afirmar, para além de Agamben, que a oikonomia nas democracias liberais aprofunda a sua esfera improfanável, despolitizando os dispositivos da máquina governamental que assim se tornam separados da política. Essa despolitização liberal é o resultado da captação dos puros meios, vocação gestionária por excelência que transforma o cidadão em homo sacer. A verdade económica devém a verdade ecuménica num domínio totalmente improfanável.

  Noutro texto, Che cos'è un dispositivo? o autor alude a uma profanação dos dispositivos, onde a religião como separação e como sacrifício apela a um contra- dispositivo que restitua ao uso comum o que o sacrifício separou. Todo o dispositivo implica um processo de subjectivação e de governamentalidade e, assim sendo, não

                                                                                                                         

97 “Se oggi i consumatori nelle società di massa sono infelici, non è solo perché conumano oggetti che

hanno incorporato in sé la propria inusabilità, ma anche e soprattutto perché credono di esercitare il loro diritto di proprietà su di essi, perché sono divenuti incapaci di profanarli.” (Idem: 96)

basta uma dessubjectivação inerte (que corresponde a uma eclipse da política). É preciso fazer frente a esse ingovernável que assombra toda a política e a máquina governamental. Mas que estratégia devemos adoptar? Como operar a reapropriação da acção política? Como subtrair o corpo quotidiano do controle dos dispositivos? Como repor o improfanável no seu uso apropriado, ou dito de outro modo, como profanar o improfanável? Agamben nada adianta a este respeito. No entanto, nenhum messianismo do fim da história poderá resgatar esse improfanável do seu devir profano. Não já o sacrifício mas o consumo consagra os objectos, embora no tempo redundante das crises é o próprio sacrifício que incide sobre o consumo, mantendo ileso o domínio do improfanável no exercício da máquina governamental como poder e como subjectividade. O indivíduo é arredado continuamente dessa restituição do uso profano da economia, permanecendo o poder decisório numa esfera separada. A decisão soberana é ainda e sempre improfanável nas políticas da vida.

Em Esposito, pensamos nós, a biopolítica envereda decisivamente pela imunologia política e a figura do médico-sacerdote (Esposito 2004: 120) fundirá o limite entre sanação e assassínio numa coincidentia oppositorum entre o princípio de morte e o incremento da vida. O ponto de implosão da imunidade orgânica (como de qualquer sistema imune) é o autoimune. Ora, transcrita para o léxico político, a categoria de autoimunização é aplicada à biopolítica nazi nestes termos:

[...] a enfermidade autoimune (malattia autoimune) representa a condição extrema na qual o sistema protector se torna tão agressivo que se volta contra o próprio corpo que deveria proteger, provocando a sua explosão. O que prova que esta é a chave interpretativa mais adequada para compreender a especificidade do nazismo é, por outro lado, o especial carácter do mal que este pretendeu defender do povo alemão. Não se trata de uma enfermidade qualquer, mas de uma enfermidade infecciosa. O que se pretendia evitar a todo custo era que seres inferiores contagiassem seres superiores. [...] É conhecido o reportório epidemiológico que os ideólogos do Reich utilizaram para representar os seus supostos inimigos, e em primeiro lugar os judeus: eles são, alternada e simultaneamente, «bacilos», «bactérias», «parasitas», «vírus» e «micróbios».