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2 LINGUAGEM E DIREITO

4.6 Ação, norma e procedimento

O direito positivo cuida das condutas humanas, ou, conforme diz Gregorio Robles, o direito é um texto cuja função é dirigir as ações dos homens182. Essas ações, consoante a classificação em normas de estrutura e normas de conduta, podem ser ações que tratam da criação, modificação ou extinção de normas jurídicas, ou ações que se referem aos comportamentos humanos propriamente ditos, qualificados pelo direito como permitidos, proibidos ou obrigatórios. Gabriel Ivo também percebeu essa dualidade: “Mas o direito não regula apenas a conduta das pessoas nas suas

180 Repetição do indébito tributário, p. 124.

181 Comentários à Constituição de 1967; com a emenda n. 1 de 1969, p. 102.

relações intersubjetivas. Há uma outra conduta também objeto da disciplina do direito. A conduta de produzir normas, a ser promovida pelos órgãos competentes para sua produção, que, por sua vez, são também competentes em face de outras normas”183.

O direito seleciona quais condutas ou ações deseja regular. Trabalha, nesse momento, no eixo paradigmático de organização do discurso jurídico184, em que o legislador possui uma ampla liberdade de escolha dos fatos sociais para imputar à sua ocorrência o surgimento de certas relações jurídicas. As escolhas feitas caracterizam os atos de produção de normas ou os comportamentos humanos nas suas relações intersubjetivas. Apesar de a produção de normas também ser um comportamento humano, é possível distingui-las daquelas condutas ou ações reguladas pelo direito que não se caracterizam por produzir normas. Assim, o gênero condutas humanas (em sentido amplo) se subdivide nas classes comportamentos humanos (condutas humanas em sentido estrito) e atos de produção de normas. Os comportamentos são os eventos sociais eleitos pelo legislador para fazer parte do antecedente das normas de conduta, regulando-os como permitido, obrigatório ou proibido. Por exemplo: a ação de matar, a ação de realizar operações com produtos industrializados, a ação de comprar, etc.

Tal elucidação é importante para esclarecer o uso do termo procedimento neste trabalho. Porém, é fácil perceber a confusão, pois usa-se a mesma palavra para designar situações diversas. É procedimento o conteúdo da norma de estrutura; é procedimento a ação de produzir normas; como também é procedimento o comportamento humano. Quando o emissor deseja produzir uma mensagem jurídica (procedimento), sua ação deve necessariamente observar as regras descritas por uma norma superior (procedimento). O destinatário da norma, para realizar um comportamento humano (procedimento) nela descrito, deve seguir as notas prescritas (procedimento). Para se concretizar a conduta de homicídio, o sujeito, no

183 Norma jurídica: produção e controle, p. XXVI. 184 Clarice ARAUJO, Semiótica do direito, p. 29.

universo ontológico, tem de matar alguém, e este só será um comportamento humano relevante para o direito, se o procedimento for realizado consoante aquele descrito no art. 121 do Código Penal. Caso contrário, não se trata de homicídio.

Como é possível notar, procedimento, norma e ação são aspectos de um mesmo fenômeno. Mais uma vez recorre-se a Gregorio Robles, para quem “onde há ação, há procedimento, e também há norma. São três conceitos que se co-implicam, que vão acompanhados sempre. Não é possível pensar em um sem o relacionar de imediato com os outros dois”185. Em razão dessa proximidade dos termos, muitas vezes se utiliza a mesma expressão para designá-los. No direito, pode-se observar esse problema com a palavra contrato, por exemplo, que pode significar: (i) a norma geral e abstrata que traz os requisitos para se elaborar o contrato; (ii) o fato de se elaborar um contrato; (iii) a norma individual e concreta produzida; (iv) o instrumento contrato. Por isso, com a finalidade de se evitarem essas ambigüidades, parte-se para elucidar ação e procedimento, já que ficou consignado ser norma jurídica, em sentido estrito, ou regra jurídica, aquele enunciado de estrutura dúplice, composto por um antecedente e um conseqüente186.

Para esclarecer o uso da palavra ação, é preciso rememorar o binômio evento/fato jurídico. Evento é aquele acontecimento do plano social despido de linguagem jurídica e, portanto, situado fora do ordenamento. Fato jurídico é o acontecimento relatado em linguagem competente, apto a produzir efeitos jurídicos187. Para existir fato jurídico, é preciso uma norma jurídica concreta que o constitua; antes, trata-se de mero evento. Percebe-se que há três momentos que podem ser definidos por ação: (i) a descrição conotativa no antecedente da norma geral e abstrata; (ii) o seu acontecimento no mundo fenomênico (evento); e (iii) o fato jurídico. Regressando ao exemplo do homicídio: qual a ação de matar alguém? A descrita na norma geral e abstrata, a sua ocorrência (evento), ou o fato jurídico?

185 Teoría del derecho: fundamentos de teoria comunicacional del derecho, p. 265. (tradução livre). No original:

“donde hay acción, hay procedimiento, y también hay norma. Son tres conceptos que se coimplican, que van acompañados siempre. No es posible pensar uno sin relacionarlo de inmediato con los otros dos.”

186 Confira Capítulo 3, item 3.2. 187 Veja tópico 4.2 acima.

Utilizar-se-á ação como sinônimo de evento, já que consagrada a expressão fato jurídico. Mas, para designar os caracteres que um evento precisa ter para ingressar no conjunto dos fatos jurídicos descritos no antecedente de uma norma geral e abstrata, prefere-se o termo procedimento. Qual o procedimento para realizar a ação de homicídio? Basta olhar o art. 121 do Código Penal.

Como se falou mais de uma vez, o direito regula dois tipos de condutas: os comportamentos humanos (ação) e os atos de produzir normas. A falta de clareza no uso de norma, procedimento e ação também aparece quando se trata da atividade produtora de enunciados prescritivos. Nessa fenomenologia existe norma geral e abstrata, evento e fato jurídico, tudo dentro do processo de positivação daquelas normas que regulam as formas de criação, modificação ou extinção do direito.

Acima já se restringiu o uso de ação para significar aquele acontecimento ainda não relatado em linguagem jurídica. Dentro do processo de positivação das normas de estrutura, a atividade produtora (ação) dos enunciados normativos, também chamada de enunciação, é a fonte do direito. Esse é o entendimento de Tárek Moussallem, que define como fonte do direito “a atividade exercida por órgão credenciado pelo sistema do direito positivo, que tem por efeito a produção de normas”188. Desse modo, ao se subdividirem as condutas humanas, encontrou-se a subclasse dos atos humanos produtores de normas, o que nada mais é do que a fonte do direito.

Para efetuar a produção de normas, o emissor tem de seguir o procedimento traçado pelo direito tanto para produzir normas gerais e abstratas quanto para inserir normas individuais e concretas. Assim, todo ato de produção de novas normas no sistema jurídico pressupõe a observação a um procedimento prescrito pelo próprio direito. São os limites formais previstos no conseqüente das normas de competência legislativa, ou normas procedimentais. O emissor da mensagem jurídica não pode produzi-la como bem entender, ao contrário, deve seguir uma série de diretrizes impostas pelo direito. Diante da pergunta: qual o procedimento para se produzir o

ato-norma de lançamento tributário?, deve-se procurar no próprio direito a sua resposta: o art. 142 do CTN.

Ao produzir normas gerais e abstratas, o emissor (legislador) observará a norma jurídica de competência legislativa. No conseqüente de sua estrutura bimembre estão os critérios delimitadores da autorização de produção de novas normas. Aí está descrito o procedimento eleito pelo direito para se inserir uma nova norma no sistema. Caso o legislador infraconstitucional deseje instituir uma lei ordinária que verse sobre o imposto de renda, deverá necessariamente caminhar conforme a norma de competência prescrita na Constituição Federal: (i) quem pode apresentar o projeto de lei (art. 61); (ii) onde se inicia a votação do projeto: Câmara ou Senado (art. 64); (iii) a forma de aprovação do projeto (art. 69); (iv) a revisão, por uma Casa, do projeto de lei aprovado por outra (art. 65); (v) a sanção ou veto do Presidente da República (art. 66).

Todo esse percurso, traçado pelo próprio direito, há de ser percorrido pelo legislador que quiser inserir um veículo introdutor de normas no sistema jurídico do tipo lei ordinária. Esse foi o procedimento escolhido pelo constituinte. Caso o emissor da mensagem jurídica venha a se desvencilhar desse trajeto, essa norma poderá ser considerada inválida. Diz-se poderá, porque, mesmo não produzida pelo órgão competente e sem seguir o procedimento, uma norma pode pertencer ao sistema até ser dele retirada por outra norma.

Ao dar seguimento ao processo de positivação de normas, o ato de aplicação, que gera a norma individual e concreta, também pressupõe um procedimento. É nesse sentido a afirmação de Tércio Ferraz Jr.: “aplica-se o direito, por um procedimento, à realidade social”189.

Para que exerça a competência administrativa, a Administração deve seguir à risca os dizeres legais para colocar no sistema a norma individual e concreta do lançamento tributário. É o direito que determina quem pode/deve efetuar o lançamento; em que momento; de que forma e qual o seu conteúdo. O mesmo alerta

serve para os particulares ao criarem um contrato, por exemplo. Sem produzir o contrato em conformidade com o Código Civil, esse instrumento não terá valor para o direito. O juiz, ao emitir normas individuais e concretas por meio do veículo introdutor sentença, não pode realizar essa ação de produção de normas como bem entende, sob pena de tornar-las inválidas, já que há um rito específico a obedecer.

Eurico de Santi define procedimento como “o fato jurídico que se configura pelo agir do agente público competente”190. Também é a afirmação de Gabriel Ivo, para quem “procedimento, ou seja, a série de atos necessários para a postura de uma norma jurídica, também significa fato jurídico”191. Acontece que esse procedimento (como fato jurídico) tem de estar previsto, conotativamente, em uma norma de estrutura, que determina como deve agir o emissor. Só será fato jurídico com a edição do veículo introdutor, linguagem competente para constituí-lo.

Em posição diversa da dos autores, entende-se procedimento, em sentido estrito, como as notas, os caracteres, os critérios presentes numa norma de estrutura ou de competência, que traça qual o percurso que o emissor da norma deve obedecer para inseri-la no sistema jurídico. É o aspecto formal da produção normativa.

Como deve proceder o cientista do direito para verificar se uma norma foi produzida de acordo com o procedimento exigido pelo direito? Percebe-se que é no veículo introdutor que se encontrarão os indícios do procedimento aplicado para a elaboração do diploma normativo. É na enunciação-enunciada do documento normativo que ficam as marcas indicadoras de como a norma foi posta no ordenamento jurídico. Por aí é que o intérprete deve iniciar o processo de investigação para se aferir a validade formal de uma norma.

O percurso de positivação do direito, mesclando ações, normas e procedimentos, pode ser projetado da seguinte forma: (i) previsão na Constituição para se produzir uma norma geral e abstrata de conduta (norma de competência legislativa que descreve um procedimento); (ii) ação de produção da norma geral e

190 Lançamento tributário, p. 160.

abstrata (fonte do direito); (iii) a norma geral e abstrata; (iv) ação de se realizar o fato descrito no antecedente da norma geral e abstrata (evento ou fato social); (v) ação de realizar a incidência do fato sobre norma (fonte do direito), conforme (vi) regras de estrutura que versem sobre a produção de uma norma individual e concreta (norma de competência administrativa, judicial ou particular, contendo um procedimento); (vii) a norma individual e concreta. Somente após todo esse percurso é que uma norma jurídica atinge seu nível máximo de concretude e individualidade, visando irritar o subsistema social.

Retornando para a dualidade processo/produto, o procedimento está para o processo e o seu resultado; o veículo introdutor está para o produto. Paulo de Barros Carvalho, tratando do lançamento tributário, apresenta a sua distinção para norma, ato e procedimento: “Norma, no singular, para reduzir as complexidades de referência aos vários dispositivos que regulam o desdobramento procedimental para a produção do ato (i); procedimento, como a sucessão de atos praticados pela autoridade competente, na forma da lei (ii); e ato, como o resultado da atividade desenvolvida no curso do procedimento (iii)”192.

Nesse percurso produtor de normas, preferem-se as expressões: (i) norma de competência; (ii) fonte do direito ou ação de produção de normas; e (iii) veículo introdutor de normas àquelas. Assim, reservar-se-á o termo procedimento para significar os critérios previstos nas normas de estrutura que devem ser seguidos quando se tratar da produção de novas normas jurídicas no sistema.