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2 LINGUAGEM E DIREITO

5.3 A relação jurídica obrigacional

Uma classificação das relações jurídicas interessante ao presente estudo é sobre o seu objeto, cujo critério seletivo é o caráter patrimonial da prestação. Assim, segregam-se as relações jurídicas conforme a prestação ser ou não suscetível de avaliação econômica. Na hipótese de ser possível essa avaliação, as relações serão obrigacionais212; no caso de impossibilidade, serão vínculos não-obrigacionais. Dessa

212 Deve-se alertar que a palavra obrigação, como tantos outros termos no direito, também é multissignificativa,

conforme afirma Maria Helena DINIZ: “O termo obrigação contém vários significados, o que dificulta sua exata delimitação na seara jurídica. (...) Juridicamente, emprega-se esse vocábulo em acepções diferentes; afirma-se, p. ex., que o inquilino tem a obrigação de pagar o aluguel; que o mandatário é obrigado a aceitar a revogação do mandato ordenada pelo mandante; que os cidadãos são obrigados a pagar imposto de renda, conforme sua capacidade contributiva; que o réu tem obrigação de contestar o pedido formulado pelo autor ou os fatos em que a pretensão se funda; que os rapazes, em certa idade, são obrigados a cumprir serviço militar.” Curso de direito civil brasileiro, p. 29. Orlando GOMES também encontra diversas acepções para o termo obrigações, sendo comumente usada para designar toda a relação obrigacional, Obrigações, p. 11.

feita, quando se fala em obrigação, significa dizer que se está diante de uma relação jurídica cujo objeto prestacional é de natureza patrimonial. Maria Helena Diniz afirma que a prestação da obrigação precisará ser patrimonial, “pois é imprescindível que seja suscetível de estimação econômica, sob pena de não constituir uma obrigação jurídica”213. Também tal entendimento pode ser observado em Orlando Gomes: “a relação obrigacional é um vínculo jurídico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de interesse da outra, que pode exigi-la, se não for cumprida espontaneamente, mediante agressão ao patrimônio do devedor”214.

Como é possível notar, a relação jurídica tributária em sentido estrito é uma obrigação, porquanto consiste na conduta de o contribuinte entregar uma quantia em dinheiro ao Fisco. O art. 3º do CTN estipula o tributo como uma prestação pecuniária, garantindo o caráter nitidamente patrimonial ao vínculo tributário. Entretanto, há outras relações na seara tributária que não tratam diretamente do tributo. Seu objeto é uma prestação que consiste numa obrigação de fazer ou não- fazer.

Esses dois tipos de relações jurídicas tributárias são denominados pelo CTN, no art. 113, de obrigação principal e obrigação acessória. As primeiras seriam aquelas relações que têm por objeto o pagamento do tributo. Já as obrigações acessórias possuem como objeto as prestações, positivas ou negativas, previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. A principal distinção entre ambas consiste no fato de que o objeto da obrigação principal é de cunho patrimonial, enquanto as acessórias não têm essa característica. Por esse motivo, Paulo de Barros Carvalho achou melhor denominá-las deveres instrumentais ou formais, e assim explica o porquê: “Deveres, com o intuito de mostrar, de pronto, que não têm essência obrigacional, isto é, seu objeto carece de patrimonialidade. E instrumentais ou formais porque, tomados em conjunto, é o instrumento de que dispõe o Estado-

213 Curso de direito civil brasileiro, p. 39. 214 Obrigações, p. 10.

Administração para o acompanhamento e consecução dos seus desígnios tributários”215.

Com isso, reserva-se a expressão obrigação tributária para assinalar a relação jurídica tributária que consiste no pagamento do tributo. Para as demais relações, como o preenchimento de documentos, a formalização do crédito, usam-se deveres instrumentais ou formais.

Deve-se ressaltar a posição de José Souto Maior Borges, para quem é possível a existência de obrigações patrimoniais e não-patrimonias, porquanto há a expressa previsão no CTN de obrigações não-patrimoniais: as obrigações acessórias216. De acordo com os ensinamentos do autor, somente pelo fato de a obrigação acessória não ser patrimonial, atribuir-lhe outra denominação é uma mera troca de rótulos que não atinge a linguagem-objeto217. Desse modo, existiria uma simples impropriedade técnica, sem retirar a validade do § 2º, do art. 113 do CTN218. Demonstra a sua crítica do seguinte modo:

A asserção de que toda obrigação é patrimonial consiste na metalinguagem doutrinária por meio da qual se pretende descrever, entre outros, o art. 113, § 2º, do CTN (linguagem objeto). E como esse dispositivo contempla hipótese de obrigação não patrimonial, segue- se que essa proposta não corresponde à realidade normativa que pretende descrever. Noutros termos: não há confirmação, na linguagem do objeto, da metalinguagem que pretende descrevê-lo219. Em suma, o autor não distingue as obrigações pelo seu objeto ser patrimonial ou não, uma vez que o sistema do direito positivo prevê a existência de obrigações não-patrimoniais. Entretanto, apesar da ressalva, manter-se-á a distinção entre deveres instrumentais e obrigações tributárias.

215 Curso de direito tributário, p. 294.

216 Obrigação tributária: uma introdução metodológica, p. 81. 217 Ibid. p. 76.

218 Ibid. p. 63. 219 Ibid. p. 101.

5.4 Relação jurídica efectual e relação jurídica intranormativa

A relação jurídica foi descrita como o vínculo entre dois sujeitos distintos em torno da prestação de um objeto (S’ R S’’). Na estrutura lógica das normas, compostas por um antecedente e um conseqüente ligados pelo conectivo “dever-ser”, as relações jurídicas estão presentes no suposto da norma, prescrevendo a conduta que o direito deseja que seja realizada com o acontecimento do fato jurídico descrito no prescritor.

Na norma geral e abstrata há as notas, as características, os critérios que possibilitam a construção da relação jurídica formal. Nesses termos, ainda não se tem o vínculo jurídico concreto, caracterizado pela eficácia jurídica do evento descrito na norma. Para Lourival Vilanova, para que existir a relação jurídica, não é suficiente a sua previsão em uma norma jurídica, é também necessário o fato jurídico, resultado da incidência da hipótese da norma jurídica220. É como conclui o saudoso professor pernambucano: “sendo a relação jurídica eficácia de pressupostos fácticos, vindo depois da realização do fato (pela causalidade jurídica), a relação jurídica é concreta, individuada. É a realização, a concreção da conseqüência jurídica, como o fato jurídico é a realização da hipótese fáctica. Nesse sentido, descabe falarmos em relações jurídicas abstratas”221.

Em virtude dessa complexidade presente na identificação da relação jurídica, Eurico de Santi elucida a distinção separando a relação jurídica em efectual intranormativa: as efectuais não possuem revestimento lingüístico, enquanto as intranormativas apresentam suporte físico lingüístico decorrente das normas individuais e concretas222. As relações jurídicas efectuais decorrem do fato social e, embora não revestidas de linguagem jurídica competente, já possuem os elementos da relação determinados. Porém, é com a constituição do fato jurídico que se propagam os efeitos prescritos no conseqüente da norma, aptos a regular de forma efetiva os comportamentos humanos, com a instituição da relação jurídica

220 Causalidade e relação no direito, p. 235. 221 Ibid. p. 187. (grifo do original). 222 Lançamento tributário, p. 78.

intranormativa, com conteúdo bastante preciso: direitos e deveres individualizados. Para que exsurja a relação jurídica intranormativa, é necessário que a relação jurídica efectual esteja relatada em linguagem jurídica competente.

Paulo de Barros Carvalho considera a relação jurídica como um enunciado fáctico223. Desse modo, quando se afirma que ocorrido o fato nasce a relação jurídica, têm-se aí dois fatos: o fato-causa (fato jurídico) e o fato-efeito (relação jurídica). Assim, fato jurídico pode ser: (i) o fato jurídico stricto sensu, enunciado protocolar e denotativo, declarando um evento que ocorreu no passado e que assume a forma sintática dos predicados monádicos: S é P; e (ii) o fato jurídico relacional, igualmente na forma de enunciado protocolar e denotativo, só que voltado para o futuro, prescrevendo que, a partir de determinado momento, uma conduta será permita, proibida ou obrigatória por um sujeito perante outro, revestindo a forma dos predicados poliádicos: Sa R Sp224. Ambos estão previstos conotacionalmente na norma geral e abstrata, com a diferença que os critérios determinantes que no fato jurídico em sentido estrito estão localizados no antecedente, e os do fato relacional, no conseqüente da norma.

Essa ressalva é sobremodo importante para o andamento do presente trabalho, porquanto, uma relação jurídica, por ser um enunciado, somente será modificada ou extinta por existência de outro enunciado. No direito, tal enunciado será necessariamente de igual ou superior hierarquia. É o que afirma Paulo de Barros Carvalho: “Um enunciado jurídico-prescritivo somente poderá ser alterado ou extinto por força de outro enunciado jurídico-prescritivo de mesma ou de superior hierarquia”225. Assim, uma norma somente poderá ser retirada do sistema por outra norma igual ou superior hierarquicamente.

223 Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 137-8. 224 Ibid. p. 141.

5.5 A obrigação tributária

Feita essa singela abordagem acerca das relações jurídicas, pode-se seguir adiante identificando os elementos da obrigação tributária. A obrigação consiste no vínculo jurídico de conteúdo patrimonial entre dois sujeitos distintos, titulares, respectivamente, de direitos subjetivos e deveres jurídicos correlatos. Desse modo, a obrigação tributária, por também pertencer à classe das relações jurídicas, é composta pelos elementos comuns a todas as relações jurídicas: o subjetivo e o prestacional.

O elemento subjetivo é formado pelo núcleo ativo e passivo. Na obrigação tributária os sujeitos de direito postos em relação são o ativo, que possui o direito subjetivo de exigir um valor a título de tributo, e o passivo, com o dever de cumprir a conduta que corresponda à exigência do sujeito ativo.

O segundo componente da obrigação tributária consiste no comportamento de entregar certa quantia aos cofres públicos. Esse valor é determinado pelo cotejo da alíquota com a base de cálculo, determinando o montante pecuniário a ser pago pelo sujeito passivo para cumprimento da prestação. O objeto do comportamento consiste no total a ser recolhido.

A obrigação tributária efectual está descrita no conseqüente da regra-matriz de incidência tributária, em que se acharão os sujeitos ativo e passivo possíveis, bem como a base de cálculo e a alíquota que, conjugadas, permitirão individualizar o quantum debeatur. Já na obrigação tributária intranormativa, esses elementos estão efetivados em linguagem jurídica competente, identificando os sujeitos da relação e dando liquidez e exigibilidade ao objeto prestacional: o tributo.

Deve-se alertar que a relação jurídica tributária sempre envolve o tributo. Mais uma vez o legislador foi infeliz ao determinar que a obrigação tributária tem por objeto o pagamento de penalidade pecuniária (art. 113, § 1º do CTN). O art. 3º do CTN exclui do conceito de tributo a prestação decorrente de sanção de ato ilícito. Essa confusão entre os artigos mencionados foi percebida por Ricardo Lobo Torres,

que assinala a seguinte solução: “Sucede que a penalidade pecuniária é cobrada junto com o crédito tributário. Daí porque o CTN, impropriamente, assimilou-a ao próprio tributo. Mas é irretorquível que tem ela uma relação de acessoriedade com referência ao tributo e nesse sentido deve ser interpretado o art. 113, § 1º”226.

Acontece que essa parte final do § 1º, do art. 113, não pode ser confundida com a relação jurídica tributária, sob pena de se desvirtuar o conceito de tributo. Na verdade são dois vínculos distintos, a obrigação tributária e a relação jurídica sancionadora, que não podem ser tratados com se fossem a mesma coisa. A obrigação tributária não tem por objeto o pagamento de penalidade tributária.

6 A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO