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2 LINGUAGEM E DIREITO

7.1 Sobre a extinção da relação jurídica

7.1.1 A resolução do conflito de normas

Para que se dê a extinção, deve haver uma relação entre as relações jurídicas. É o que Paulo de Barros Carvalho chama de “cálculo das relações”, cujo “objetivo principal é o estabelecimento de leis formais que regem as operações por meio das quais se constroem relações a partir de outras relações dadas”281.

Diante de duas normas que prescrevem conteúdos diversos, o próprio sistema jurídico deve determinar o procedimento a ser observado para ocorrer o cálculo entre as relações. Lourival Vilanova ensina que “o sistema do direito positivo contém p-normativas de valências contraditórias e a invalidade só elimina a proposição contradizente quando o próprio sistema diz como e quando”282.

O direito positivo, dentro de sua auto-referencialidade, dita o caminho a ser seguido quando há um conflito de normas, que somente é resolvido pela produção de outras normas. “O sistema do direito positivo está equipado com normas (sempre em sentido amplo) que se voltam à solução dos conflitos entre normas”283. É o direito atuando no seu aspecto dinâmico.

A antinomia aparece dentro do sistema do direito positivo quando se está diante de duas normas válidas excluindo-se mutuamente. Tercio Sampaio Ferraz Jr.

280 Para a Lógica, são proposições contraditórias aquelas que não podem ser simultaneamente verdadeiras. Se

uma for verdadeira a outra deverá ser falsa necessariamente. ECHAVE, URQUIJO, GUIBOURG, Lógica, proposición y norma, p. 115. No âmbito da Lógica Deôntica duas normas contraditórias não podem ser simultaneamente válidas: “se uma é válida, a outra em conflito é necessariamente contra-válida”. Lourival VILANOVA, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 28.

281 Direito tributário, linguagem e método, p. 107.

282 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 80. 283 Tárek MOUSSALLEM, Revogação em matéria tributária, p. 192.

afirma que a antinomia jurídica é a pragmática, e decorre do preenchimento das condições:

(1) forte relação complementar entre o emissor de uma mensagem e seu receptor, isto é, relação fundada na diferença (superior-inferior, autoridade-sujeito, senhor-escravo, chefe-subordinado etc.); (2) nos quadros dessa relação é dada uma instrução que deve ser obedecida, mas que também deve ser desobedecida para ser obedecida (isto é, pressupõe-se uma contradição no sentido lógico-matemático e semântico); (3) o receptor, que ocupa posição inferior, fica numa posição insustentável, isto é, não pode agir sem ferir a complementaridade nem tem meios para sair da situação284.

A antinomia surge sempre que houver incompatibilidade de normas demonstráveis por meio de operadores deônticos opostos que modalizam uma mesma conduta. Os modais deônticos, permitido, proibido e obrigatório, são interdefiníveis285 conforme a seguinte tabela:

P p ≡ –O –p ≡ –V p

–P p ≡ O –p ≡ V p

P –p ≡ –O p ≡ –V –p

–P –p ≡ O p ≡ V –p

Sendo os significados: P é permitido; O é obrigatório; V é proibido; – é negação; ≡ é o conectivo equivalente e p significa a conduta. Assim, a sentença é proibido matar equivale dizer é obrigatório não matar ou ainda não é permitido matar.

A antinomia surge quando há duas normas determinando a mesma conduta, mas modalizadas de forma oposta. Seriam conflitantes as normas é proibido matar e é permitido matar. Havendo normas incompatíveis, qual deve prevalecer? A resposta é encontrada no próprio direito, nas regras de estrutura cuja finalidade é determinar qual das normas deve permanecer no sistema.

284 Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 209. 285 ECHAVE, URQUIJO, GUIBOURG, Lógica, proposición y norma, p. 123.

O ato de revogar consiste na retirada de uma norma do sistema286, o que pode se dar de forma expressa ou tácita. O critério usado para distinguir as duas espécies é a presença ou não do conflito de normas. Haverá revogação expressa quando a lei revogadora atinge diretamente os enunciados prescritivos mencionando-os expressamente; e será tácita em razão da existência de normas incompatíveis no sistema. Nas palavras de Gabriel Ivo, “o que caracteriza, portanto, a revogação tácita é que em seu contexto não há a identificação expressa do enunciado prescritivo que fica revogado”287.

Interessa particularmente ao presente estudo a revogação tácita. Tal motivo decorre do fato de que para a extinção de uma relação jurídica estar-se-á diante de duas normas contraditórias com conteúdos divergentes288: enquanto N1 estabelece é obrigatório pagar; N2 prescreve é obrigatório não pagar. A revogação tácita acontece no plano das normas jurídicas em sentido estrito289. Por isso, é importante a interpretação dos enunciados prescritivos nesse tipo de revogação.

A solução das antinomias jurídicas é feita pelas regras presentes no sistema jurídico, mais precisamente no art. 2º do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil). Do enunciado-enunciado desse artigo constroem-se as seguintes regras: (i) a norma superior revoga a inferior, em virtude da hierarquia; (ii) a norma

286 Tercio Sampaio FERRAZ JR, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 204. Para Paulo de

Barros CARVALHO, a norma revogada permanece válida no sistema até se cumprir o tempo de sua possível aplicação, afirmando que a regra ab-rogatória corta “a vigência da norma por ela alcançada, de tal arte que não terá mais força para juridicizar os fatos que vierem a ocorrer depois da ab-rogação”, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 57. Tárek MOUSSALLEM, aplicando a teoria dos atos de fala, demonstra que a revogação atinge a validade, a vigência e a aplicação de determinada norma, sempre na dependência de qual sistema normativo se toma como referência. Revogação em matéria tributária, p. 186 et seq.

287 Norma jurídica: produção e controle, p. 105.

288 O STJ já se manifestou entendendo que a revogação tácita decorre da incompatibilidade de normas:

“ESTUPRO. VÍTIMA MENOR DE CATORZE ANOS. CONTRADIÇÃO ENTRE A LEI 8072/90 (CRIMES HEDIONDOS) E A LEI 8069/90 (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE). REVOGAÇÃO TÁCITA, POR INCOMPATIBILIDADE, DO PARÁGRAFO ÚNICO DOS ARTS. 213 E 214 DO CODIGO PENAL (ACRESCENTADOS PELA LEI 8069/90) COM O NOVO SISTEMA DE PUNIÇÃO INSTITUÍDO PELA LEI 8072/90. Não é possível admitir-se tenha o legislador pretendido estabelecer benefícios em favor de atentados sexuais contra crianças de tenra idade, em leis de objetivos manifestamente opostos a esse. Aumento de pena previsto no art. 9. da Lei 8072 aplica-se apenas às hipóteses de lesão grave ou morte, ante a expressa remissão da lei ao art. 223, "caput", e parágrafo do Código Penal, expressos quanto a exigência de "lesão corporal grave" ou "morte". Pena a ser executada em regime fechado. Legalidade. Recurso especial conhecido parcialmente e, nessa parte, provido”. (REsp 21.258/PR, Rel. Min. Jesus Costa Lima, julgado em 17.06.1992, DJ 05.10.1992, p. 17114).

posterior, no tempo, revoga a anterior; (iii) a norma especial revoga a geral no que esta tem de especial.

São esses os critérios eleitos pelo direito positivo que servem como fundamento para se determinar qual das normas incompatíveis deve permanecer no sistema. Trata-se, neste estudo, particularmente, de duas relações jurídicas inseridas no sistema por meio de normas individuais e concretas. O conflito ocorre no nível da individualidade e concretude das normas jurídicas dentro do processo de positivação do direito. Está-se diante de uma antinomia em face do acréscimo de uma disposição normativa nova no sistema, ou seja, uma norma individual e concreta posterior incompatível com a anterior.

Nessa situação, a resolução do conflito se faz pela utilização da regra: a norma posterior revoga a anterior. Essa também é a forma de pensar de Tácio Lacerda Gama: “É o confronto (antinomia real) entre duas normas, uma anterior estabelecendo a obrigação de pagar o tributo (N1) e outra posterior estabelecendo a permissão de não pagar (N2), que promove a extinção das obrigações tributárias. Neste caso, há duas normas que prescrevem condutas opostas para a mesma situação, devendo, portanto, prevalecer a posterior – lex posterior derrogat lex anterior”290.

Diante de duas normas individuais e concretas que prescrevem condutas antagônicas, deve prevalecer no sistema aquela que nele ingressou por último. É uma das regras postas pelo direito para a revogação tácita como forma de resolução de conflitos de normas.

Deve-se fazer um alerta. A revogação de uma norma incompatível com outra necessita sempre de uma terceira norma291. Somente com mais um eixo de positivação o sistema poderá excluir uma norma, em razão de um conflito com outra norma. Eis mais um ato de aplicação do direito que resultará na revogação de uma norma de acordo com os critérios eleitos pelo ordenamento jurídico. Pode-se extrair

290 Obrigação e crédito tributário: anotações à margem da teoria de Paulo de Barros Carvalho, Revista tributária e de

finanças públicas, n. 50, p. 108.

esse entendimento das lições de Tárek Moussallem, para quem “a revogação (como efeito do ato de revogação) não decorre automática e infalivelmente do conflito de normas. É necessária a norma concreta que eleve o mero conflito de normas a categoria de fato jurídico a ensejar a revogação de uma das duas normas conflitantes de acordo com o prescrito no sistema normativo”292.

Ao se deparar com a existência de duas normas incompatíveis, o aplicador do direito dará ensejo a produção de uma terceira norma individual e concreta para fins de resolver o conflito. Isso porque o cálculo entre relações jurídicas não é automático; requer-se a presença humana para solucionar a disputa. Nessa terceira norma estarão presentes: o fato jurídico em seu antecedente, descrevendo o conflito de normas; e no conseqüente, a relação jurídica que determina a norma a permanecer no sistema. Sem a linguagem competente, portanto, não há revogação tácita de normas individuais e concretas.