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2 LINGUAGEM E DIREITO

3.3 O código no processo comunicacional do direito

Outro elemento do processo comunicacional é o código, que, conforme Décio Pignatari, “é um sistema de símbolos que, por convenção preestabelecida, se destina a representar e transmitir uma mensagem entre a fonte e o ponto de destino”106. Para que exista uma troca de informação entre o emissor e o destinatário, é necessário que ambos conheçam o mesmo código aplicado na comunicação. É a partir do código que o receptor compreende a mensagem107.

Importante distinguir o código do repertório. O repertório se refere a um acúmulo de experiências108, é a memória em que os indivíduos registram as informações que absorvem. Trata do nível cultural, da instrução do emissor e do receptor. Assim, o código é um elemento objetivo (uma convenção preestabelecida), e o repertório é subjetivo, intrínseco a cada sujeito. O repertório está relacionado a um código padrão e hegemônico109. Portanto, a construção de um repertório depende do código dos comunicadores; é a partir do código que se constrói o repertório. Por isso, quanto mais se manipula um código maior será o repertório110. Um exemplo: a mensagem você sofre de arteriosclerose transmitida por um médico para seu paciente é

106 Informação linguagem comunicação, p. 23.

107 Roman JAKOBSON, Lingüística e comunicação, p. 23.

108 Clarice ARAUJO, Semiótica do direito, p. 48. Segundo José TEIXEIRA COELHO NETTO “Entende-se por

repertório uma espécie de vocabulário, de estoque de signos conhecidos e utilizados por um indivíduo”. Semiótica, informação e comunicação: diagrama da teoria do signo, p. 123.

109 Décio PIGNATARI, Contracomunicação, p. 54. 110 Ibid. p. 53.

feita por meio de um código comum a ambos, a língua portuguesa, porém o repertório do paciente não permite a compreensão do mal que o aflige. Num momento posterior, após o médico explicar que arteriosclerose decorre do endurecimento e espessamento da parede das artérias, provocando alterações na pressão sanguínea, o repertório do paciente já será outro, acrescido de nova informação decorrente de um acúmulo de experiência. Logo, pode-se dizer que o repertório é o conhecimento armazenado de cada indivíduo111.

Segundo Francis Vanoye, não é suficiente que o código seja comum para se realizar uma comunicação perfeita112. Além dessa identidade, deve existir certa semelhança entre os repertórios do emissor e do receptor permitindo uma troca de informações. A ausência de um repertório comum ou a existência de um repertório idêntico entre os comunicadores também inviabiliza o processo comunicacional.

J. Teixeira Coelho Netto ensina que “uma mensagem é elaborada pela fonte com elementos extraídos de um determinado repertório e será decodificada por um receptor que, nesse processo, utilizará elementos extraídos de outro repertório”113. Para que haja uma transferência de informação, os repertórios do emissor e do destinatário não podem ser idênticos nem completamente distintos um do outro, ou seja, os repertórios têm de possuir algum setor em comum. Tal situação pode ser demonstrada, como faz o autor, por dois círculos, cada um representando um repertório. Para que a mensagem seja significativa, os círculos devem ser secantes, com algum ponto em comum.

No processo comunicacional do direito, a função de código é exercida pelo direito positivo:114 as normas jurídicas válidas numa determinada época e num certo país. Nesse sentido afirma Gregorio Robles que o direito somente terá

111 Roti Nielba TURIN define repertório como “os dados acumulados do nosso saber. O repertório é o nosso banco

de dados, o conjunto dos nossos saberes, o conjunto das realizações que nós detemos, ou seja: o conjunto das linguagens que temos a capacidade de operacionalizar. São todas as informações acumuladas durante gerações que constituem nosso patrimônio de conhecimento e nossa identidade”. Aulas: introdução ao estudo das linguagens, p. 25.

112 Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita, p. 04. 113 Semiótica, informação e comunicação: diagrama da teoria do signo, p. 124. 114 Nesse sentido, Clarice ARAUJO, Semiótica do direito, p. 49.

implementação social quando seus destinatários puderem entender seus conteúdos verbalizados115. E tal compreensão depende diretamente do repertório, pois sem um repertório comum não haverá um processo comunicacional.

Sendo assim, o sistema jurídico presumiu que todos os emissores e receptores de normas jurídicas possuem o mesmo código e repertório. Essa presunção está expressa no art. 3º da Lei de Introdução do Código Civil, que proíbe a alegação de não se cumprir a lei por não conhecê-la. Essa identidade serve como fechamento operativo do sistema, buscando assegurar sua finalidade pragmática: “manutenção de uma estabilidade ou paz social, institucionalizando os procedimentos de discussão e decisão de conflitos”116.

O direito não permite ao destinatário de uma mensagem jurídica alegar que não cumpriu um determinado comando legal por desconhecer o conteúdo de uma lei (código) ou por não a compreender (repertório). Com isso, só resta ao destinatário cumprir ou descumprir a norma jurídica, não há a possibilidade de uma terceira opção. Conforme Tercio Sampaio Ferraz Jr., as reações do ouvinte em relação a uma mensagem do emissor são três: confirmação, situação em que o ouvinte compreende e concorda com a mensagem; rejeição, quando o ouvinte compreende e discorda da mensagem; ou desconfirmação, que é a não-compreensão ou ignorância da mensagem. Porém, o direito, segundo o autor, só reconhece duas: a confirmação ou a rejeição117. Isso porque não é dado ao destinatário alegar o desconhecimento ou ignorância da lei.

Sabe-se, todavia, que é impossível que todos os destinatários conheçam e compreendam todas as normas. Advertem Lucia Santaella e Winfried Nöth, fundamentados nas lições de Lotman, que não há uma perfeita sintonia entre os códigos do emissor e do receptor, estabelecendo o princípio da “não-identidade” de seus códigos118. Entretanto, parece que os autores estão fazendo menção ao repertório

115 Gregorio ROBLES, O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 78-9. 116 Clarice ARAUJO, Semiótica do direito, p. 51.

117 Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, p. 57. 118 Comunicação e semiótica, p. 140.

dos comunicadores, e não ao código. O repertório do médico e do paciente não é o mesmo; o médico sabe manipular mais o código quando se trata de diagnósticos e doenças.

Essa “não-identidade” de repertórios é que explica por que um destinatário D1, ao ser comunicado de uma norma geral e abstrata N1, realiza uma conduta C1, entendendo cumprir a ordem prescrita, enquanto outro destinatário D2, diante da mesma mensagem N1, vem e realiza outra conduta C2, também acreditando que realizou a conduta prescrita. O direito, apesar de presumir que todos os destinatários conhecem e compreendem seus dispositivos normativos, previu que poderia haver situações em que existiria o conflito entre as condutas. Daí, a figura do Poder Judiciário para resolver confrontos de interesses.