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2 LINGUAGEM E DIREITO

9.3 A compensação tributária e o Direito Civil

Com a edição do novo Código Civil em janeiro de 2002, surgiu a discussão sobre um possível conflito entre o direito tributário e o direito civil, isso porque a lei privada trouxe em seu bojo o art. 374 prescrevendo que a compensação, no que

concerne às dívidas fiscais, é regida pelo capítulo específico da compensação presente no Código Civil.

Porém, o mencionado dispositivo foi revogado pela MP 75/02. Só que, para causar mais confusão, essa medida provisória foi rejeitada pelo Plenário da Câmara dos Deputados sendo, depois, “reeditada” pela MP 104/03, por sua vez convertida na Lei 10.677/03. Eis todo o emaranhado legislativo sobre a vigência do art. 374 do CC. O principal problema é a inconstitucionalidade da MP 104/03 por vício de procedimento.

O art. 62, § 10, presente na Constituição Federal veda a reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso Nacional na mesma sessão legislativa. Desse modo, como a MP 104/03 não observou essa restrição, surgindo na mesma sessão legislativa que rejeitou a MP 75/02, sua produção não corresponde ao procedimento eleito pelo ordenamento jurídico, já que eivada de inconstitucionalidade. Portanto, o resultado dessa afirmação é que o art. 374 do CC ainda estaria em vigor376. Sobre isso pensa Nelson Nery Junior377:

Apesar de a L 10.677, de 22.5.2003, objeto de conversão da MedProv 104, de 9.1.2003, haver revogado o dispositivo [art. 374 do CC], ele está em vigor porque referida revogação se deu de maneira inconstitucional e não pode produzir nenhum efeito.

É inconstitucional por vício de origem (inconstitucionalidade formal), porque a MedProv da qual se originou foi fruto de reedição pelo Presidente da República, na mesma sessão legislativa na qual o Congresso Nacional já havia rejeitado anterior medida provisória sobre a mesma matéria, procedimento absolutamente vedado pela CF 62 § 10.

Acontece que, como se vem salientando ao curso deste estudo, o direito é um

376 O STJ entende que o art. 374 do Código Civil está revogado: “Se as normas que regulam a compensação

tributária não prevêem a forma de imputação do pagamento, não se pode aplicar por analogia o art. 354 do CC/2002 (art. 993 do CC/1916) e não se pode concluir que houve lacuna legislativa, mas silêncio eloqüente do legislador que não quis aplicar à compensação de tributos indevidamente pagos as regras do Direito Privado. E a prova da assertiva é que o art. 374 do CC/2002, que determinava que a compensação das dívidas fiscais e parafiscais seria regida pelo disposto no Capítulo VII daquele diploma legal foi revogado pela Lei 10.677/2003, logo após a entrada em vigor do CC/2002”. (REsp. 987.943/SC, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 19.02.2008, DJ 28.02.2008, p. 89).

377 Compensação tributária e o Código Civil, Direito tributário e o novo Código Civil, p. 28 (explicou-se nos colchetes

– grifo do original). O mesmo pensamento encontra-se em Fabio Artigas GRILLO, Compensação tributária e direito privado, Direito tributário e o novo Código Civil, p. 497-8.

fenômeno comunicacional não conseguindo se afastar do cerco da linguagem. A inconstitucionalidade da revogação do art. 374 do CC é evidente, segundo a doutrina, mas, para operar no sistema jurídico, requer outra norma jurídica de igual ou superior hierarquia, que declare efetivamente o vício da MP 104/03, restaurando o art. 374 do CC. De outro modo, a Lei 10.677/03 permanece válida e em vigor, rechaçando o dispositivo da legislação civil, até mesmo porque os enunciados emitidos pela ciência do direito não possuem força para alterar o direito positivo. Sendo assim, o art. 374 do CC está revogado, em que pese o procedimento para a sua exclusão esteja em desacordo com o direito.

Outra questão aparece: é possível utilizar as disposições do direito privado quando se tratar da compensação tributária? Dizendo de outro modo: qual a legislação a ser aplicada quando o objeto for a compensação tributária?

Hugo de Brito Machado defende que é injustificável a revogação do art. 374 do CC, sendo a normatização da compensação de competência do Direito Civil, uma vez que é um direito inerente às relações obrigacionais, e não própria da relação de tributação378. Para Nelson Nery Junior, havendo confronto entre a compensação prevista em lei tributária e o regime do Código Civil, este prevalece379.

O direito é uno, apenas divisível de forma didática, cortado e recortado pelos seus estudiosos para fins de uma melhor aproximação ao objeto. Por esse motivo, inúmeras vezes, ao trabalhar com institutos nitidamente tributários, o cientista do direito se depara com questões que o fazem manusear livros referentes aos direitos civil, administrativo, constitucional, etc. Com a compensação não poderia ser diferente. Trata-se de um instituto jurídico pertencente à teoria geral do direito.

Assim, a compensação deve ser estudada com seus elementos básicos como categoria da teoria geral do direito. Todavia, o regime jurídico aplicado será o tributário quando penetrado nesse âmbito. A compensação tributária tem seu fundamento de validade no art. 170 do CTN, e dele decorre toda a legislação

378 Curso de direito tributário, p. 232.

ordinária. O que se defende aqui não é uma completa dissociação da compensação tributária com as regras prescritas no Código Civil, até mesmo porque essas regras são pertencentes à teoria geral das compensações. Só que nada impede que o direito tributário eleja características peculiares à compensação tributária, como o fez no art. 170 do CTN, sem que isso cause vício na sua produção.

Guilherme Adolfo Mendes defende a separação entre a compensação tributária e a prevista no Código Civil: “Apesar de a compensação tributária ter seus esteios fixados na compensação do direito privado, não se aprisiona pelos seus grilhões”. Reforça a tese lembrando que o art. 109 do CTN permite a modificação de institutos do direito privado pela legislação tributária com o escopo de atender aos anseios tributários. Desse modo, afirma que: “Este dispositivo autoriza à legislação tributária adaptar os institutos do direito privado conforme suas finalidades, desde que não componham competência tributária”380.

Em suma, ao se adentrar na órbita tributária, o eixo de positivação das normas de compensação deve seguir as diretrizes traçadas pelo CTN e pela legislação tributária específica, aplicando-se, de forma subsidiária, o Código Civil381.

380 Compensação de ofício, Tributação e processo, p. 232. Paulo Cesar CONRADO também defende a aplicação, para

a compensação tributária, de regime específico, pois “quando penetramos na órbita tributária, o que se há de observar de verdadeiramente relevante é que o regime jurídico que se lhe aplicará será bem outro, que não o do direito privado”. Compensação tributária e processo, p. 106.

381 Eis o ensinamento de Aroldo Gomes de MATTOS: “Admite-se, em tese, que as regras de Direito Privado

(princípios, institutos, conceitos e formas) sejam aplicadas subsidiária e interdisciplinarmente ao Direito Tributário. A sua autonomia didática e estrutural, pois, não é absoluta, mas relativa, já que ele se comunica com todos os demais ramos da ciência jurídica, participando de sua unicidade global, como num sistema de vasos comunicantes”. Repetição do indébito, compensação e ação declaratória, Repetição do indébito e compensação no direito tributário, p. 64. Tratando do cotejo entre a prescrição prevista no Código Civil e aquela regulada no CTN, o STJ definiu assim a relação entre os ramos do direito: “A prescrição, por definição do CTN, é instituto de direito material, sendo regulada por Lei Complementar, a que a lei ordinária há de ceder aplicação. De conseqüência, o art. 156, V, do CTN, por ser norma de natureza complementar, se sobrepõe às regras inseridas nos arts. 166 do CC, e 128 e 219, par. 5., do CPC”. (REsp. 29.432/RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, julgado em 21.05.1998, DJ 29.06.1998, p. 26). Sobre o tema específico, o Colendo Tribunal já definiu que “A compensação tributária deve ser feita de acordo com as regras específicas estabelecidas para regular tal forma de extinção do débito. Não- aplicabilidade do sistema adotado pelo Código Civil”. (REsp. 921.611/RS, Rel. Min. José Delgado, julgado em 01.04.2008, DJ 17.04.2008 p. 1). Gabriel TROIANELLI defende a aplicação da legislação civil quando inexistir lei específica estabelecendo as condições da compensação tributária, O indébito tributário e a compensação do tributo indevidamente pago, Revista dialética de direito tributário, n. 6, p. 35.