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2 LINGUAGEM E DIREITO

4.4 Fontes do direito positivo

Uma ambigüidade comum pertencente às palavras é a processo/produto. É fruto da utilização do mesmo termo para designar dois significados: um relativo ao processo, e o outro referente ao produto desse processo. Surge, relata Hospers, porque “freqüentemente usamos uma palavra para representar um processo, e

usamos novamente a mesma palavra para representar o produto resultante de tal processo. Quando alguém diz ‘foram ver a construção’, pode-se querer significar que foram ver 1) as pessoas no processo de construir algo ou 2) a coisa que foi construída”152.

O direito convive com essa ambigüidade, pois facilmente se encontra uma palavra significando ora o processo ora o produto decorrente desse processo. No direito positivo é possível perceber a existência desse problema semântico. Para isso, basta analisar o Código Tributário Nacional e se deparar com a expressão “lançamento tributário”, usada para designar tanto o processo153 como o produto154.

Na Lingüística é feita a diferenciação entre o produto e o processo, usando-se os termos enunciado e enunciação. O enunciado, conforme Paulo de Barros Carvalho, é “um conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma, consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da comunicação”155. É a expressão em seu sentido material, o suporte físico de um signo, ou seja, o produto. Já o processo que origina o enunciado é denominado enunciação; é o ato produtor do enunciado. Assim, enunciação é definida como “um conjunto de operações constitutivas de um enunciado, o conjunto de atos que o sujeito falante efetua para construir, no enunciado, um conjunto de representações comunicacionais”; e enunciado é o “produto do ato de produção” 156.

Acontece que a enunciação se perde no tempo e no espaço, restando apenas os fatos enunciativos. Esses fatos possibilitam a reconstrução da enunciação por meio

152 Introducción al análisis filosófico, p. 29. (tradução livre). No original: “A menudo usamos una palabra para

representar un proceso, y usamos de neuvo la misma palabra para representar el producto resultante de tal proceso. Cuando alguien dice ‘fueron a ver la construcción’, puede querer significar que fueran a ver 1) a gente en el proceso de construir algo o 2) la cosa que ha sido construida.”

153 Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento,

assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

154 Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de: I –

impugnação do sujeito passivo; II – recurso de ofício; III – iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no artigo 149.

155 Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 22.

das marcas lingüísticas encontradas no discurso identificando o emissor, o tempo e o lugar da enunciação. Percebendo esse problema, Tárek Moussallem, com fulcro nas lições de José Luiz Fiorin, identifica dois tipos de enunciados: a enunciação-enunciada, que são essas marcas encontradas no texto que se referem ao processo de enunciação, e o enunciado-enunciado, que é o texto desprovido das marcas da enunciação157.

Tomando como premissa que o mundo jurídico é construído num universo de linguagem, tal distinção é importante porque é por meio da enunciação-enunciada que o operador do direito irá identificar o órgão competente, o espaço, o tempo e o procedimento do ato produzido158. É mediante a enunciação-enunciada que o jurista reconstrói a atividade do processo de produção de normas jurídicas, já que a enunciação se esvai no espaço e no tempo. Em outras palavras, o ato de produção utilizado pelo emissor da mensagem jurídica somente pode ser identificado pelas marcas encontradas no texto da mensagem.

Feita essa identificação dos elementos que constituem uma mensagem lingüística, e aí se inclui a norma jurídica, Tárek Moussallem afirma que a fonte do direito é a enunciação, isto é, a atividade produtora dos enunciados do documento normativo, porém ela desaparece no tempo e no espaço159. Assim, fonte do direito é o processo, e o documento normativo é o produto advindo desse processo. Essa nova visão sobre o tema fontes do direito rompe com a doutrina tradicional, que considerava como fontes a lei, o costume, a doutrina e a jurisprudência; refuta-se, com isso, a dicotomia fonte material/fonte formal160. Considerar-se-á fonte do direito o processo de produção de normas jurídicas.

É sobremaneira importante a expressão elaborada por Paulo de Barros Carvalho “instrumentos introdutórios de normas” ao invés de se usar “fontes

157 Fontes do direito tributário, p. 78-9.

158 Tárek MOUSSALLEM, Fontes do direito tributário, p. 80. 159 Ibid. p. 137.

160 Fontes materiais, segundo Maria Helena DINIZ, consistem no conjunto de fatores sociais e axiológicos que

determinam a elaboração do conteúdo das normas jurídicas, e fontes formais são os modos de manifestação do direito, Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 280 e seguintes. Ruy Barbosa NOGUEIRA, de modo diverso, define como fontes reais os suportes fácticos das imposições tributárias, Curso de direito tributário, p. 47 e seguintes.

formais”161. É com a enunciação-enunciada presente no documento normativo que se constrói a norma jurídica geral e concreta162, cuja finalidade é introduzir novas normas no sistema. O ato de produção de normas, porque se esvai no tempo e no espaço, reconstruído pelas marcas deixadas no documento normativo, apenas pode ser identificado pela análise do instrumento introdutor de normas. Por isso, pode-se falar em normas introduzidas e normas introdutoras, sendo no veículo introdutor de normas que serão revelados os indícios do procedimento aplicado para a elaboração do documento normativo, reconstruindo-se a fonte do direito. Contudo, o documento normativo (produto) somente surge quando a enunciação (processo) desaparecer.

Com isso, encontram-se em um documento normativo dois tipos de enunciados: (i) a enunciação-enunciada, que são as marcas de espaço, tempo, emissor e procedimento produtor do documento; e (ii) o enunciado-enunciado, que são as disposições normativas.

É no canal físico do sistema comunicacional do direito que o receptor terá o primeiro contato com a mensagem. Aí se encontra a enunciação-enunciada que permitirá a construção da norma jurídica veículo introdutor de normas. Retorna-se à atividade produtora para verificar se o emissor era a pessoa competente e se utilizou o correto procedimento estampado no direito. É também no canal físico que está presente o enunciado-enunciado, entendido como o conteúdo da mensagem normativa, ou seja, aquilo que o direito pretende regular.

A partir desse contato com o plano da literalidade, convencionado por Paulo de Barros Carvalho como S1163, é que o receptor irá produzir as mensagens jurídicas (normas jurídicas em sentido estrito), em conformidade com o seu código e repertório. Por isso, se diz que a partir de um único código (texto de lei) várias

161 Curso de direito tributário, p. 56.

162 “Concreta, porque atesta, em seu antecedente, o fato jurídico exercício da competência, precisamente

delimitado em suas coordenadas espaço-temporais (agente x, dia y, na localidade w, praticou o procedimento z) e geral, porque, em seu conseqüente, instaura uma relação jurídica que atribui a todos o dever jurídico (Op) de observar as disposições introduzidas no sistema”, Daniel Monteiro PEIXOTO, Competência administrativa na aplicação do direito tributário, p. 100-1.

mensagens jurídicas (normas jurídicas) poderão ser construídas.