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2 LINGUAGEM E DIREITO

4.5 Competência tributária

A expressão competência tributária, como tantas outras no direito, é ambígua, possuindo diversos significados. Cristiane Mendonça encontrou dez formas de uso para o termo164. Realizando um processo de elucidação, a autora restringe o conceito de competência tributária à “autorização conferida pelo direito positivo às distintas pessoas políticas para a edição e a alteração de normas jurídicas tributárias em sentido estrito, quer gerais e abstratas, quer individuais e concretas”165. Percebe-se que a competência não está restrita à produção de normas gerais e abstratas. Há, ainda, uma acepção mais ampla para a expressão: a autorização para a produção e modificação de todos os demais dispositivos normativos que versem sobre matéria tributária166.

Sendo assim, o termo competência tributária pode ser tomado em sentido estrito, significando a autorização que as pessoas políticas possuem para produzir novas normas cujo conteúdo trate apenas da instituição de tributos, e em sentido amplo, quando a permissão é para a produção de qualquer tipo de norma tributária.

Roque Carrazza trabalha com um conceito restrito de competência tributária. Segundo o ilustre professor, a competência tributária é apenas a legislativa, cujo escopo é instituir tributos: “competência tributária é a possibilidade de criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”167. Ao se exercer a competência tributária, observando as lições do autor, estão sendo inseridas

164 Competência tributária, p. 37-8.

165 Ibid. p. 79. Entretanto, em seu trabalho a autora se restringiu apenas ao estudo da norma de competência como

autorização para a produção de normas tributárias gerais e abstratas, Ibid, p. 86.

166 Ibid. p. 105. Nesse sentido, Daniel Monteiro PEIXOTO, Competência administrativa na aplicação do direito

tributário, p. 81.

normas gerais e abstratas que versam sobre tributos.

Entretanto, parece que a expressão competência tributária pode ser usada não só pra designar a aptidão de criar normas gerais e abstratas. Eurico de Santi e Daniel Peixoto segregam as normas de competência dividindo-as em “competência legislativa”, para a permissão de se colocarem no sistema normas gerais e abstratas; “competência administrativa”, como a possibilidade de se criarem normas individuais e concretas168; “competência privada”, que é a autorização para se criarem atos no âmbito privado; e “competência judicante”, relativa à solução de litígios169. Teriam, portanto, autorização para introduzir novas normas no sistema jurídico os órgãos legislativo, administrativo e judicial, além do particular170. Percebe- se que, enquanto a competência legislativa está atrelada à edição de normas gerais e abstratas, as demais se vinculam à produção de normas individuais e concretas.

Trabalhando com a competência legislativo-tributária em sentido estrito, se produz uma norma jurídica, que, em razão do princípio da homogeneidade sintática171, possui a mesma estrutura bimembre de todas as normas, ou seja, um antecedente que implica um conseqüente. Identifica-se como antecedente o fato de ser pessoa política no território nacional em certo tempo, e como conseqüente a autorização para distintos sujeitos de direito, de acordo com certos limites formais e materiais, editarem enunciados prescritivos de tributos e o dever jurídico que a

168 Roque CARRAZZA distingue a competência tributária como a permissão editar normas jurídicas (em sentido

lato), da capacidade tributária ativa que consiste no direito de arrecadar o tributo. Curso de direito constitucional tributário, p. 419.

169 PIS e Cofins na importação, competência: entre regras e princípios. Revista dialética de direito tributário, n. 121, p.

35-6. Cristiane MENDONÇA trabalha com a possibilidade de a competência tributária ser exercida pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Deixa de fora os particulares em razão do objeto do seu estudo que compreende apenas a autorização para a produção de normas gerais e abstratas que instituam tributos. Competência tributária, p. 98-9.

170 O direito positivo não outorga competência para o particular criar normas gerais e abstratas que versem sobre

a criação de exações. Apenas é autorizado pelo sistema jurídico a expedir normas individuais e concretas, como o autolançamento e o contrato.

171 Esse princípio determina que as normas jurídicas em sentido estrito (ou regras jurídicas) serão todas compostas

na mesma organização sintática: um juízo condicional, que contém um antecedente descreve um fato e o conseqüente prescreve uma relação deôntica entre dois sujeitos de direitos. Opõe-se ao princípio da heterogeneidade semântica, que postula o preenchimento das estruturas sintáticas da norma jurídica conforme livre escolha do legislador.

comunidade tem de respeitar tal exercício172.

As outras normas de competência tributária (administrativa, jurisdicional e privada) não são construídas com a edição de uma única estrutura lógica como acontece com a competência legislativa. Alerta Daniel Peixoto que, em se tratando da autorização para a produção de normas individuais e concretas, não é possível a construção de uma única norma, mas sim o agrupamento de três normas gerais e abstratas que irão traçar os critérios para a produção dessas normas: (i) a norma de competência-desempenho; (ii) a norma de competência formal; e (iii) a norma de competência material173. Assim, as competências administrativa, judicante e privada derivam da incidência de três instrumentos normativos.

É importante registrar que as pessoas autorizadas a editar normas têm essa atividade limitada pelo próprio direito. É o critério delimitador presente no conseqüente da norma de competência legislativa, desenhado pelos limites materiais e formais. Os primeiros são restrições quanto ao conteúdo da norma a ser inserida no sistema; já os formais dizem respeito ao procedimento a ser obedecido para a realização do ato de produção de normas. Segundo Cristiane Mendonça, é a dupla finalidade do critério delimitador da autorização: “i) regrar a forma de atuação do sujeito ativo (enunciação) quando da produção dos dispositivos legais tributários stricto sensu; ii) fixar o conteúdo dos versículos jurídico-tributários (enunciado- enunciado) que serão imitidos no mundo jurídico”174.

Na produção de normas individuais e concretas, os limites são postos pelas

172 Cristiane MENDONÇA, Competência tributária, p. 69-70. Pouca diferença se encontra na norma construída por

Eurico de SANTI e Daniel PEIXOTO, apenas acrescentam no antecedente certas circunstâncias que devem ou não ocorrer para surgir a autorização de produzir normas, PIS e Cofins na importação, competência: entre regras e princípios. Revista dialética de direito tributário, n. 121, p. 37.

173 Competência administrativa na aplicação do direito tributário, p. 85.

174 Competência tributária, p. 130. Para a autora são limites materiais: i) os critérios constitucionais relativos à

classificação dos tributos (vinculação à uma atividade estatal; destinação do produto arrecadado e a restituição do valor recolhido); ii) os princípios constitucionais tributários, tanto na acepção de valores como de limite objetivo; iii) as imunidades tributárias. Ibid, p. 181. Semelhante o posicionamento de Eurico de SANTI e Daniel PEIXOTO, PIS e Cofins na importação, competência: entre regras e princípios. Revista dialética de direito tributário, n. 121, p. 38-9. Roque CARRAZZA assevera que o legislador, ao exercitar a competência tributária, está sujeito aos seguintes limites jurídicos: a) observar as normas constitucionais; b) os princípios constitucionais; c) vedação ao confisco; além de outras disposições indiretas, como o direito de propriedade, o direito de exercer atividades lícitas, etc. Curso de direito constitucional tributário, p. 419 et seq.

três normas que traçam a aplicação do direito. Na norma de competência- desempenho está a obrigação ou a faculdade de se produzir o ato. Já os requisitos formais e materiais são descritos pelas outras duas normas.

Com isso, para se inserir uma nova norma no sistema, seja do tipo geral e abstrata, seja do tipo individual e concreta, não basta que a sua elaboração ocorra por meio de veículo introdutor próprio de acordo com o procedimento aplicável à espécie. É imprescindível que os enunciados normativos produzidos tenham o conteúdo em conformidade com a norma de competência. O emissor da mensagem deôntica está condicionado ao cumprimento dessas exigências, sob pena de invalidade da norma editada. Desse modo, uma lei poderá ser declarada inválida formalmente quando elaborada por órgão incompetente ou quando não seguir o procedimento descrito pelo sistema (inobservância da norma de competência formal ou do critério delimitador da norma de competência legislativa); e poderá ser declarada inválida materialmente quando houver incompatibilidade com o conteúdo do ato normativo (inobservância da norma de competência material ou do critério delimitador da norma de competência legislativa).

Analisando o processo de positivação das normas, pode-se dizer que ele se inicia com o exercício da competência legislativa175, criando as normas gerais e abstratas. O próximo passo da concretização consiste na aplicação das normas gerais e abstratas, produzindo normas individuais e concretas, momento em que se exercem as competências administrativa, judicante ou até mesmo a privada.

Percebe-se, portanto, que todo ato de produção de normas pressupõe uma norma de competência contendo os requisitos formais e materiais a serem obedecidos pelo órgão produtor de normas. É na norma de competência que estão presentes o modo e o processo para se produzirem normas, o órgão competente e o conteúdo a ser observado. A administração, para aplicar a norma geral e abstrata por meio do lançamento tributário, produzindo uma norma individual e concreta que

175 É possível o Poder Judiciário e o Poder Executivo exercerem, atipicamente, a função legislativa. Aqui ficaria de

constitui o crédito tributário, deve seguir a norma de competência administrativa que traz o procedimento a ser seguido pela autoridade administrativa, bem como qual o conteúdo dessa norma.

É importante registrar que é na norma de competência que se encontram o procedimento e o conteúdo para a aplicação da norma de compensação, conforme será visto adiante.

4.5.1 A questão da validade na produção normativa

Várias teorias surgiram para interpretar a validade das normas jurídicas176. Apesar dessa grande produção sobre o tema, para o presente estudo considera-se validade como relação de pertinência de uma norma jurídica a um determinado sistema jurídico177. Nesses termos, validade equivale à existência da norma jurídica. Por esse motivo, classificar a norma jurídica como válida constitui um pleonasmo segundo Luís Cesar Souza de Queiroz, já que sua qualificação como não-válida é o mesmo que dizer que a norma não é jurídica178. Afirmar a norma como jurídica já pressupõe a sua validade.

Essa posição de que as normas válidas são aquelas pertencentes à determinado sistema decorre das lições de Hans Kelsen, para quem norma válida é a produzida em conformidade com as regras ditadas por uma norma superior179. Entretanto, há um paradoxo presente no sistema jurídico: é possível encontrar normas que foram introduzidas em desconformidade com os critérios da norma superior. E essas normas permanecerão no sistema até serem retiradas por outra. É o que afirma Marcelo Fortes de Cerqueira: “mesmo que as normas veiculadas não sejam especificamente da competência direta do órgão habilitado que promoveu o

176 Cf. Paulo Roberto Lyrio PIMENTA, A validade e a eficácia das normas jurídicas, p. 63-86. 177 Paulo de Barros CARVALHO, Curso de direito tributário, p. 81.

178 Sujeição passiva tributária, p. 124. 179 Teoria pura do direito, p. 232.

ingresso, ou que o procedimento utilizado não seja o adequado, não há como negar que houve nessa situação o ingresso de regra jurídica no ordenamento, embora de forma irregular”180. Como está inserida no sistema, a norma irregular tem aptidão para produzir efeitos que poderão ser desconsiderados depois com a edição de outra norma.

Assim, a norma jurídica, uma vez introduzida no sistema jurídico de forma regular ou irregular, permanecerá válida até que outra venha e a retire da ordem jurídica. Basta pertencer ao sistema para ser considerada válida. Quando ingressam no ordenamento positivo, as leis presumem-se constitucionais, ou seja, válidas. De acordo com Pontes de Miranda, somente o Poder Judiciário é competente para retirar uma norma do sistema por inconstitucionalidade. Se o Poder Executivo e o Legislativo deixam de aplicar ou executar alguma lei por reputarem-na inválida agem por sua responsabilidade. “Qualquer poder pode recusar-se a cumprir a lei, por lhe parecer contrária à Constituição; mas, se assim procede, é a seu risco que o faz. Só ao poder a que incumbe sentenciar cabe decretar a inconstitucionalidade das leis”181.