• Nenhum resultado encontrado

2 LINGUAGEM E DIREITO

4.7 A fenomenologia da produção normativa

Há duas condutas que são regidas pelo direito: os comportamentos humanos e a produção de normas. Ambas reguladas por normas jurídicas. A criação de enunciados normativos depende da norma de produção jurídica. É o direito criando

suas próprias realidades. Como a norma jurídica para ser inserida no ordenamento depende de uma atividade enunciação, esse processo será regulado pelo direito positivo. A enunciação não permanece no sistema, restando apenas seu produto, ou seja, o documento normativo produzido. Por isso Gabriel Ivo declara que a enunciação não tem imanência193. Assim, para se estudar o processo de produção de normas, parte-se da análise do produto, cotejando-o com as regras de estruturas previstas pelo direito posto. Em outras palavras, somente a partir do momento em que for inserida uma mensagem jurídica, abre-se a possibilidade de se conhecer o seu modo de produção.

O direito é criado mediante ação realizada por uma pessoa competente seguindo um procedimento previsto numa norma de estrutura. É um mero evento para o direito. Acontece que esse agir humano desaparece no tempo e somente é resgatado na enunciação-enunciada do documento normativo. A produção normativa também é um fato jurídico que surge com a incidência da norma de produção. Lourival Vilanova explica: “As normas de organização (e de competência) e as normas do ‘processo legislativo’, constitucionalmente postas, incidem em fato e os fatos se tornam jurígenos. O que denominamos ‘fontes do direito’ são fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia”194.

Gabriel Ivo também vê a produção de normas como fato jurídico: “A incidência das normas de produção normativa ocorre no momento em que o fato jurídico da enunciação é traduzido em linguagem. Isso ocorre por meio da enunciação enunciada. O fato jurídico do processo de produção jurídica está localizado no antecedente da norma concreta e geral, construído por intermédio da enunciação enunciada”195. É, portanto, na enunciação-enunciada que se encontram as marcas do processo de produção de normas.

Nota-se que a produção normativa também possui uma fenomenologia de

193 Norma jurídica: produção e controle, p. 40. 194 Causalidade e relação no direito, p. 56. 195 Norma jurídica: produção e controle, p. 42.

incidência de normas. Há normas que revelam como se deve agir para que outra seja inserida no sistema, o que ocorre com a incidência da norma de estrutura. Descreve- se a produção normativa desta forma: (i) norma de estrutura que contém as regras referentes ao procedimento (norma de competência formal ou critério delimitador formal da norma de competência legislativa); (ii) ação de produzir normas (enunciação); (iii) norma geral e concreta veículo introdutor que constitui o (iv) fato jurídico de produção de normas.

O veículo introdutor decorre da aplicação de uma norma geral e abstrata. É da aplicação da norma de competência que surge a norma introdutora de outras normas gerais e abstratas ou individuais e concretas. Nessa norma introdutora estão presentes os elementos que permitem confirmar se a ação produtora foi realizada de acordo com os limites formais estabelecidos pelo direito. “A construção dessa norma, concreta e geral, que deixa evidente o processo de positivação do direito, sua faceta dinâmica, é possível a partir da enunciação enunciada”196.

A atividade produtora de normas é limitada pelo próprio direito, tanto o seu procedimento quanto o seu conteúdo estão prescritos por outras normas jurídicas. Na norma de competência legislativa, são os critérios delimitadores que tratam da forma de atuação do emissor na produção dos dispositivos legais, bem como fixam o conteúdo dos enunciados inseridos no sistema. Já nas demais competências, a administrativa, a privada e a judicante, que basicamente inserem normas individuais e concretas no ordenamento, há, pelo menos, duas normas que regulam a produção: a norma de competência formal e a norma de competência material197. A primeira é formada por um antecedente que contém “os critérios que irão orientar a atividade de enunciação (pessoa, espaço, tempo e procedimento) e, no conseqüente, a prescrição do dever geral de obediência aos enunciados introduzidos em função daquela atividade”198. Essa norma regula as ações que tratam da criação, modificação ou extinção de normas jurídicas. Agora, a norma de competência material orienta as

196 Gabriel IVO, Norma jurídica: produção e controle, p. 66. (grifo do original). 197 Ver item 4.5 acima.

ações que se referem aos comportamentos humanos propriamente ditos, por isso possui os critérios para a composição do fato jurídico no seu antecedente e, no conseqüente, a relação jurídica a ser instaurada com o acontecimento do fato.

Percebe-se, então, que a enunciação é uma atividade regulada pelo direito. Como ela não é perdurável, sua “reconstrução” somente é possível por meio da enunciação-enunciada contida no documento normativo, originando-se uma norma concreta e geral, o veículo introdutor de normas.

Mais uma vez entra em cena o princípio da homogeneidade sintática das normas jurídicas: a norma veículo introdutor também é composta por uma estrutura bimembre, o antecedente e o conseqüente ligados por um modal “dever-ser”. Por ser concreta, traz descrito no antecedente o fato jurídico da produção de normas, em sua feição denotativa, precisamente delimitado quanto ao sujeito, ao procedimento e às coordenadas espaço-temporal. Esse fato implica o seu conseqüente, que instaura uma relação jurídica obrigando todos, por isso geral, a observar o conteúdo (enunciado- enunciado) introduzido no sistema.

O fato jurídico da produção normativa pode ser assim descrito: o exercício da competência pelo sujeito x, em conformidade com o procedimento y, no dia z, no local w. São esses elementos presentes na enunciação-enunciada que permitem a (re)construção da enunciação como atividade produtora de normas. Tais marcas, que remetem ao contexto extralingüístico do ato da enunciação, são denominadas dêiticos pela lingüística.

Os dêiticos presentes na enunciação-enunciada do documento normativo possibilitam identificar: (i) o agente emissor da mensagem normativa; (ii) o procedimento utilizado; (iii) o local da produção; e (iv) o momento em que foi produzido o documento normativo. O veículo introdutor será uma norma produzida sem vícios formais se os dêiticos descritos observarem os critérios da norma de estrutura.

O dêitico de autoridade refere-se à pessoa que emitiu o veículo introdutor. Indica que a norma de competência foi aplicada pelo sujeito autorizado fazendo

surgir uma nova norma. “A enunciação-enunciada recorta, por meio do dêitico de autoridade, parte da enunciação e lança-a para o enunciado, com a finalidade de dizer que o texto produzido o foi por meio da autoridade autorizada a fazê-lo”199.

Outra informação que pode ser obtida com o dêitico de autoridade é sobre o âmbito territorial de vigência do instrumento normativo inserido200. Assim, um enunciado colocado no sistema por um Estado-membro somente poderá produzir efeitos dentro dos limites desse Estado-membro. Já uma lei federal aplica-se em todo o território brasileiro. É, portanto, no dêitico de autoridade que se encontram as notas sobre a aplicação territorial de uma norma.

Mais uma vez se recorre às marcas da enunciação para demonstrar o dêitico do procedimento. Aqui estão presentes as indicações sobre a forma a ser seguida para se elaborar o documento normativo. O seu modo de produção é identificado pelo nome que recebe o veículo introdutor. Desse modo, como salienta Gabriel Ivo, um documento pertence à categoria de lei porque em seu corpo físico está grafado o termo lei201. Daí decorre que foram aplicadas as normas reguladoras do procedimento de criação de uma lei.

O local onde ocorreu o processo de criação do documento normativo é identificado pelo dêitico de espaço. Essa marca na enunciação-enunciada define o local onde foi exercida a competência para a criação de uma norma. A importância desse dêitico ressalta que uma mensagem jurídica não pode ser emitida em qualquer lugar, mas sim onde as autoridades estão juridicamente situadas.

Por fim, o dêitico de tempo revela o exato instante em que a norma ingressou no sistema. A data presente no texto normativo aponta o fim da atividade de enunciação. É fundamental para se definir quando o veículo criado passou a ter validade no mundo do direito.

Após essa breve exposição, pretende-se identificar todos os elementos até aqui mencionados no documento normativo abaixo colacionado:

199 Gabriel IVO, Norma jurídica: produção e controle, p. 72. 200 Ibid. p. 72.

LEI Nº 11.687, DE 2 JUNHO DE 2008.

Dispõe sobre a instituição do “Dia Nacional do Imigrante Italiano” e dá outras providências.

O VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º É instituído o “Dia Nacional do Imigrante Italiano” a ser anualmente comemorado no dia 21 de fevereiro, em todo o território nacional.

Art. 2º (VETADO)

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 2 de junho de 2008; 187º da Independência e 120º da República.

JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Fernando Haddad

Gilberto Gil

No diploma normativo apresentado, a enunciação-enunciada possibilita identificar: (i) o sujeito emitente da norma, no caso o Vice-Presidente e o Congresso Nacional; (ii) o momento em que foi inserida no sistema, o dia 02 de junho de 2008; (iii) o local onde foi produzida, Brasília; e (iv) o procedimento adotado, que é o específico das leis ordinárias descrito na Constituição Federal. São os dêiticos que permitem a construção da atividade de produção normativa. Já o enunciado- enunciado é formado pelos artigos fonte de produção da norma jurídica em sentido estrito de criação do dia do imigrante italiano.

A norma corretamente inserida no sistema deve seguir à risca o procedimento descrito por este, sob pena de ser declarada inválida. Esse vício formal é detectado pelo cotejo entre a norma geral e abstrata que apresenta as regras de competência para produção de enunciados prescritivos e o veículo introdutor de

Enunciação -enunciada Enunciado- enunciado Enunciação -enunciada Dêitico de procedimento Dêitico de tempo Dêitico de autoridade Dêitico de autoridade Dêitico de espaço

normas (dêitico de procedimento). É pelo produto que se constrói a atividade de produção de normas e se verifica se ela foi inserida corretamente no sistema.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RELAÇÃO

JURÍDICA TRIBUTÁRIA