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A África na era da globalização

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 41-44)

No século XX, entretanto, a história da África está, na realidade, intimamente ligada às tendências sensíveis em escala mundial. Veremos, mais adiante, como a tradução de Shakespeare em kiswahili, feita por Nyerere, ilustra, no campo literário, essa conexão planetária. O capítulo 29, consagrado à “A África e a Organização Mundial das Nações Unidas”, lançará luz sobre o componente político dessa ligação viva. O período abordado no presente volume começou no nascer da era nuclear e na emergência da era espacial, dois dentre os acon- tecimentos que mais radicalmente transformaram a relação do homem com o universo. Outros capítulos examinarão essas tendências científicas. Leitores e autores que procederem, no transcorrer do presente volume, à microanálise da experiência local e regional na África, deverão igualmente guardar em mente a dimensão “cósmica”, totalmente excepcional, caracterizadora desse período da história humana. Quais terão sido, para a África, o impacto e as consequências desses prodigiosos avanços tecnológicos? De que maneira a própria África teria contribuído em tão espetaculares transformações? Nós não poderemos perder

de vista o contexto geral no qual se inscrevem os processos regionais estudados nesse volume.

Duas catástrofes de magnitude mundial importam, tanto para a reumani- zação da Europa, quanto para a reafricanização da África: a Crise dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial. Qual dentre esses dois eventos teria tido maior repercussão na história da África? E qual teria mais contribuído para reumanizar o Ocidente?

Os anos mais difíceis da crise situam -se logo antes do período tratado no presente volume: a quebra de Wall Street data de 1929. Mas suas consequências se fizeram sentir durante toda a década seguinte, até mesmo posteriormente por algumas das mais sinistras dentre elas (a ascensão de Hitler é uma dessas).

A crise dos anos 30, teria ela constituído, em um primeiro momento, um golpe para o mundo ocidental, para em seguida favorecer a libertação da África? Teria ela sido uma catástrofe para o capitalismo ocidental mas, posteriormente, um benefício para as colônias? Se assim for, quais seriam os termos exatos desta equação? De que modo a Europa se teria ulteriormente humanizado? Sob quais circunstâncias a África teria ela se tornado mais pan -africana? Algumas dentre essas questões serão esclarecidas nos capítulos a elas consagrados.

Mas, se cada grande crise mundial é, por definição, também uma crise para a África, teríamos nós chegado a um estádio tal que toda grande crise africana seria, desde logo, igualmente mundial? É fato que no transcorrer do período abordado no presente volume, toda convulsão violenta advinda à África tende a adquirir um caráter mais amplamente internacional. Nós analisaremos com deta- lhes, nos capítulos pertinentes, a globalização da crise no Congo -Léopoldville, no início dos anos 60, acontecimentos marcados pela morte violenta de seus principais protagonistas políticos, Patrice Lumumba e Dag Hammarskjöld. Cerca de vinte anos mais tarde, a crise no Chade teve uma internacionalização crescente, implicando numerosos países nos planos diplomático ou militar. Seria também preciso relembrar as guerras de libertação na África Meridional, todas caracterizadas por um forte componente internacional. É evidente que a África participa pouco ou não de forma relevante em todos os grandes acontecimen- tos mundiais, e o resto do mundo participa um pouco apenas de todo drama tipicamente africano.

A Guerra de Suez, em 1956, apresenta maior dificuldade à classificação. Seria esse um conflito de envergadura mundial que tomou o solo africano como palco de operações? Ou antes, um conflito africano que se globalizou? Nacionalizando o Canal de Suez, Gamal ´Abd al -Nasser, pôs em ação no norte as forças das potências imperiais e, no sul, as forças da libertação. A crise de Suez aparecerá

neste volume como um dos mais marcantes casos nos quais o mundo e o destino da África estiveram ligados.

Se neste volume damos uma atenção toda especial à internacionalização da Guerra de Suez, em 1956, bem como à internacionalização da crise no Congo, de 1960 a 1965, também diremos, a propósito da guerra civil da Nigéria, tratar- -se de um conflito globalizado em igual graduação, ainda que de modo distinto. A guerra de Biafra constituiu -se perfeitamente em “uma guerra mundial em miniatura”, salvo pela não intervenção do fator nuclear. O apoio dado pela França a Biafra era contrabalanceado pelo apoio dos britânicos à Nigéria federal; a ajuda material oferecida por Israel a Biafra tinha como contrapartida a pre- sença dos pilotos cedidos pelo Egito à aviação federal; e o apoio da África do Sul e dos rodesianos brancos a Biafra opunha -se à atitude da Organização pela Unidade Africana, favorável à manutenção da integridade territorial da Nigéria. Até mesmo os chineses intervieram em favor de Biafra para contrabalançar o apoio dado pelos soviéticos à Nigéria. Com efeito, o reforço da intervenção sovi- ética em favor do campo federal nigeriano coincidiu com a intervenção soviética na Tchecoslováquia em prol da manutenção da coalizão do bloco socialista. O “segundo mundo” do socialismo e o terceiro mundo do subdesenvolvimento estavam ambos solidamente contidos na doutrina brejneviana do internaciona- lismo proletário.

Num primeiro momento, o governo tcheco obedeceu a Moscou, que lhe prescrevia fornecer caças de reação Dauphin e outros armamentos aos nigeria- nos. Mas, o regime liberal de Dubcek proibiu, em maio de 1968, toda venda de armamentos à Nigéria. Três meses mais tarde, as forças do Pacto de Varsóvia invadiam a Tchecoslováquia e a interdição da venda dos Dauphin ao campo federal fora extinta.

Nem a invasão do Centro -Oeste por Ojukwu nem tampouco o contra- -ataque da Nigéria federal constituíram as motivações para a escalada do apoio soviético à Nigéria. Aos olhos dos russos, a defesa do socialismo no “segundo mundo” estava, desde logo, indissociavelmente ligada à defesa da unidade nacio- nal no terceiro mundo, do Vietnã até a Nigéria.

Entretanto, ainda que a guerra civil na Nigéria tenha podido configurar uma “guerra mundial em miniatura”, nós sabemos que sua última fronteira foi o aeródromo de Uli.

Há que se lembrar que houve um tempo em que o sol jamais se punha sobre o Império britânico, espalhado por todos os fusos horários do planeta. Mas Biafra, apesar do sol nascente de sua bandeira, foi uma república sobre a qual o sol não se levantava jamais verdadeiramente, uma república que morreu antes da aurora

de sua existência, apesar do aeródromo de Uli e das implicações internacionais do conflito. Sua história demonstrou que a África estava incorporada ao mundo mais vasto das rivalidades planetárias.

Mostrou também que a identidade africana, nascida da humilhação racial e da dominação estrangeira, não podia ser senão frágil e incerta. Sob o choque do colonialismo e do imperialismo, os africanos haviam tomado consciência do fato de representarem uma unidade diante dos opressores ocidentais. Contudo, uma solidariedade africana perene não podia fundar -se somente na experiência comum da exploração. Unir -se contra o opressor estrangeiro, era uma coisa; outra coisa, porém, era unir -se para pôr em marcha o desenvolvimento interno. Os primórdios desse período da história provaram a eficácia dos africanos em se unir para conquistar sua libertação, mas a experiência mostrou posteriormente que eles tinham muita dificuldade para se colocarem como um todo único, com vistas ao desenvolvimento político e econômico. Se examinarmos mais proximamente essa dialética do pan -africanismo de libertação (essencialmente vitorioso) ou do pan -africanismo de integração e de desenvolvimento (ainda, no essencial, um sonho inatingível), constatamos que a dinâmica das relações entre a identidade africana e o desenvolvimento da África situa -se inteiramente, na época considerada, no quadro da política subjacente ao pan -africanismo. Este volume constitui, em parte, uma introdução a esse processo.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 41-44)