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A revolução e o reino político

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 170-175)

A possível dissolução da aliança entre racismo e capitalismo na África do Sul apresenta -se como a característica central do período atual. Capitalismo e

apartheid estariam eles em vias de tornarem -se incompatíveis? Embora o apar- theid possa não derivar da ruptura da sua aliança, o capitalismo na África do Sul

é perfeitamente capaz, por sua vez, de manter -se intacto uma vez terminada a luta. O reino político provavelmente não conheceria o socialismo.

Se é notório que assistimos, desde 1980 na África do Sul, aos primórdios de uma revolução em pleno nascimento, quanto tempo faltar -nos -ia para alcançar a maturidade? Quando a vitória consumar -se -ia?

Os otimistas não hesitarão em destacar semelhanças com a revolução etí- ope de 1974 ou com a revolução iraniana de 1979, ambas iniciadas por meio de manifestações de rua e desenvolvidas até o sucesso total. O Irã e a Etiópia pré -revolucionários viviam, um à imagem do outro, sob a égide de uma aliança entre um regime interno feudal e o capitalismo internacional. Embora os dois regimes vigentes no Irã e na Etiópia estivessem estabelecidos há séculos e mais séculos, eles foram, todavia, derrubados após poucos meses de manifestações. A aliança entre o feudalismo interior e o capitalismo internacional esvair -se -ia rapidamente.

O apartheid certamente resistiria durante período maior comparativamente aos regimes do xá e de Haïlé Sélassié mas, a supremacia racial tampouco é

invencível. Este sistema seria derrubado, desta feita não sob a pressão das ruas ou pela intervenção externa de exércitos africanos. Aqui somente uma luta inter- namente organizada poria termo ao apartheid. Os exércitos africanos susceptíveis de intervirem do exterior qualificam -se indubitavelmente pela organização, entretanto, por definição, eles não fundariam sua ação com base no interior. As manifestações de rua nas cidades da África do Sul, por sua vez, ainda não consti- tuem uma forma de luta organizada. Estados africanos podem apoiar, alimentar e armar os membros de uma frente interna de libertação, todavia, na ausência de uma guerrilha interna organizada, com os seus combatentes e sabotadores, a vitória não seria conquistada.

Sanções econômicas internacionais poderiam provocar a mudança decisiva? Falta -nos distinguir as sanções ou o boicote de natureza expressiva e as sanções ou o boicote de caráter instrumental. O boicote expressivo é um julgamento moral; o boicote instrumental pretende -se uma ferramenta política. As sanções internacionais não se desdobrariam, isoladamente, no estabelecimento de um sistema ancorado no sufrágio universal. Os boicotes expressivos tendem a elevar o moral dos oprimidos, os boicotes instrumentais do Ocidente podem incitar o regime a liberalizar -se mas, não a ponto de instaurar um sistema realmente democrático. Conduzida internamente, a luta armada é, portanto, convocada a compor o núcleo da revolução.

E as armas nucleares da África do Sul? Não protegeriam elas o regime do

apartheid? Há um quarto de século, Kwame Nkrumah advertia a África sobre

duas espadas de Damoclès, suspensas sobre a sua cabeça: o racismo, por um lado e a arma nuclear em mãos hostis, por outro. À época, os franceses testa- vam as suas armas nucleares no Saara. O norte da África sofria, portanto, uma profanação nuclear e o sul, uma violação racial. Posteriormente, a França ajudou Israel a dominar os seus próprios meios nucleares, em Demona, e Israel, por sua vez colaborou para dotar a África do Sul da arma nuclear. Mas, o armamento nuclear disponível ao regime poderia mudar algo quanto ao futuro reservado ao apartheid? A resposta é: “Não” ou, mais precisamente: “Não, ao menos, com relevância.”

A África do Sul pode utilizar seu estatuto de potência nuclear para intimidar Estados vizinhos ou dissuadir países como a Nigéria mas, ela não pode empregar as suas armas nucleares nas ruas de Soweto. O emprego interno da arma nuclear sul -africana desencadearia um processo que compõe um dos dois pesadelos do regime, não o crescimento contínuo da população negra mas, a correlata partida em massa dos brancos.

Conquanto o apartheid não possa ser salvo pela arma nuclear, sê -lo -ia através de sua aliança com o capitalismo? A bem da verdade, esta aliança encontra -se atualmente muito comprometida. No momento em que o racismo desfavo- rece em demasia o funcionamento das leis da oferta e da procura e quando o racismo econômico perde a sua eficácia, o capitalismo tende a se sentir traído. Foi o que aconteceu na época do tráfico dos escravos. Durante certo tempo, o capitalismo assentou a sua prosperidade sobre a escravatura, em seguida, con- comitantemente ao aumento da eficácia das técnicas, o recurso a uma mão de obra servil justificou -se de menos em menos em relação ao trabalho assalariado. A Grã -Bretanha, de principal potência escravista no século XVIII, tornou -se assim a principal potência abolicionista do século XIX. Outrossim, a aliança entre o capitalismo e o apartheid justificara -se − embora de forma míope − no plano econômico, inclusive atualmente. Se hoje ela se encontra comprometida, é porque o capitalismo poderia tirar proveito da abolição do apartheid.

Primeiramente, o poder de compra dos negros poderia doravante elevar -se em proporções espetaculares, caso o sistema se tornasse, por pouco que fosse, mais equitativo. Em segundo lugar, o nível de competência dos negros melhorou, permitindo, dessa forma, o emprego das forças produtivas com maior eficácia que outrora. Em terceiro plano, uma melhoria do sistema de educação e de formação dos negros poderia transformar em pouco tempo a África do Sul em uma espécie de Austrália negra − um país rico e fortemente industrializado. Em quarto nível, a oposição ao apartheid, cria atualmente uma atmosfera de instabi- lidade malsã e inapropriada para o capitalismo. Finalmente, a instabilidade, por sua vez, engendra a incerteza; ora, o investimento capitalista exige uma relativa previsibilidade do porvir.

Ademais, a escalada da repressão na África do Sul escandaliza importantes frações da opinião pública ocidental, desencadeando a pressão destes grupos sobre as empresas comerciais e as redes de lojas. Entre as grandes sociedades ocidentais que retiraram os seus investimentos figuram notadamente: a IBM, a General Motors, o Barclays Bank, a Coca -Cola e a Kodak. Anteriormente a elas, numerosas instituições haviam fechado as suas contas junto ao Barclays Bank, seguindo, nesta ocorrência, o exemplo oferecido pela Nigéria há alguns anos.

Enfim, os meios empresariais receiam que uma luta prolongada contra o racismo degenere em um combate contra o capitalismo, em consequência de uma radicalização do movimento ativista (à imagem do ocorrido em Angola, em Moçambique e, em certa medida, no Zimbábue). Cedo ou tarde, o capita- lismo deverá reduzir as suas perdas − e romper os seus elos com o apartheid. Em situação de plena evolução, ele deve proteger os seus interesses.

Mas qual será o destino do capitalismo na África do Sul após a débâcle do

apartheid? Estaríamos nós seguros que o socialismo viria coroar o reino político?

Tanto na melhor quanto na pior das hipóteses, uma vitória contra o apartheid não significaria necessariamente uma vitória contra o capitalismo. Uma vez atin- gido certo grau de desenvolvimento, o capitalismo torna -se quase irreversível.

Karl Marx pensava que o capitalismo correspondia a um estádio de desenvol- vimento anterior ao socialismo: quando o desenvolvimento capitalista atingisse o seu apogeu, ele desembocaria em uma revolução socialista. Mas, a história recente mostra que, ultrapassado certo grau de desenvolvimento capitalista, uma revolução comunista torna -se pouco a pouco impossível − ao menos quando imposta externamente. Os Estados Unidos e a maioria dos países da Europa ocidental alcançaram este nível.

Mas, em razão de quais fatores uma revolução comunista seria impossível em um país industrialmente avançado de tipo capitalista? As previsões de Marx, no que diz respeito ao aumento contínuo do peso social do proletariado, não se concretizaram nos países do capitalismo central, pelo contrário, foi justamente a burguesia que teve o seu peso social relativo acrescido. Do mesmo modo, a pauperização crescente prevista por Marx tampouco se reproduziu. Os traba- lhadores não se tornaram mais pobres mas, antes, atingiram certa prosperi- dade; no tocante aos pobres, eles sequer trabalham (quando muito formam um “lumpemproletariado”). Os trabalhadores ocidentais têm muito mais a perder além de suas “correntes”: eles possuem o seu carro, as suas ações, o seu aparelho de televisão, o seu barco... A consciência de classe não sobreveio à consciência nacional; em oposição, o anticomunismo está ligado ao patriotismo da classe operária ocidental. Marx subestimou a capacidade do capitalismo em cooptar, converter e corromper outrem para obter apoio, aptidão perfeitamente intrínseca a um capitalismo próspero.

A África do Sul teria alcançado este estádio irreversível do capitalismo, tal como ocorreu na maioria dos países ocidentais? A resposta provável é negativa. Além disso, governada por negros, seria ela capaz de prosseguir o seu caminho, tanto como um sistema capitalista (sem o racismo) quanto engajada em uma via socialista de desenvolvimento.

Haveria então alguma esperança de assistirmos ao coroamento do reino político sul -africano pelo socialismo? Em caso afirmativo, quais seriam os fatores que predisporiam a África do Sul ao socialismo após a ascensão da maioria negra ao poder? Primeiramente, uma radicalização resultante de uma luta prolongada poderia levar a África do Sul negra rumo ao socialismo. Em segundo lugar, a polarização das classes advinda após a polarização racial poderia contribuir para

a socialização da África do Sul do pós -apartheid. Terceiramente, a forte urbaniza- ção do país é um fator determinante para a instauração do socialismo moderno. Em quarto lugar, a existência de um importante proletariado negro, embora o aburguesamento esteja estabelecido, pode favorecer a edificação do socialismo. Em quinto plano, esta concepção, própria ao homem branco e segundo a qual cada nacionalista negro seria um marxista, poderia concretizar -se com o passar do tempo. Quanto à bomba atômica, ela poderia transformar uma África do Sul governada por negros na primeira potência negra munida de um armamento nuclear antes do fim do século XX.

Em nenhum outro lugar da África, o reino político pode receber tanto em troca quanto na África do Sul. A potente industrialização criada pela mão de obra negra e pela técnica ocidental, as enormes reservas minerais reservadas ao país pela natureza, a disciplina forjada na longa luta dos africanos pela justiça e as novas vantagens que lhe conferem o estatuto de potência nuclear constituem, com efeito, fatores que reforçam consideravelmente o significado de um reino político sul -africano cujo futuro estaria em mãos da maioria antes do final deste século.

O dia em que toda a riqueza da África estiver efetivamente sob a autoridade soberana da África − da Cidade do Cabo ao Cairo, de Dar es -Salaam a Dakar − poder -se -á enfim julgar com todo rigor a exortação imperecível de Kwame Nkrumah: “Procurai primeiramente o reino político e todo o restante vos será dado em suplemento.”

C A P Í T U L O 6

No fim da Segunda Guerra Mundial, nenhum país da região escapava a um controle político e militar exercido por estrangeiros. Inclusive nos Estados ofi- cialmente independentes como a Etiópia e o Egito, uma forte presença militar britânica influía na vida política. O desaparecimento da Itália na qualidade de potência colonial é outra característica do pós -guerra. Todas as suas antigas colônias − a Somália, a Eritreia e a Líbia − foram conquistadas durante a guerra pelos Aliados e permaneceram sob a ocupação britânica, ou francesa no caso do Fezzan líbio. Os seus destinos seriam necessariamente decididos em âmbito internacional.

o Magreb

Embora a derrota de 1940 tenha seriamente enfraquecido a autoridade da França nos três países do Magreb sob o seu controle, sem exceção, os gover- nos franceses do pós -guerra fizeram tudo ao seu alcance para restabelecê -la. Inclusive chegaram ao ponto de implantar um regime caracterizado por uma opressão muito forte, após uma guerra supostamente conduzida com o intuito de liberar os povos da dominação estrangeira. Esta atitude rígida conduziu à desastrosa guerra colonial na Indochina francesa (no território do atual Vietnã) cuja população considerava totalmente injusto que os franceses quisessem reo-

A África setentrional e o

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