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A soberania e as mulheres

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 48-53)

No capítulo 19, consagrado ao desenvolvimento da literatura africana moderna, faz -se menção especial ao poema de Léopold Sédar Senghor, Femme

nue, femme noire [Mulher nua, mulher negra]. Nesse poema, a África é uma

mulher “vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!”.

Entretanto, poucos capítulos deste volume se empenham expressamente em descrever em que medida as mulheres da África fizeram a história africana. Geralmente não chamou suficientemente à atenção o papel que desempenharam na luta pela independência. Sendo assim, há historiadores, aliás conscientes do papel das mulheres, que preferem não fazer referência ao sexo dos protagonistas. A maioria dos colaboradores desta obra relata a luta pela independência em ter- mos de povo, preferivelmente a empregar terminologia referente a mulheres ou homens. Infelizmente, ao não mencionar o sexo dos atores, a narrativa conduz o público, em razão de um reflexo cultural precipitado, a presumir tendencial- mente que todos os atores foram homens. Falsa hipótese, bem entendido.

A história da soberania, tal como é relatada neste volume, organiza -se em três fases: a fase da luta pela soberania (o combate pela independência); a fase do exercício da soberania (o uso do poder pelo Estado); e a fase da representa- ção da soberania no estrangeiro (a simbólica das relações de Estado a Estado). Esperamos mostrar que as mulheres africanas desempenharam um papel par- ticularmente importante na primeira e na última fases. Como combatentes, as mulheres africanas tomaram parte na cruzada pela autonomia do continente. Na qualidade de diplomatas, foram, em seguida, as representantes da soberania que elas haviam ajudado à África adquirir no cenário mundial. Mas, no que concerne à detenção do poder, parece que elas se tenham situado na periferia, muito mais que no centro da ação política. Examinemos, passo a passo, cada uma dessas três fases, começando com a luta pela independência.

Embora o slogan do nacionalismo africano, no curso das últimas décadas do colonialismo, tenha sido por vezes expresso em termos sexistas – “um homem, uma voz” –, as mulheres africanas não tardaram a aprender a se servir do voto como elemento do processo de libertação. O corpo -a -corpo eleitoral contra o regime de Mor Muzorewa, no Zimbábue, nos anos 1979 -1980, foi em grande

parte o feito das mulheres. Se a comunidade dos colonos brancos foi tomada de surpresa pelos resultados da eleição, isso ocorreu, entre outras razões, porque a maior parte dos europeus havia subestimado o ativismo político das mulheres africanas, neste caso de “domésticas” que se visitavam de uma cozinha à outra.

Mais de um quarto de século antes, no Quênia colonial, as mulheres haviam desempenhado um papel diferente. É quase certo que a luta dos “Mau Mau” no Quênia teria fracassado muito mais cedo, se as mulheres kikuyu, meru e embu da província central não tivessem arriscado suas vidas para fazer chegar comida e informações aos homens combatentes nas florestas de Aberdaire.

Durante a guerra de independência da Argélia, aconteceu frequentemente que a sorte de uma operação nacionalista dependesse de uma mulher revolu- cionária, vestida de véus dos trajes islâmicos tradicionais, capaz de se infiltrar nas linhas inimigas. Se acreditarmos nas narrativas de Frantz Fanon, mulheres muçulmanas dissimuladas sob seus véus figuraram entre os carregadores de gra- nadas que desempenharam papel decisivo em certas fases da guerrilha urbana na Argélia8.

De maneira geral, as mulheres participaram em maior número na luta de libertação levada a cabo no interior dos países africanos em estado de guerra, muito mais que na luta travada no exílio. Na África Austral, o fato de levar a luta no próprio interior dos Estados contribuiu para a sua intensificação e esses dois fenômenos foram acompanhados por uma participação mais expressiva das mulheres, pelo menos em papéis auxiliares e às vezes até na linha do fogo. No Zimbábue a força de libertação da ZANU (Zimbabwe African National Union) contava, sem dúvida, com mais mulheres no front que a força da ZAPU (Zimbabwe African People’s Union).

É mais delicado determinar em que medida as proporções de homens e mulheres nas fileiras da ZANU e da ZAPU são imputáveis às diferenças cultu- rais existentes entre os shona (etnia de Robert Mugabe) e os ndebele (etnia de Joshua Nkomo). A tradição guerreira dos ndebele (ligada à cultura zulu) seria mais puramente masculina que aquela referente aos shona? Essa diferença afetou o comportamento das mulheres e quantas dentre essas tomaram parte, nos dois campos, na luta armada? Este volume não traz respostas, tanto quanto é verdade que a história contemporânea nos apresenta questões mais do que resolve. Mas, ao menos, o tema relativo à tradição guerreira foi tratado nos capítulos 5 e 16. Ao que tudo indica, poderíamos também adiantar uma explicação ideológica para o fato de as mulheres terem sido mais ativas na ZANLA (força da ZANU), que na ZIPRA (força da ZAPU). O movimento de Robert Mugabe estava, com efeito, mais à esquerda que aquele referente à Joshua Nkomo9.

8 Ver F. FANON, 1963.

9 O autor inspira -se aqui no trabalho feito in loco durante uma emissão especial televisiva da BBC, Sear-

No chifre da África, as mulheres somalis, islamizadas, foram aparentemente mais sensíveis ao papel da mulher combatente que as mulheres amhara, de reli- gião cristã, fato esse talvez digno de surpresa. Não há, em Mogadíscio, túmulo do soldado desconhecido mas, pode -se encontrar aí uma estátua da guerreira mártir: uma mulher mortalmente ferida que continua a lutar.

Correm lendas, em Mogadíscio, relatando as proezas de Hawa Ismen ‘Ali, que se opôs à volta do colonialismo italiano após a Segunda Guerra Mundial e pagou com sua própria vida em 1948. Os somali, povo africano de sensibilidade particularmente poética, cantaram à profusão o martírio de Hawa Ismen ‘Ali, constituída em Joana d’Arc de seu país. Ela é o símbolo de um patriotismo sagrado de face feminina10.

Relativamente ao conjunto do mundo muçulmano, as mulheres somalis são indubitavelmente mais “liberadas” que a média. Quando comparadas ao con- junto do mundo cristão, as mulheres etíopes são, talvez, menos “liberadas” que a média. Mas, por isso, se pode dizer que em termos absolutos as primeiras seriam mais “liberadas” que as segundas? A questão é mais difícil de apreciar quando recorremos a critérios absolutos. Nas duas sociedades, o grau de participação das mulheres na vida pública é provavelmente da mesma ordem. É possível também que no início dos anos 80 tenha havido mais mulheres somalis em uniforme militar que mulheres etíopes. Em todo caso, parece verossímil que nessa época a Somália tenha estado mais disposta que a Etiópia a convocar soldados dos dois sexos11.

Na África do Sul, as mulheres tiveram um importante papel na luta con- tra o racismo. Elas participaram dos movimentos de desobediência civil logo que Mahatma Gandhi, em 1906, começou sua ação nesse sentido em Durban. Houve mulheres entre os mártires de Sharpeville (1960) e de Soweto (1976). Nas primeiras fileiras dentre aqueles que combatiam o apartheid, Winnie Man- dela carregou a flâmula da resistência, encarnada por seu marido encarcerado durante mais de um quarto de século. Durante trinta e seis anos, Helen Suzman lutou contra o apartheid no Parlamento e só deixou a arena em 1989. Numerosos movimentos de mulheres combateram o racismo, do histórico movimento do Black Sash à aliança multirracial WAR (Women Against Repression) que em 1989 entrou em oposição aberta ao presidente F. W. De Klerk.

10 Ver igualmente o capítulo 6 do presente volume.

11 O autor inspira -se aqui no trabalho realizado in loco para a preparação de um seriado televisivo da BBC/ PBS, 1986.

É necessário distinguir claramente essas ações daquelas representadas pelas mulheres em armas do ANC (African National Congress) e do PAC (Pan- -African Congress), que tiveram precedentes no seio da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) na época da luta contra os portugueses.

Em Angola, no regime colonial, as mulheres desempenharam papéis sensi- velmente diferentes de acordo com o movimento de libertação a que pertenciam – MPLA, FNLA e UNITA12. O MPLA era ao mesmo tempo o movimento

mais multirracial e aquele cujos batalhões eram mais mistos. Seu marxismo- -leninismo e seu caráter multirracial favoreceram a participação das mulheres nos combates.

O FNLA era, sob alguns aspectos, o mais anacrônico dos três movimentos. Ele se servia dos laços de matrimônio para forjar alianças militares, começando pelos próprios laços familiares de Roberto Holden com a entourage do presidente Mobutu Sese Seko e os Bakongo.

Jonas Savimbi encontrava -se mais à esquerda na época da luta contra os portugueses do que depois da independência de Angola. Em outros termos, Savimbi e a UNITA voltaram -se para a direita quando seu inimigo deixou de ser o imperialismo português para tornar -se o MPLA, sustentado pela URSS e por Cuba. Provocando uma dependência em relação à África do Sul, essa virada à direita tomou um caráter perigosamente reacionário. Savimbi tornou -se praticamente um aliado do apartheid.

Entretanto, por uma curiosa ironia do destino, quanto mais Savimbi se orien- tava politicamente à direita, mais era progressista com as mulheres e mais lhes confiava responsabilidades. A Angola pós -colonial, reduzindo as possibilidades de Savimbi em ganhar aliados masculinos nos grupos étnicos distantes, tornava -o mais dependente do apoio dos membros – homens e mulheres – de sua própria etnia, os ovimbundu. A concentração étnica que caracterizava seus partidários levava a uma abordagem mais mista do combate. Também seu novo estatuto internacional talvez explique a razão pela qual Savimbi se tenha mostrado mais progressista com as mulheres. Seja como for, após a independência, a UNITA nomeou mais mulheres para postos de responsabilidade que anteriormente.

No final das contas, entretanto, as mulheres foram em Angola, como alhures na África, as heroínas desconhecidas da luta pela liberdade e contribuíram para o sucesso da empreitada muito mais que o geralmente se tem destacado.

12 MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola); FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola); UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola).

No curso desse período da história, a luta pela liberdade foi, em si, uma experiência libertadora e, antes mesmo do momento da independência, sua meta oficial. Quisemos mostrar que, nesse combate pela soberania, as mulheres foram, à sua maneira, guerreiras. Retornemos agora ao outro elemento da equação, o momento em que, adquirida a soberania, algumas mulheres se tornaram a voz da África no cenário internacional.

Não esqueçamos que, por exemplo, Uganda nomeou uma mulher para o ministério das relações exteriores antes mesmo da maior parte dos países ociden- tais, inclusive os Estados Unidos, a Grã -Bretanha e a França, nos quais nunca se havia confiado esse cargo a uma mulher, na época em que aquela que havia sido Elizabeth de Toro, Elizabeth Bagaya Nyabongo, se tornara a voz de Uganda no concerto das nações. Não esqueçamos, tampouco, que quando a liberiana Angie E. Brooks foi eleita presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1969, nenhuma mulher ocidental tivera ainda ascendido a uma tão elevada função no seio do sistema das Nações Unidas13.

Nos anos 70 e 80, houve em Paris mais mulheres oficialmente encarregadas de representar a África que embaixadoras de qualquer outra região externa à Europa. Dentre os países africanos que contavam com influentes diplomatas no cargo em Paris, nos anos 80, podemos citar: Gana, Libéria, República Unida da Tanzânia, Serra Leoa e Uganda. Elizabeth Bagaya Nyabongo, antes ministra das relações exteriores, teria sido inclusive a segunda mulher embaixadora de Uganda na França, durante a presidência de Yoweri Museveni, se ela não tivesse solicitado sua demissão do corpo diplomático em 1988. Nós retomaremos esse tema no capítulo 30.

O Congresso Nacional Africano (CNA), da África do Sul, também foi repre- sentado na França por uma mulher, Dulcie September. Ela também representava a organização junto à UNESCO, da Suíça e de Luxemburgo, até o dia em que ela pagou com sua vida pelo seu patriotismo, pois foi misteriosamente assassi- nada em 1988, na cidade de Paris.

Em tais circunstâncias, o poema de Léopold Sédar Senghor, que opera a fusão da africanidade e da feminilidade, toma ares particularmente contunden- tes. A mártir sul -africana de Paris tornou -se um símbolo de coragem para todo continente. O fato de ela ter nascido precisamente em 1935 faz de sua vida uma perfeita ilustração do período da história de que trata este volume.

Em certo sentido, porém, a mártir Dulcie September põe também em evi- dência a luta da África para reumanizar “o homem branco”. Ela sacrificou sua vida nessa cruzada. Trata -se desse tema, relativo à reumanização dos europeus pela África, à qual precisamos agora retornar.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 48-53)