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A África libertadora da Europa

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 53-59)

A historiografia moderna tende a ver na África um continente passivo, um receptáculo de influências, bem mais que uma fonte. Alguns não temeram ofender simultaneamente as mulheres e a África, chegando ao ponto até de denominar esta última como “o continente -mulher”, em alusão a uma suposta passividade e penetrabilidade. Estava -se aqui longe da feminilização positiva da África proposta por Senghor.

Ora, um acontecimento que um historiador pode considerar como revelador da subordinação da África à influência do mundo exterior, também, num outro ponto de vista, pode ser enfocado como um exemplo do impacto da África sobre esse mundo exterior. Quanto a nós, buscaremos no presente volume mostrar a África enquanto continente ativo.

As últimas décadas viram afirmar -se o papel da África no âmbito da rede- finição ética do racismo no seio do sistema mundial. Mais que qualquer outra região do mundo, a África contribuiu no sentido de fazer do racismo, que asso- lava tal ou qual país, uma questão de consciência internacional. Sob a pressão dos Estados africanos, tornou -se cada vez menos possível, para a República Sul- -Africana, pretender que o apartheid fosse uma questão pertencente ao seu sis- tema jurídico nacional. Mostraremos, neste volume, como se internacionalizou a luta contra o racismo institucionalizado, sob a pressão em massa exercida pelos dirigentes africanos antes da independência e, posteriormente, pelos Estados da África pós -colonial. As pessoas de ascendência africana, que viviam nos Estados Unidos, não tardaram nem um pouco em engajar -se nessa luta: veremos, nos capítulos pertinentes, como também esses afro -americanos desempenharam um papel ativo para desencadear a transformação das relações raciais no continente americano.

Surgirá também, no decorrer do presente volume, a contribuição decisiva da África na retirada da legitimidade do colonialismo, aos olhos da consciência moral internacional e, cada vez mais, aos olhos do direito das nações. Durante séculos, a arte de governar e a história diplomática dos Estados europeus justificaram que uma potência europeia colonizasse e submetesse às suas leis uma sociedade não

ocidental. Na África, na Ásia e nas duas Américas, milhões de homens tombaram assim sob o golpe da “soberania” europeia, que o direito internacional reconhecia e legitimava. Afinal de contas, o próprio direito internacional não era filho da história diplomática e da arte de governar dos Estados europeus? Ele não podia senão estar impregnado das presunções e dos preconceitos dos europeus, bem como de seus valores e normas. Foram necessárias as lutas conjuntas dos povos africanos e asiáticos, para que fossem postas em questão estas premissas arrogantes e etnocêntricas do direito internacional. Se era injusto que a Alemanha de Hitler ocupasse a Polônia ou a Bélgica, como se poderia justificar a ocupação do vale do Nilo pela Grã -Bretanha de Disraeli? A África e a Ásia provocaram a revisão das regras internacionais de conduta, fato ocorrido na segunda metade do século XX. O Ocidente foi incitado a reumanizar -se.

Veremos ainda neste volume que as lutas da África tiveram repercussões bem mais amplas sobre nossa época. No momento em que a Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina combatia pela independência, o desafio não apenas o futuro da Argélia. Tratava -se também do futuro da Europa. A IVa República

francesa foi posta diante de uma dura prova pelo conflito argelino. Em 1958, a França encontrava -se à beira de uma guerra civil. A IVa República logo desa-

baria, sob a pressão das forças a que estava submetida. Um só homem, Charles De Gaulle, poderia salvar a França de um conflito nacional generalizado. Ele voltou ao poder em Paris, exigiu uma nova constituição, e foi assim que surgiu a Va República francesa. A história posterior da França teria sido totalmente

diferente se a guerra da Argélia não tivesse solapado a IVa República e catapul-

tado novamente o general De Gaulle à cabeça do poder político.

Além do mais, uma França forte, governada por De Gaulle, revelou -se, um fator vital para o futuro da Comunidade Econômica Europeia (CEE), em seus primeiros anos: De Gaulle presidiu os eventos desse período de formação do Mercado Comum Europeu. A visão que ele tinha da grandeza da França pro- vocou também uma redefinição do papel desse país no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a supressão das bases militares dos Estados Unidos estabelecidas na França. Paris decidiu estar politicamente inte- grada à Aliança Atlântica, ao invés de permanecer membro de pleno direito de sua própria organização militar.

Todas essas mudanças, de cabal importância, intervieram na história do mundo ocidental e tiveram como elemento catalisador o combate travado pelos nacio- nalistas argelinos em prol da libertação de seu país. Enquanto esses combatentes africanos se dedicavam a transformar o destino de seu próprio país, eles também mudavam, sem talvez se darem conta naquele momento, o curso da história do

figura 1.3 Em 11 de dezembro de 1960, no bairro de Salembier, em Alger, jovens manifestantes levantam pela primeira vez a bandeira verde e branca da Frente de Libertação Nacional (FLN). (Foto: Magnum, Paris.)

mundo ocidental. São traços positivos dessa ordem que vão delinear a perspectiva deste volume.

Os nacionalistas africanos das colônias portuguesas de Angola, de Moçam- bique, da Guiné -Bissau, das ilhas do Cabo Verde e das ilhas de São Tomé e Príncipe, estavam também chamados a modificar o curso da própria história de Portugal. Essas são as tensões criadas pelas guerras anticoloniais que se desen- rolavam nessas dependências portuguesas, desembocando, finalmente, no golpe militar de Estado ocorrido em abril de 1974 em Portugal, com o qual teve fim a era do fascismo na história moderna de Portugal. Os nacionalistas africanos de Angola, de Moçambique e da Guiné -Bissau contribuíram para o surgimento da democracia em Portugal, bem como para a modernização política do país. A cultura política portuguesa saiu reumanizada.

No caso relativo ao impacto da Argélia sobre a história da França, é instrutivo relembrar a atitude adotada por Karl Marx e Friedrich Engels ante a consolida- ção, pela França, de sua influência sobre a Argélia nos anos 40 do século XIX. Esses dois pensadores europeus consideravam a colonização francesa da Argélia como sendo, em grande medida, um processo civilizatório. Assim falava Engels: “...a conquista da Argélia já forçou os beys de Túnis e de Trípoli, e inclusive o imperador do Marrocos, a se engajarem na via da civilização [...]. E, sobretudo, o burguês moderno – com a civilização, a indústria e as luzes, pelo menos relativas, de que está cercado – será preferível ao senhor feudal ou ao bandido salteador, bem como ao bárbaro estado social ao qual pertencem14.”

Se os franceses, em meados do século XIX, contribuíram para encetar o processo de “modernização” da Argélia, os argelinos, em meados do século XX, desencadearam, por sua vez, o processo de estabilização da França. Uma antiga dívida foi acertada no momento em que a Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina, origem do desaparecimento da IVa República francesa e de sua insta-

bilidade, contribuiu para o surgimento de uma Va República de contornos mais

sólidos. Destituída de seu império, a França foi reumanizada.

A fase seguinte, para a África em seu conjunto, consiste em subtrair -se à influência do neocolonialismo ocidental. Cabe -lhe, para isso, reduzir o poder sobre ela exercido pelo mundo ocidental e aumentar seu próprio poder sobre esse mesmo mundo ocidental. Alguns dos capítulos consagrados neste volume à economia, esforçar -se -ão para expor claramente essa estratégia de contrapoder.

Na África Ocidental, o rival mais natural da Nigéria não é a Líbia mas, a França. A Nigéria é, de longe, o maior país da região; com cem milhões de habitantes em 1980, sua população ultrapassa aquela do conjunto nos territórios da antiga África -Ocidental Francesa (AOF). Ela deveria naturalmente tomar a vanguarda na África Ocidental. Ademais, uma influência imensa continua aí a ser exercida por funcionários e homens de negócios vindos da França.

A análise da questão relativa à dependência, desenvolvida no presente volume, mostra a necessidade de a África Ocidental reduzir a influência financeira e eco- nômica francesas, pondo um freio à penetração ininterrupta da França em suas antigas colônias, nos planos cultural e educacional. A longo prazo, a Nigéria deverá encabeçar o movimento de descolonização de sua própria região.

A França provavelmente reconheceu na Nigéria um futuro rival em sua zona de influência na África Ocidental. Ela tentou sustentar a secessão de Biafra, durante a guerra civil nigeriana, de 1967 a 1970, numa fútil tentativa com vistas a provocar a desagregação da Nigéria. Tendo enfim essa tentativa fracassado, a França lançou -se em um projeto de penetração de maior envergadura nesse país, impulsionando investimentos econômicos e projetos conjuntos empreendidos com a própria Nigéria. Tornar a Nigéria tributária é para a França uma maneira de neutralizar um potencial rival. Nos anos 80, a Nigéria ainda não tomara consciência plena do desafio desse jogo.

A Grã -Bretanha apresentava -se com menor rivalidade perante à Nigéria, na África Ocidental, especialmente porque lá investira menos capital que a França, empregara muito menor quantidade de pessoal britânico e tampouco enviara qualquer tropa a suas antigas colônias. Não existia, aliás, nenhuma ligação entre a libra esterlina e qualquer uma dentre as moedas das antigas colônias britânicas, ao passo que a Banque de France por muito tempo manteve o franco CFA nas ex -colônias francesas. A influência francesa na antiga AOF ultrapassava, por- tanto, em larga escala aquela referente aos britânicos, quer seja em Gana ou na Serra Leoa, sem falar da Nigéria. A questão colocada, relativamente aos anos 90, consiste em saber se a França se desengajará da África, para passar a interessar -se preferencialmente pela recém -transformada Europa Oriental e por uma Comu- nidade Europeia cuja integração será reforçada após 1992, o que permitiria à Nigéria exercer mais facilmente, no futuro, sua influência na África Ocidental.

Se levarmos em conta dados relativos às riquezas minerais e ao potencial indus- trial, identificados neste volume, podemos estimar que a África do Sul, governada pelos negros, será muito provavelmente, como potência, o segundo grande polo da África no século XXI. Após a provável guerra racial e o inevitável desmantelamento do apartheid, os sul -africanos negros tomarão posse dos direitos a eles natural-

mente pertencentes. Eles herdarão recursos minerais de um dos mais ricos países do mundo, recursos indispensáveis ao bem -estar econômico do mundo ocidental.

Os sul -africanos também herdarão uma das economias mais industrializadas da África, criada graças ao seu próprio trabalho e ao recurso da técnica ocidental. Eles herdarão, por fim, uma infraestrutura nuclear e tornar -se -ão a primeira potência nuclear do mundo negro. Podemos, portanto, presumir que os sul- -africanos negros, que provavelmente foram os mais desfavorecidos do século XX, estarão junto aos mais privilegiados do século XXI, os “intocáveis negros” de hoje transformando -se nos “brâmanes negros” do futuro.

Um grande romancista branco Charles Dickens, já escrevera em outros tem- pos: “...imaginem uma longa corrente de fio ou de ouro, de espinhos ou de flores que nunca vos teria ligado, se, num dia qualquer mas memorável, o primeiro anel não se tivesse formado15.”

A África gemeu, desde há muito tempo, sob as correntes de ferro. Poderiam em breve suas correntes transformar -se em colares dourados? Esse continente conhece, há muito tempo, a queimação dos espinhos. Seria possível que o des- tino lhe reservasse, em um futuro próximo, as grinaldas de flores? Este volume oferece dados que deverão permitir avaliar essas probabilidades.

O brilho do ouro da África do Sul não deve seduzir -nos prematuramente. O esforço histórico consumado para afrouxar a corrente de ferro obteve certo sucesso mas, veremos em capítulos ulteriores que a guerra está longe de ter chegado ao seu fim. A luta continua. O anjo decaído apenas começa a se levantar. O presente volume diz respeito aos derradeiros anos da condenação política da África sob o colonialismo. Ele descreve, outrossim, a aurora da redenção as África. Lá onde a espécie humana conheceu a luz do dia, finalmente a liberdade do homem eclodirá.

No início dessa história da África, ora publicada pela UNESCO, nós vimos um continente dar à luz a espécie humana que povoaria o planeta Terra. No final dessa história, veremos esse mesmo continente mais uma vez oferecer moralmente sua humanidade à espécie que ele engendrou. Os acontecimentos dos anos decorridos desde 1935 produziram nos africanos um traumatismo que os levou a sentir, profundamente e de uma forma totalmente nova, sua própria africanidade. Mas, combatendo para preservar sua dignidade, os africanos igual- mente projetaram no resto do mundo uma onda de choque criadora de uma nova apreciação sobre a identidade planetária. Tal é a história contada nesse volume. Deixemo -la agora desenrolar -se.

15 C. DICKENS, trad. francesa de 1981, p. 72. Ver também R. SMOLLAN, 1987; D. KILLINGRAY e R. RATHBONE (orgs.), 1986.

A ÁFRICA NA DÉCADA DE

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 53-59)