• Nenhum resultado encontrado

A ciência e o método

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 49-57)

Pensar os caminhos da ciência em caixinhas cada vez mais definidas e delimi-tadas compôs um processo de ordenação das disciplinas durante a modernidade, momento em que a cientificidade acompanhada por modelos metodológicos específicos e objetivos passaram a impor uma padronização para que as áreas do conhecimento pudessem ser reconhecidas como situadas sob o “guarda-chuva”

da ciência.

Nesse sentido, a divisão compartimentalizada das disciplinas em dois gran-des blocos, teoricamente, opostos no cenário científico, se estruturou e em certo momento, passou a impor às ciências que se localizaram no campo conhecido como humanidades, a adoção de métodos objetivos de investigação científica.

Wilhelm Dilthey ciente de que a utilização de métodos das ciências naturais por parte das ciências humanas, provocaria uma mutilação à realidade histórica, empreende em um projeto de desenvolvimento de um método voltado para as ciências humanas. E, é com o propósito de contrapor pensamentos como o de August Comte e Stuart Mill, que Dilthey procura justificar uma metodologia que

4 Informação fornecida por Marialva Barbosa durante a palestra Metodologias para a comunicação, realizada em ambiente virtual no evento Conversações Eco – Pós, promovido pelo Programa de Pós-Graduação de Comunicação e Cultura da UFRJ, em 24 jun.2020.

fosse adequada às humanidades. Para tanto, procura estabelecer pontos divergentes entre os modos de cognição que buscam produzir verdades validadas e passíveis de generalizações. A hermenêutica de Schleiermacher é seu ponto de partida, mas para Dilthey o ponto crucial é que as ciências naturais necessitam de explicação (Erklären), enquanto para as humanas, a compreensão (Verstehen) deve ser o caminho. É válido, no entanto, destacar que Dilthey reconhece a interpendência entre os dois modos de cognição, entre o explicar e o compreender. Reconhecen-do ainda que a teórica oposição entre a explicação da natureza e a compreensão das humanidades não é de todo real, visto que tanto afetamos a natureza, como somos por ela afetados (SCHMIDT, 2017).

Sodré (2014) ao se perguntar sobre como “fundamentar a comunicação como um campo científico próprio”, traz à tona duas divisões tradicionais das ciências, primeiro a já mencionada entre ciências da natureza e as ciências do espírito, quando relembra a distinção feita por Dilthey, como também, coloca a posição do pragmatismo de Richard Rorty que considera uma “indistinção entre ambas”.

Este autor, coloca na mesa mais uma dicotomia, a que situaria em lados distintos as ciências sociais e as ciências humanas. No espaço investigativo das sociais os processos metodológicos são marcados por métodos experimentais, já no segundo ambiente, os métodos discursivos e interpretativos são mais comuns.

Como visto, pensar as ciências não é algo fácil. Os caminhos que escolhemos nos levam a resultados díspares. Logo pensar a comunicação ou como ciência ou como estudo cientificamente orientado é por demais complexo. Nesse sentido, faço aqui algumas escolhas partindo das ciências do espírito e começo com Arendt (2016) e Gadamer (2016), para, posteriormente, chegar em um ambiente composto por espirais de interlocução entre pensamentos e campos.

Hannah Arendt em uma de suas últimas obras, A vida do espírito, aqui já mencionada, dedica um momento a pensar ciência e senso comum tendo como ponto de partida o pensamento de Emmanuel Kant e suas distinções entre intelecto e razão, e, verdade e significado. Obviamente, não conseguiremos aqui, trazer toda a potência que Arendt imprime no livro às principais atividades do espírito:

o pensar, o querer e o julgar, mas pontuaremos, o que nos parece de relevância para o debate sobre a ciência e a comunicação.

Arendt (2016) reapresenta a questão filosófica do pensar situando que o ser (verdadeiro) e aparência (verdadeira) ou mera semblância se complementam de um lado e se diferenciam do outro, o que nesse âmbito teórico parece valer tam-bém a ciência, visto que o cientista, assim como o filósofo, tamtam-bém está sujeito ao mundo das aparências e dele necessita se afastar ainda que temporariamente, para desvendar objetos ocultos, tendo como guia a premissa kantiana de que as aparências possuem algum fundamento que não seja também apenas semblância.

A vida cotidiana é o lugar da primazia da aparência, visto que são os aparatos do ver que nos fazem existir socialmente e desse ambiente, nem escapam filósofos nem cientistas. Logo para pensar ou investigar o outro lado das aparências, ou, sua verdadeira essência, tanto um quanto outro, necessita se afastar do lugar do comum para especular e investigar, tendo em vista que as aparências nunca apenas revelam o que está em sua essência, mas também ocultam e silenciam. A Teoria dos dois mundos situada pela filósofa como “falácia” teria, portanto, algumas fissuras, visto que as “[...] aparências expõem e também protegem da exposição, e, exatamente porque se tratar do que está por trás delas, a proteção pode ser sua mais importante função” (ARENDT, 2016, p. 41), por outro lado, há que se pen-sar que o ser é essência e aparência. O protagonismo do ser sobre a aparência é bastante debatido e volta e meia sofre inversões, uma vez que as aparências que se colocaram como funções do ser, podem ao contrário, se situar em outro patamar, logo o ser poderia carregar a funcionalidade da aparência.

Entre o pensamento como atividade do espírito e a ciência existem pontos cruciais em comum, tendo o pensamento um papel importante na investigação científica, “mas é o papel de um meio em relação a um fim; o fim é determinado por uma decisão a respeito do que vale a pena conhecer, e essa decisão não pode ser científica” (ARENDT, 2016, p. 71), uma vez que o intento final produz conheci-mento ou se manifesta como cognição, ambos situados no mundo das aparências e que nunca o abandonam completamente. O cientista é, bem verdade, precisa se

ausentar do senso comum para pensar, mas o faz objetivando encontrar novos métodos que possam revelar o que está como invisível no fenômeno que observa.

Nesse sentido, a ciência é apenas um prolongamento muito refinado do raciocínio do senso comum, no qual as ilusões dos sentidos são constantemente dissipadas, como são corrigidos os erros na ciência.

O critério em ambos os casos, é a evidência que, como tal, é inerente a um mundo de aparências. E já que é da própria natureza das arências revelar e ocultar, cada correção, e cada des-ilusão – nas pa-lavras de Merleau-Ponty _, “é a perda de uma evidência, unicamente porque é a aquisição de outra evidência”. Ainda que consideremos a compreensão que a ciência tem de seu próprio empreendimento, nada garante que a nova evidência seja mais confiável do que a evidência descartada. (ARENDT, 2016, p. 72).

O progresso ilimitado enquanto paradigma da modernidade e que tem sido o impulsionador da ciência é a prova de que esta tem na experiência do senso comum um lugar privilegiado. “A generalização da experiência da correção per-manente na pesquisa científica conduz ao curioso ‘cada vez melhor’, ‘cada vez mais verdadeiro’, ou seja, ao progresso ilimitado e à aceitação a ele inerente de que o bom e o verdadeiro são inatingíveis” (ARENDT, 2016, p. 72 ), criando a certeza ilusória de um progresso infinito e de um futuro como o lugar da perfeição. Daí nasceram paradigmas como o futurismo que segundo Hartog (2015) teve seu momento de grande força no início do século XX, mas que seria engolido pela presentificação provocada pelos eventos tecnológicos e comunicacionais que a partir de então dominaram a cena.

Um dos pontos de grande relevância apontados por Arendt sobre as relações da ciência com o senso comum é a transmutação ocorrida com a noção de verdade que foi transformada em uma “[...] enorme corrente de veracidades, cada uma das quais, a seu tempo reivindicando validade geral, ainda que a própria continuidade da pesquisa implicasse em algo meramente provisório” (ARENDT, 2016, p. 73).

Considerar a verdade enquanto veracidade, visto que tem sua versão construída a partir da adoção de métodos reconhecidos, atesta a permanência do cientista no senso comum que por sua vez, orienta o mundo das aparências. “Não importa o

quanto suas teorias se distanciem da experiência e do raciocínio do senso comum, elas devem no final retornar a eles de alguma forma, ou perder todo sentido de realidade do objeto de sua investigação” (ARENDT, 2016, p. 74).

A ciência teve, portanto, sua verdade pautada no método e a ele se interligou na modernidade como algo indissociável. Hans-Georg Gadamer em seu livro Verdade e método contesta esse atrelamento, observando que a modernidade foi marcada pela racionalização crescente da sociedade e pelas tecnologias da ciên-cia que levaram a um “vertiginoso progresso da ciênciên-cia moderna da natureza”

(GADAMER, 2015, p. 15) o que por sua vez, levou o que denomina de “espírito metodológico” a desenvolver uma certa ubiquidade em torno de lugares de narra-tivas de verdade. Não que o método científico seja dispensável, nos diz este autor, mas colocar de forma clara que os objetivos dos campos científicos são distintos e, portanto, a utilização de métodos universais não é compatível com as diversas especificidades. Para Gadamer (2015) que inspirado por Heidegger se lança na empreitada de desenvolver a hermenêutica filosófica, nem toda verdade prescinde de um método funcional e objetivo para se estabelecer.

A questão crítica sobre a imposição do método que foi percebida por Arendt (2016) e Gadamer (2015) reaparece em Sodré (2014) que no livro A ciência do comum: notas para um método comunicacional aponta para as possibilidades aventadas na contemporaneidade para um possível distanciamento do positivismo objetivista imperioso que dominou por muitos anos a pesquisa científica também no campo das humanidades. Contudo, nos diz o autor, “[...] apesar de toda essa relativização, a questão metodológica impõe-se no empenho da função de uma ciência da comunicação. A multidisciplinaridade é o que tem vindo primeiro à mente quando se deixa de lado o paradigma funcionalista” (SODRÉ, 2014, p. 287).

Gumbrecht citado por Sodré (2014) diz que é melhor fugir dos métodos, não porque eles carreguem potenciais desvios ou sejam maus em si, mas porque eles impedem o desenvolvimento do pensamento livre e independente.

Na raiz da problemática sobre as investigações no campo da comunicação encontram-se de um lado, a intencionalidade que tem lugar no comum que, por

sua vez, tem guiado o caminho das pesquisas, atrelando a métodos escolhidos a possibilidade de construção de verdades que possam ser reverberadas. Para Muniz (2014) a objetividade não pode ser alcançada por uma fetichização do método, ao que acrescento, muito menos a uma sua sacralização com a intenção de construir verdades indestrutíveis.

O atual momento de desinfopandemia, termo cunhado pela UNESCO em 2020, para designar a pandemia da desinformação, em cujo escopo encontramos informações imprecisas, falsas e/ou manipuladas, é revelador de duas vertentes que tentam direcionar os usos do método. De um lado, o descrédito da sociedade atual e que extrapola o campo da comunicação, atingindo as ciências naturais, a filosofia e a história, dentre outros, tendo em vista o desvelar dos modos de fazer do método, como algo que se localiza no lado não visível dos fenômenos, o negativo das sombras, como a absolutização da flexibilidade na construção das narrativas historiográficas, tendo em vista as recorrentes lacunas da história que se colocam como lugares frequentes de revisões na historiografia.

Em outra frente, a crise que vivenciamos e que nos suspende temporalmente da linha do tempo histórico que vivenciávamos até 2016, por exemplo, tem levado a um posicionamento conservador em torno do método, uma nova era da sua sacralização , como sendo a única forma de provar para a sociedade quais são os verdadeiros lugares de verdade. No campo jornalístico essa postura tem se manifestado objetivando combater o mercado da desinformação.

Em ambos os lados há perigos a serem evitados. No primeiro o combate deve ser integral, já no segundo há que se conseguir caminhos distintos dos traçados no presente passado de uma modernidade, tendo em vista que os caminhos me-todológicos que se pretendem hermeticamente fechados e que não consideram o humano como ator e fator de intervenção, tendem também a considerar somente a objetividade, por exemplo, em detrimento da subjetividade, mesmo conscientes de que toda objetividade é antes, produto de escolhas subjetivas de um ator que intervém em determinado ambiente científico ou campo do conhecimento.

Nas próximas páginas nos dedicaremos a pensar o campo da comunicação.

A Comunicação

No início do texto nos situamos no campo das aparências, no mundo dos processos e das práticas e, principalmente, das interações sociais, econômicas e políticas que envolvem e são envolvidas pela potência do fenômeno da comu-nicação, aqui continuamos no mesmo espaço, mas nos concentrando em uma abordagem central.

O primeiro momento mencionado nos leva a Bourdieu (1998) cuja conceitu-ação de campo se interliga ao espaço simbólico em que agentes identificados por um determinado habitus desempenham funcionalidades a partir de especifici-dades que lhes confere poder de representação na sociedade. Um espaço em que determinado poder simbólico é exercido em tensionalidade com outros campos que também detêm poder simbólico em outra dimensão.

Esse espaço simbólico de atuação social de agentes é , de certa forma, o espaço privilegiado de observação e investigação científica ou cientificamente orientada, visto que se situa no mundo das aparências onde as observações acontecem e de onde os pesquisadores necessitam se ausentar para pensar e procurar compreender por um lado, ou para buscar explicações, por outro.

Adriano Duarte Rodrigues (2016), ao pensar a comunicação, procura traba-lhar a complexidade do conceito e suas conflitualidades internas e externas tendo como referente a experiência humana e social na modernidade, em confronto com as experiências originária e tradicional. A sua percepção sobre a comunicação apresenta pontos divergentes que exporemos mais adiante neste texto. Por um lado, considera a comunicação um “[...] termo ambíguo sem referente consensual o que a torna um problema central nos discursos do nosso tempo” (RODRIGUES, 2016, p. 14), o que de certo modo é uma compreensão concordante com outros pesquisadores mencionados aqui, por outro, porém, compreende que é o privi-légio da experiência moderna que torna a comunicação tão atrativa enquanto problemática teórica. Logo, para este autor

[...] antes de ter a ver com a relação entre pessoas singulares, a co-municação assume, no quadro da experiência moderna, um papel de interação entre campos heterogéneos, autónomos e distantes.

A própria comunicação interpessoal passa a ser enquadrada pela luta entre os diferentes campos pela imposição dos seus valores, uma vez que as pessoas passam a ser encaradas, ora como sujeitos, ativos ou passivos, dessa luta, ora como alvo das suas estratégias de mobilização. (RODRIGUES, 2016, p. 22-23).

Nesse sentido a comunicação é compreendida como um composto de proces-sos que se estabelecem na interlocução e nas tensionalidades entre os diferentes campos da experiência moderna que se apresenta em múltiplos domínios, desem-penhando uma funcionalidade na operacionalização dos dispositivos discursivos que promovem tanto a visibilidade quanto a reflexividade pública dos campos (RODRIGUES, 2016, p. 22).

Vale ponderar que conforme Rodrigues (2016), os dispositivos de mediação são diversos e atuam de acordo com as modalidades da experiência e que é somente na modernidade que a comunicação midiática como a conhecemos, surge, divergindo potencialmente das experiências originária e tradicional. Nesse contexto, é preciso lembrar que as pesquisas em comunicação se colocam com a intencionalidade de aprofundar a compreensão de questões que este autor considera insolúveis, visto que é impossível tornar compatíveis diversos níveis de experiência e “[...] as exigências decorrentes da sua inscrição num território comum ou de um mundo vivido partilhado pela comunidade que se assume como herdeira de uma mesma história comum, e as razões que o seu entendimento pode invocar de maneira autónoma” (RODRIGUES, 2016, p. 23).

Rodrigues (2016, p. 23) procura trazer à tona os caminhos conflituosos da comunicação que em seus argumentos são provocados pela “[...] coexistência da experiência moderna com as outras modalidades da experiência” e que não se resume à questão da verdade dos enunciados, visto que também é lugar de compartilhamento de valores éticos e estéticos. Para além disso, a comunicação é pragmática e possui processos interativos “de natureza perfomativa ” princi-palmente, na interação, em que a “ [...] força performativa dos enunciados

exer-cida pelos interlocutores é vigiada e sancionada pela instância transcendente da tradição que tem a sua expressão mais evidente naquilo a que damos o nome de senso comum” (RODRIGUES, 2016, p. 26).

É preciso destacar ainda das ponderações de Rodrigues (2016) algo que nos parece pertinente trazer para o debate e que se localiza na situação dos campos sociais como lugares imaginados e nos quais a comunicação se coloca na intersec-cionalidade entres os campos com o objetivo de gerenciar o que o autor denomina de domínios da experiência, e, a um tempo, “[...] assegurar a sua legitimidade, de mobilizar o conjunto da sociedade em torno dos seus valores, de vigiar o seu respeito, de sancionar o seu desrespeito e de os restabelecer sempre que sejam violados ou desrespeitados” (RODRIGUES, 2016, p. 27). Nesse sentido, conclui que embora os processos que envolvem a comunicação no que denomina de expe-riência moderna, se revelem similares aos da tradição, são os campos sociais que terminam por definir as distintas intervenções da comunicação na experiência.

No próximo tópico abordaremos os aspectos tensos e complexos que circun-dam o processo de cientificidade da comunicação e apontaremos os paradoxos presentes na pesquisa. Nesse último momento, diferentemente dos anteriores alargaremos o escopo observacional da comunicação, antes centrado na comu-nicação midiática. Esse movimento se faz necessário tendo em vista novos estu-dos e proposições teóricas-metodológicas realizadas por pesquisadores brasilei-ros que extrapolam o ambiente da comunicação midiática.

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 49-57)