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Matrizes epistêmicas da Comunicação como ciência

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 24-31)

Existiriam processos autorreguláveis – típicos da sociedade moderna e irre-dutíveis a outros fatores da realidade social – que poderiam ser definidos como comunicacionais? Em que condições a comunicação ganha autonomia?

A emergência do objeto de estudo da Comunicação se dá no mesmo período e envolvem as mesmas condições das demais disciplinas das ciências sociais.

Sim, porque se trata do mesmo processo histórico pelo qual Estado, economia, sociedade se emancipam constituindo dinâmicas próprias. No plano do conhe-cimento, este movimento corresponde à formação das disciplinas das ciências sociais, que se desmarcam da filosofia e encontram na Modernidade seu solo epistêmico. Todas tiveram que abrir caminho entre a essência humana e o corpo biológico, entre a razão pura e a intervenção divina, para buscar seus próprios

modos de compreender a realidade social por meio de processos empíricos, no plano dessa realidade social.

E com a Comunicação não pode ser diferente, se a tratamos como ciência social. A autonomia dos processos comunicacionais se dá em relação à fala enten-dendo por este termo as linguagens (sinais, códigos), o oral (o que é expresso de viva voz, a fala, o verbal) e a tradição oral (transmissão cultural entre gerações), enfim, a capacidade de gerar a dimensão simbólica que caracteriza o humano (sentido mais fundamental de cultura).

Por conseguinte, o primeiro passo é não tomar como idênticas fala e comu-nicação; temos que gerar análises conceituais que permitam perceber suas dife-renças. Para isso será necessário postular formas não-naturais de comunicação, modos de comunicar que não sejam idênticos a essa faculdade profunda que faz o homem ser o que é. Este é o primeiro passo necessário para desnaturalizar a comunicação, é preciso distingui-la dessa faculdade essencial, sem a qual não há homem. Outros dois requisitos são: não identificá-la aos conteúdos das mensa-gens (ao que é dito) e, sobretudo, não tomá-la como uma extensão ou atributo do sujeito. Como resultado, temos um descentramento da comunicação em relação à fala, à mensagem e ao sujeito. Assim configurada, a comunicação é um modo de produzir e circular mensagens; um modo que altera a escala da ação destas, bem como nossas categorias sociais de tempo e de espaço. E, para além disso, a comunicação constitui uma nova forma do simbólico.

Desenvolvamos um pouco mais a desnaturalização da fala. Em todas as épocas, falar é um ato natural: homens falam. Na Antiguidade, onde se deu a formação da sociedade de classes e a complexificação das funções sociais, a fala ganha alguns sentidos específicos. Surgem atividades nas quais é possível um sentido não-natural, porém limitado, na medida em que ela aparece presa a alguma instituição social.

A fala se encontra encarnada em uma autoridade (soberano, juiz, sacerdote...), da qual é uma prerrogativa, um atributo.7 Desse tipo de fala necessariamente decorre

7 Marcel Detienne (1988), em quem baseio esta análise, distingue rigorosamente a palavra diálogo e a palavra má-gico-religiosa. Para simplificar, evocamos apenas o sentido dessa última, mas a distinção que faz vai exatamente no sentido que apontamos, de distinguir tipos de fala historicamente constituídos.

algum regime de verdade (autoridade do soberano, código jurídico, oráculo) ou uma cadeia de comando, com os quais se confunde.

Já para a filosofia, onde a fala é um operador do conhecimento, a palavra do filósofo revela outro tipo de verdade, mas resta um atributo de quem fala. Mes-mo a retórica e a oratória não constituem exceção, são artes de persuadir e de falar em público exercidas por homens políticos, advogados e outros debatedores públicos, ligados a certas instituições sociais (ágora, senado, tribunais) e neste sentido, são seus atributos. Desse modo, mesmo que tenhamos formas históricas singularizadas, que mostram que a fala pode ser mais que um ato banal, elas se encontram confundidas com instituições sociais, tecnologias da palavra, lógica ou metafísica, enfim, suas virtudes e capacidades são aquelas que tomam emprestadas das instituições sociais às quais se encontram vinculadas. Não há, portanto, nada de especificamente comunicacional nelas.

Quadro que não se altera se passarmos à totalidade do sistema de comuni-cação antigo, se incluirmos seus meios tecnológicos (particularmente a escrita), as práticas sociais relacionadas à comunicação (como rituais ligados a crenças de contato com deuses ou com espíritos mediadores), as formas de transmissão da cultura (lendas, provérbios) e de circulação da informação (boatos, rumores).

Claramente se depreenderá o predomínio das formas orais sobre as formas tec-nológicas e que ambas se acham coladas à fala natural ou ao plano institucional (escribas, oráculos). As formas tecnológicas, dado sua infraestrutura, tendem a ficar ainda mais restritas aos objetivos das classes dominantes e a se confundem com as funções do Estado e da religião, alcançando a sociedade apenas de modo indireto. A escrita desponta no alvorecer da civilização como uma poderosa mnemotécnica (registro), na época de Platão passa a ser usada como tecnologia do intelecto (GOODY, 1988; HAVELOCK, 1996). Somente com a chegada da imprensa, agindo na circulação de mensagens, é que passa a ter uma ação direta, pois está integrada à organização social.

Como resultado, a comunicação passa praticamente invisível para a An-tiguidade: as pessoas falam, conversam, as instituições ordenam. Então, onde

estaria a comunicação? Nem mesmo o ansiado contato com Deus, intensamente valorizado nesse período, não poderia ser chamado de comunicação, visto que a conotação de “ter algo em comum”, implicada neste termo, não faria sentido ou soaria como pura heresia.8 A comunicação não tem porque existir. E não será diferente para os teóricos. Se o homem fala, isso é de sua natureza; se as pessoas conversam, é porque, assim, através do relacionamento, se expressa a afetividade que lhes é tão necessária à vida mental; se as instituições mandam, é porque cabe as autoridades organizarem a sociedade, é sua função social. De um modo ou de outro, seja na visão filosófica, seja na percepção dos próprios agentes sociais, nunca poderemos dissociá-la do ser humano, do ente psicológico ou do indivíduo institucionalmente investido. Ela resta presa a uma entidade.

A Modernidade está marcada pelo aparecimento dos jornais, da propaganda ideológica, da publicidade comercial e de outros fenômenos sociais. Eles irão dar um sentido completamente novo à comunicação moderna, que deixa para trás a fugacidade das formas orais e se caracteriza por uma ampla infraestrutura material, que desponta com a imprensa. Esta será o fator decisivo da desnatura-lização da comunicação, ela completa a nova estrutura e organização social que emergem com a separação do Estado, economia e sociedade. Tal como no fim da pré-história a escrita completa o arranjo entre fatores econômicos, políticos e sociais que formam a civilização. É verdade que a escrita já havia trazido gran-des diferenciais em relação à fala, mas faltava um passo decisivo, que veio com a reprodução mecânica da escrita – a imprensa. A técnica que multiplica a palavra escrita gera uma inédita percepção do social, através da sincronia das mentes conectadas a uma experiência comum. Pela primeira vez a sociedade pode ser

“vista” e os agentes sociais podem acompanhar e se verem incluídos na dinâmica social, graças ao fato de pertencerem ao mesmo presente: a atualidade viabilizada

8 Com Deus, não se comunica. Deus “fala” aos homens através dos sonhos, presságios intuições, fala “sem palavras”

ou até mesmo pela escrita. Assim como as autoridades instituídas, a fala divina é um mandamento, uma advertência, uma repreensão ou aviso de cautela, nunca uma conversa, um processo dialógico. Para uma descrição da singularida-de da comunicação na Antiguidasingularida-de, ver Martino, 2019.

pelos meios de comunicação. Tais processos de comunicação não se confundem com uma instituição, eles se confundem com o mundo, com a representação que temos deste e inclusive de nós próprios.9

As condições de emergência desse tipo de comunicação convergem com a descrição dada pelos historiadores, de um mundo que se expande (descoberta da América, internacionalização do comércio), que sai de seus claustros (fim da Idade Média) ou de um processo de dissolução das estruturas sociais e das for-mas culturais apoiadas na tradição (queda do Antigo Regime, Iluminismo). São muitas as vias que moldam a imprensa, e não é menor o número para as quais se torna necessária. Põe-se em marcha a espiral que compromete demandas sociais e formas tecnológicas em um jogo de alternâncias, no qual as exigências de uma, coloca as da outra em um nível mais elevado.

De outro lado, não deixemos de notar que temos na sociedade do século XVIII formas não-naturais de comunicação, como a arte da conversação, na qual a fala é transformada em espetáculo (importa menos o conteúdo, que a performance) – que é uma forma estética, relativa a uma época. Mas também compreensões duráveis, ainda vigentes e ligadas à imprensa, como a liberdade de expressão, o direito à palavra (falar, escrever, imprimir), estabelecidos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Nesta, a comunicação é “um dos mais preciosos direitos do homem”, não é uma essência, já que pode faltar e precisa ser protegida pela lei.

Este breve apanhado é apenas uma amostra de que a imprensa está relacionada a vários aspectos da sociedade moderna e essa relação, como se sabe, se intensi-fica adicionando outros meios. O exemplo de uma obra bastante conhecida nos ajudará a fechar este tópico.

A autonomização da comunicação, bem como seu encobrimento como objeto

9 A visibilidade e interação com a sociedade é uma capacidade intrínseca à imprensa. Seu início se dá no começo do século XVII e envolve livros e jornais. Na segunda parte do Dom Quixote os personagens não somente leram a primeira, agem em função desta leitura. As informações do livro se integraram à representação que têm do mundo, colam a ele, assim como a notícia do jornal. A data de publicação da primeira parte (1605) coincide com aquela fir-mada na certidão de nascimento do jornal.

de estudo podem ser vistos em Transformações estruturais da esfera pública (2003), de Habermas. Obra que tem o mérito de mostrar a associação entre processos comunicacionais e formas históricas da vida pública: a grega antiga, a medieval e a moderna (século XVIII). A obra também destaca duas singularidades dessa última: a) aquela que surge com a separação da “sociedade civil” em relação ao Estado e; b) a articulação que se estabelece entre os espaços de convivência (cafés, salões) e a imprensa. Em relação ao primeiro fator, Habermas é bem-sucedido em mostrar a autonomização da comunicação, pois passamos a ter um âmbito estritamente social de comunicação, diferente da fala ordinária e não submetida ou identificada com funções ou status institucionais. O segundo fator, relaciona corretamente dois circuitos de comunicação, sem e com tecnologia, contudo a análise dessa última é pouco desenvolvida.

A tecnologia faz da esfera pública moderna algo muito diferente das demais;

nela repousa a possibilidade de estar aberta a todos e de ser um debate sincroni-zado, condições necessárias para, estritamente falando, constituir um fenômeno social – tanto do ponto de vista da Comunicação, quanto daquele que Habermas pretende atribuir à esfera pública. Com a rápida e ampla circulação da informação a imprensa alimenta as discussões, unifica-as em temáticas coordenadas, o que permite concentrar a atenção social e gerar a opinião pública. Sem a imprensa estes debates não ultrapassariam o limiar de conversas locais (grupo, povoado), com seus conteúdos próprios e alcance limitado. Apoiadas unicamente no contato pessoal, elas restariam no plano da fala natural. O recorte habermasiano, como se sabe, tem objetivos que o afastam de uma análise mais profunda do papel dos meios de comunicação e de sua relação com a sociedade. Mesmo no plano das temáticas discutidas e dos conteúdos das mensagens circuladas, não se trataria apenas da reivindicação de participar da gestão política. Como apontam os his-toriadores, esta reivindicação aparece no âmbito de um movimento maior, de rompimento com a tradição; ela se manifesta na religião (anticlericalismo, Reforma Protestante), nos costumes (moral racional), na estética (superioridade dos valores do presente sobre os do passado). Ela também se manifestava na relação utilitária

que o jornal estabelece com a publicidade comercial. A própria compreensão do significado dos jornais bastaria para ter em conta que havia muito mais em jogo. E este significado estava disponível na percepção dos agentes daquela época. Teste-munhos do final do século XVII mostram que já se tinha a noção da importância do jornal como forma de conhecimento e que os indivíduos deveriam usá-lo para se integrarem à sociedade.10

Na falta dessa compreensão, Habermas omite o papel que os meios de co-municação passam a ter na sociabilidade, deixa de lado o fato que a tecnologia ofereceria solução viável para alguns dos maiores problemas colocados à sociedade moderna e que seriam incompreensíveis para as que a precederam. Por exemplo, o problema de ser social. Nas sociedades tradicionais o pertencimento do indi-víduo ao coletivo se acha naturalizado, é dado pelo nascimento em uma classe, que define seu status, cultura, valores e modo de vida. Na sociedade moderna estes fatores não estão sobrepostos e fundidos, há certo espaço para o indivíduo exercer sua autonomia – não no sentido que tudo lhe seja possível, mas que nada se faz sem seu engajamento. Isso aparece claramente no âmbito do lazer (tempo livre, no qual o indivíduo administra suas atividades) ou em sua socialização, os contatos que espontaneamente faz e que precisa manter se desejar ser social. Em nenhuma outra sociedade histórica alguém “precisou ser” social, pertencer a uma cultura, criar uma identidade... Tudo isso estava dado. Não é por acaso que as tecnologias de comunicação irão ocupar todos os espaços da existência que foram paulatinamente liberados para a avaliação e decisão do indivíduo.

Na verdade, a liberação de instâncias autônomas (política, economia, so-ciedade, indivíduo) em relação ao Estado e à Religião significa que, na

socieda-10 Nós “que vivemos agora no mundo, devemos também compreender o mundo de agora”, nos diz Caspar von Stieler (1695), devemos então “conhecer os jornais [..] e saber como se servir deles” (apud HAACKE, MARTINO, 2017, p. 96). Outro autor mais conhecido é Tobias Peucer (1690), cuja dissertação sobre a imprensa trazia as princi-pais características da imprensa de nossos dias (informações desordenadas, necessidade de serem divertidas, sistema de circulação de mensagens que ultrapassa a ordem local e, sobretudo, que tratam da atualidade). A repercussão que o trabalho teve entre seus contemporâneos é um índice de que era uma visão compartilhada ou, pelo menos, aceita como pertinente.

de emergente, a organização social não está presa à estrutura social, ela surge da dinâmica dos agentes entre eles e com as instituições. As relações ganham im-portância como instâncias criadoras. De onde a pertinência do desenvolvimen-to de novas formas de comunicação e a relação com o estado de transformação permanente; o advento da Era das revoluções, como bem ilustra o título do belo trabalho de Hobsbawm, que via esse período como “a maior transformação da história humana desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricul-tura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado” (2015, p. 2 ). Se tudo mudou, se novas formas históricas aparecem, os processos de comunicação não consti-tuem exceção. Sobre este pressuposto repousa o estudo da comunicação que a aproxima das ciências sociais.

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 24-31)