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Mediação e trabalho na EPC brasileira

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 179-184)

Podemos definir a EPC, seguindo a melhor tradição da economia política marxista, como o estudo das relações de produção capitalistas relativas à estrutura dos sistemas de mediação social, tendo por pressuposto o desenvolvimento das forças produtivas. Em outros termos, trata-se em essência da ampliação do

ferra-mental crítico da crítica da economia política para a compreensão das estruturas de mediação social características do modo de produção capitalista, especialmente aquelas desenvolvidas a partir das transformações sistêmicas que se traduziram na constituição do chamado capitalismo monopolista, na virada do século XX.

O primeiro aspecto importante dessa definição, que coincide com a crítica marxiana do materialismo vulgar, refere-se ao reconhecimento da importância fundamental do desenvolvimento das forças produtivas enquanto pressupostos do estudo das relações sociais de produção, que são o objeto específico da economia política. Descarta-se, assim, todo determinismo tecnológico que marca boa parte das teorias burguesas da comunicação, sem descuidar da necessidade de com-preender a dinâmica tecnológica, na medida em que ela influencia o movimento dos atores sociais relevantes.

O segundo aspecto a destacar na definição refere-se ao elemento que caracte-riza a EPC como teoria da Comunicação: a mediação, que particulacaracte-riza a relação social específica da esfera da produção social a cujo estudo a disciplina se dedica.

Assim, a EPC se apresenta como alternativa no interior do conjunto das teorias da Comunicação existentes, todas elas destinadas a explicar de alguma maneira o problema da mediação social. A EPC tem tratado do problema particularmente ao estudar a Indústria Cultural, a estrutura de mediação social característica do capitalismo do século XX, mas não apenas.

A mediação social deve ser entendida como um processo duplo, envolvendo elementos de ordem político-institucional, de um lado, e psicológico-cognitivo, de outro. As teorias da Comunicação, ao longo da sua história, têm se dedicado simultânea ou alternativamente a estudar esses aspectos da mediação, munidas de ferramentas em geral herdadas de diferentes tradições intelectuais, da economia à sociologia e à antropologia, passando pelas teorias da linguagem, dos sistemas, pela informática, as telecomunicações, as artes. Também a EPC trata de articular várias dessas ferramentas sobre a base da crítica da economia política e do ma-terialismo histórico e dialético.

O conceito de padrão tecno-estético, por exemplo – “configuração de técnicas,

de formas estéticas, de estratégias, de determinações estruturais, que definem as normas de produção cultural historicamente determinadas de uma empresa ou de um produtor cultural particular para quem esse padrão é fonte de barreiras à entrada” (BOLAÑO, 2000, p. 234-235) – foi desenvolvido nos marcos da EPC brasileira, no plano microeconômico, articulado ao conceito tradicional de bar-reiras à entrada, da economia industrial, mas trata-se nitidamente de uma defi-nição interdisciplinar cujo objetivo é definir certos elementos que caracterizam a ação mediadora, de cada capital cultural individual em concorrência, entre o público (transformado assim em audiência) e os poderes (anunciantes e Estado) que pretendem comunicar-se com ele.

O conceito não se restringe, portanto, à análise microeconômica, mas, além de estender pontes para a sociologia, a estética, os estudos sobre tecnologia, situa-se completamente no plano das relações macro-micro, das contradições capital-Estado, que se traduzem, no campo da comunicação, na contradição pu-blicidade-propaganda, a qual pode ser definida já no nível mais abstrato da forma comunicação das relações sociais capitalistas, de onde parte, aliás, Bolaño (2000) na formulação de uma teoria da Comunicação derivada da teoria do Capital de Marx, seguindo o método da derivação das formas.

No que se refere à teoria da mediação social, o aspecto político-institucional é óbvio: a Indústria Cultural é a instância de mediação entre anunciantes, Estado (e seus aparelhos) e o público transformado em audiência, para o que é necessária ainda a ação de agências de publicidade, institutos de pesquisa de opinião etc. O aspecto psicológico-cognitivo apresenta-se, por sua vez, no conceito de padrão tecno-estético, ligado às estruturas mentais, cognitivas, inclusive emocionais compartilhadas – e aqui, por exemplo, poderia estabelecer-se um diálogo profícuo com o conceito de estruturas de sentimento de Williams (2012) –, às linguagens e às identidades culturais que permitem a compreensão, o diálogo e o feedback.

O conceito inclui ainda elementos de ordem técnica e tecnológica que impactam sobre a economia das empresas de mídia, definindo vantagens competitivas, barreiras à entrada etc.

Claro que os elementos de ordem simbólica também podem ser tomados como pressupostos para uma EPC que maneja basicamente ferramentas do campo da Economia e é certo que assim ocorre muitas vezes (como nas famosas pesquisas sobre concentração dos meios), mas isso se deve às insuficiências de uma discipli-na ainda nova. Os aspectos de ordem mais propriamente simbólica da mediação não podem ser menosprezados pela EPC, pois são parte intrínseca das relações sociais de produção que ela deve explicar. A exploração de certas fronteiras do conhecimento nesse sentido é obrigatória para o desenvolvimento da EPC e a escola brasileira tem apresentado conceitos prometedores nessa linha, como é o caso do padrão tecno-estético.

O terceiro aspecto a ser enfatizado na definição acima proposta é que a categoria fundamental da Crítica da Economia Política de Marx é o trabalho e, no caso da EPC, é o trabalho cultural que realiza de fato a mediação social no capitalismo avançado. Na verdade, como explicitado em Indústria cultural, informação e capitalismo (BOLAÑO, 2000), a contradição essencial do modo de produção capitalista é dupla, pois a relação capital-trabalho se desdobra na contradição economia-cultura. E isso desde a gênese do modo de produção ca-pitalista, como explicita o conceito de acumulação primitiva de conhecimento (idem), ainda que, do ponto de vista da mediação social, a consciência desse fato só pudesse surgir, como de fato surgiu, a meados do século XX, com a teoria da Indústria Cultural da Escola de Frankfurt, base original do pensamento crítico no campo da Comunicação.

A questão da mediação social está vinculada, assim, àquela da subsunção do trabalho cultural no capital investido na produção cultural. É só subsumindo esse tipo particular de trabalho que as indústrias culturais podem realizar de fato a mediação, pois elas mesmas, sem o trabalho, não passam de amontoados de edifícios, cabos, equipamentos e softwares. Mas, só o trabalho vivo produz valor (e, ao mesmo tempo, conserva o valor daqueles meios de produção que se consomem ou desgastam no processo produtivo, transferindo-o ao novo produto).

E aqui vale perfeitamente a definição de trabalho produtivo de Marx.

O que interessa à Economia (e à Ciência Econômica) é o que é produtivo para o capital, mas isso não coincide com as necessidades sociais. No caso da Indústria Cultural, o trabalho, de um modo geral, produz duas mercadorias: o bem simbólico e a audiência. Aqui se manifesta bem claramente a contradição entre economia e cultura, mediada pelo trabalho cultural. Assim, o que interessa ao capital no âmbito da cultura é aquele trabalho cuja utilidade é produzir uma audiência apta a receber, entender e reagir às mensagens da propaganda e da publicidade. É a sua função de mediação que o caracteriza justamente.

Este é precisamente o ponto em que os dois elementos da mediação se articu-lam. O desvendamento dessa dinâmica contraditória explicita o caráter mais geral da solução teórica aqui apresentada em relação às outras teorias da Comunicação.

Por outro lado, a situação da EPC no interior do materialismo histórico e dialé-tico, ampliando o alcance deste para uma nova esfera da sociabilidade, define a necessidade da construção interdisciplinar não eclética da nova disciplina. Assim sendo, ela se apresenta como alternativa paradigmática completa para o conjunto do campo da Comunicação.

O trabalho cultural subsumido produz, portanto, de um lado, valor e mais--valia para o capital individual que o explora diretamente, enquanto realiza, de outro, a mediação social a serviço do conjunto da classe capitalista, cumprindo, nesse sentido – independentemente da sua configuração como entidade pública (no caso, por exemplo, de uma TV estatal) ou privada (no caso mais comum hoje do oligopólio televisivo) – uma função de Estado.

Vemos aqui que a EPC dá um passo relevante ao configurar uma teoria materialista da Comunicação, superando insuficiências tanto do conceito frank-furtiano de Indústria Cultural quanto do argumento sobre o caráter produtivo da Comunicação e da Cultura de Williams. Isto posto, no intento de continuar a formulação desse pensamento materialista em Comunicação, faz-se necessário um diálogo permanente entre a EPC e as demais escolas que seguem caminho análogo. Por isso, a seguir, definimos particularmente os elementos relevantes para um diálogo entre a EPC e os Estudos Culturais.

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 179-184)