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Para um diálogo entre EPC e os estudos culturais

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 184-190)

A EPC brasileira, desde os anos 1990, tem procurado estabelecer um diálogo com outra corrente de estudos importante no campo da comunicação, como são os Estudos Culturais (EC), para além dos debates que ocorreram, no campo in-ternacional, envolvendo autores de língua inglesa. No caso da América Latina, as duas correntes se desenvolveram como crítica às chamadas teorias da dependência ou do imperialismo cultural, que dominavam o campo crítico do subcontinente nos anos sessenta e setenta do século passado. A crítica dos EC a essa que foi a primeira escola do pensamento crítico latino-americano em Comunicação é diri-gida a certo determinismo econômico que foi a marca daquela primeira geração, fortemente influenciada pelo estruturalismo.

A perspectiva antropológica dos EC tratava de demonstrar as capacidades de resistência da audiência à manipulação dos meios de comunicação de massa, o que não difere da crítica que a EPC em geral também faz, valendo-se, neste caso, do método dialético para mostrar as complexidades dos processos co-municacionais. Mas, ao longo dos anos oitenta e sobretudo noventa do século passado, os EC latino-americanos, como também os ingleses, passaram por uma profunda deriva linguística, a partir do influxo do pensamento pós-modernista, distanciando-se, assim, da perspectiva de alguns dos seus pais fundadores, como Thompson e Williams – este último, orientador de Nicholas Garnham, fundador da EPC inglesa, com quem, aliás, publicou um importante trabalho de Bourdieu na Inglaterra, que influenciou fortemente a EPC europeia –, enquanto a EPC se mantém fiel a suas origens, tornando-se muitas vezes o principal polo de resis-tência do pensamento marxista no campo da Comunicação.

Para os autores da EPC, o desvio pós-modernista dos EC soa como uma espécie de rendição, que redunda num relativismo extremamente adequado à ideologia do mercado, hegemônica sob o chamado neoliberalismo, com a adoção de uma pauta celebradora das chamadas identidades múltiplas, em detrimento da identidade de classe, que é necessariamente crítica. Além disso, a conversão

dos EC é marcada por ataques apressados ao referencial marxista, acusado de determinista, quando, na verdade, a EPC propunha justamente, em relação às teorias da dependência cultural, uma espécie de recuo crítico às fontes originais do marxismo e ao método dialético, visando explicitar o caráter contraditório do desenvolvimento capitalista que, ao mesmo tempo em que abre possibilidades liberadoras, aprofunda os mecanismos de controle e de dominação, enquanto os EC acabavam recaindo num determinismo tecnológico muito comum no campo da Comunicação que, na boa tradição marxista, seria definido como materialismo vulgar.

A realidade tem mostrado que o desenvolvimento das tecnologias da infor-mação e da comunicação abre de fato possibilidades emancipatórias, ao facilitar uma comunicação horizontal interativa, mas isto serve principalmente, nas condições objetivas em que elas se desenvolvem, à constituição de um sistema social de controles internalizados em que as energias potencialmente liberadoras são controladas e dirigidas no sentido de apoiar as necessidades de manipulação publicitária ou propagandística do sistema. Assim, o que se entende muitas vezes como autonomia e multiplicidade não passa da internalização de uma cultura do consumo, que fragmenta o corpo social, a serviço da acumulação do capital.

É isso, aliás, que permite a transição de um sistema de comunicação baseado na TV de massa para outro, em construção, baseado em um meio interativo como a internet e as plataformas digitais.

A grande questão empírica a esse respeito hoje é a de como se articulam as estratégias dos grandes meios de comunicação de massa com aquelas das redes sociais, sujeitas, por sua vez, à ação de formas de manipulação por grupos de interesse, que incorporam a produção das chamadas fake news, distribuídas através de robôs, ou seja, como se articulam as formas de comunicação vertical e horizontal para constituir um novo sistema de controle social, deixando explícitas as insuficiências do programa dos estudos de recepção.

Assim, o próprio desenvolvimento tecnológico é eivado de contradição, de modo que, no momento mesmo em que o modo de produção se torna mais

in-formático e comunicacional, privilegiando as operações intelectuais da força de trabalho e ampliando a socialização da produção até limites extremamente amplos, globais, nesse exato momento, a subsunção do trabalho intelectual redunda numa reestruturação do fator subjetivo, constituindo uma sociedade de controle, para usar a expressão foucaultiana / deleuziana, apoiada em forte fragmentação da classe trabalhadora e hierarquias extremamente acentuadas em seu interior. Em suma, do ponto de vista da comunicação de massas, a interatividade e a comunicação horizontal que sistemas como a internet permitem são dirigidas ao consumo capitalista, à individuação e à alienação, servindo essencialmente à expansão da forma mercadoria e à desagregação dos laços de solidariedade orgânica.

Contra o relativismo e o determinismo, a EPC deve, seguindo a tradição do materialismo histórico e dialético, explicitar a contradição e como ela vai se resolvendo, ou melhor, deslocando-se recorrentemente, na prática cotidiana do desenvolvimento capitalista, para planos mais elevados, de maior complexidade, privilegiando em geral as necessidades da acumulação do capital e da dominação ideológica. A contradição não é um jogo de soma zero, mas, ao contrário, há uma tendência, que se reafirma a cada momento, de aprofundamento dos sistemas de exploração e dominação capitalista, embora as possibilidades liberadoras e revolucionárias também pari passu se desenvolvam. A ruptura dessa lógica passa necessariamente por um esforço de organização do polo mais fraco da contradição, do sujeito histórico capaz de transformar o sistema na sua essência, liberando as forças do progresso que o capitalismo cria, mas, ao mesmo tempo, encarcera.

Assim, a EPC, como a Crítica da Economia Política a que se vincula, deve colocar no centro das suas preocupações o trabalho e a contradição que este es-tabelece com o capital e todo o seu sistema de dominação. Portanto, os conceitos de classe e de luta de classes devem voltar ao centro da análise, em substituição ao fascínio com a tecnologia que cega o espírito da grande maioria dos estudio-sos da Comunicação. Não se trata de substituir o determinismo tecnológico dos pós-modernistas, pós-industrialistas e outros por algum outro tipo qualquer de determinismo, como o que prevaleceu em grande medida sob a hegemonia, no

campo crítico da comunicação latino-americana, das teorias do imperialismo e da dependência cultural, nem de reduzir a importância do progresso técnico no processo de emancipação.

Ao contrário, o que se procura é dar todo o relevo ao fato tecnológico, expur-gando-o do fetichismo, ao considerá-lo como criação e como potência humanas.

O trabalho entra, assim, como aquilo que distingue o ser humano do ser natural, permitindo a soberania do primeiro sobre o segundo. Mas a verdadeira e completa emancipação passa pela libertação do homem não apenas das forças da natureza – o que, aliás, o capitalismo permite, mas de forma destrutiva e potencialmente catastrófica – mas também da segunda natureza que o próprio capital cria, no seu movimento tautológico de autovalorização, repondo sempre a sua contradição inerente, entre socialização das forças produtivas e apropriação privada.

A situação atual representa o amadurecimento dessas tendências do desen-volvimento capitalista e suas contradições, potencializando tanto as formas de controle como as possibilidades de ruptura do sistema de dominação do capital.

Encontrando-se as tecnologias da informação e da comunicação no centro do atual processo de desenvolvimento das forças produtivas, a Comunicação coloca-se no centro do debate político e a questão cultural apresenta-se como fundamental para a compreensão do capitalismo tardio, para usar a expressão de Mandel, legitimando e dando a maior centralidade ao objeto da EPC e dos EC.

O problema não está com os EC ou mesmo os estudos de recepção, mas com a ideologia pós-modernista que eles acabaram por adotar, adequando-se ao pensamento único, à ideologia do mercado e ao neoliberalismo reinante no período histórico em que acabaram adquirindo a maior relevância no campo da Comunicação. E isto à revelia de muitos dos seus principais defensores, críticos do sistema. A filiação ao paradigma da pós-modernidade, que decorre em parte do desencanto com o marxismo, em função do fracasso do socialismo real na Europa, o que facilita a debandada de grandes hordas de intelectuais de esquer-da para as fileiras do pós-estruturalismo, alimentando a deriva linguística, é o núcleo das divergências entre as duas perspectivas, em outros aspectos muito

complementares, surgidas, no campo da Comunicação, como resultado, no pla-no epistemológico, da pla-nova configuração da luta de classes decorrente da crise estrutural do capitalismo. Os postulados propostos pelo materialismo histórico em Comunicação são o caminho de superação dessas divergências, cujo centro é uma abordagem crítica do trabalho na comunicação e na cultura.

Referências

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LINGUAGEM E COMPREENSÃO

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 184-190)