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Objeções, retificações, perspectivas

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 31-38)

Estou ciente que o destaque dado aos meios de comunicação seria visto com desconfiança e classificado como determinismo tecnológico, mas esta crítica deve ser afastada, dado a impossibilidade de sua aplicação. Não se pode evocar razões próprias às ciências sociais para formular a tese do determinismo, de que as tecnologias seriam a causa das transformações da sociedade (ou da cultura). A rigor, a ideia de determinação exige estabelecer uma condição prévia e um efeito e criar um nexo necessário, de dependência. Ora, se esta condição prévia remete a recortes e quadros de análise abertos e estruturados por disciplinas, sempre haverá um determinismo teórico, de modo que, nas ciências sociais, não se sai de um determinismo sem se sustentar em outro. Quanto ao elo de dependência, isso equivale a estabelecer relações de causa e efeito num sentido ontológico (isolar um fator que seja mais real que outros), o que é inviável para a ciência.

Então, aqueles que recusam o “mediacentrismo” ou o determinismo técnico, só podem fazer isso afirmando determinações da sociologia, da antropologia, etc.

(ou, claro, ontológicas e fora das ciências sociais), não são menos “centristas” ou

“deterministas”, o que esvazia suas teses de conteúdo crítico.

Mais interessante que estas conhecidas objeções é o que elas revelam: a resis-tência a aceitar os meios de comunicação como um traço distintivo da comunicação moderna, não obstante a notória presença na vida das pessoas e a importância que têm para a organização social. O que estabelece uma contradição incomum, de um campo de conhecimento com suas condições epistêmicas. Contudo, já seria de se esperar que uma visão epistemológica da produção acadêmica, não correspondesse à produção institucionalmente recortada. Até mesmo no interior de uma escola de pensamento podem aparecer rupturas (cisões radicais ou giros, turns).11 Discrepâncias como estas permitem afinar nossas análises.

Se introduzirmos a noção de programa podemos deslocar a análise para o plano das pesquisas. Isso ajudará com a terminologia, pois o termo disciplina tem alternativas conceituais que geram confusão.12 Empregaremos o conceito de programa forte para distinguir as pesquisas que trabalham na perspectiva da Comunicação como um saber autônomo, ele também nos ajudará a esclarecer a relação das disciplinas entre si – a interdisciplinaridade. Outro obstáculo fre-quentemente colocado contra a Comunicação como ciência social.

Em sua discussão com os sociólogos, Braudel (1978) apresenta uma visão de interdisciplinaridade interna às ciências sociais. Ele chama a atenção para as linhas de convergência que, sob certa ótica, deixam mais próximas pesquisas desenvolvidas em disciplinas diferentes, que no interior de uma mesma disciplina (a sociologia de X se articula com o modelo de história de Y). Dependendo do que é enfatizado, um programa cria aproximações, afastamentos complementaridade

11 A Escola de Frankfurt, por exemplo, tem um primeiro programa baseado na articulação entre ciências sociais e filosofia social, mas também outro, que aparece nos anos 1940, estritamente filosófico. Eles recebem o mesmo nome (teoria crítica), podem ser desenvolvidos pelas mesmas pessoas (Horkheimer e Adorno), mas são propostas bastante diferentes, com posicionamentos opostos em relação à ciência. Sobre o primeiro programa e a proposta de sua reto-mada na década de 1980, ver HONNET, 1987.

12 Vários termos apresentam sentido alternativo ou são sinônimos de disciplina. O termo campo pode ter signifi-cado sociológico (Bourdieu); interdisciplinaridade pode ter signifisignifi-cado pragmático (grupo de trabalho em vista de uma tarefa prática), ou radicais (trans, pós, indisciplinar), que negam a disciplinaridade ou, ao contrário, ser interna à ciência, como consideramos aqui.

ou incompatibilidade com outros. Pode até ser pioneiro. Todas estas situações são significativas, mostram que o trabalho de pesquisa não se resume à relação com o objeto empírico, está em jogo todo o arcabouço teórico, interno e externo a uma disciplina.

Um exemplo pode nos ajudar a precisar este ponto. A “Grande divisão” que funda a disciplina da antropologia (Primitivo e Civilizado), sustenta Goody, po-deria ser formulada “como um resultado possível das transformações ocorridas nos meios de comunicação” (1988, p. 184). Goody não deixa de ser antropólogo por postular soluções comunicacionais. O problema que trata, a bibliografia que utiliza, as questões que levanta e onde deseja aplicar seu conhecimento estão dadas pelos quadros da Antropologia. Não está em questão fundar uma “Antropologia Pós-Moderna” ou um “novo tipo conhecimento” que verdadeiramente resolva a questão ou que desclassifique a antropologia em razão da Comunicação. Tam-pouco haverá tantas antropologias quantos forem os contatos com outras disci-plinas. O fato de incorporar uma perspectiva comunicacional faz com dialogue intensamente com as tradições da antropologia; de forma mais geral, ele tensiona e integra os avanços (empíricos e teóricos) das pesquisas de colegas linguistas, classicistas, historiadores, etc. à tradição de sua disciplina. Ou seja, o núcleo duro de seu programa de pesquisa não está composto apenas de teses antropológicas;

na verdade, em ciências sociais, o pensamento é exercido com a totalidade teórica disponível, articulada a partir de uma disciplina.13

Espero ter mostrado com este exemplo que pesquisadores podem levar a sério a questão dos meios de comunicação como vetores de explicação e que as possi-bilidades de combinação e recombinação de disciplinas, não são incompatíveis com uma visão da comunicação como parte das ciências sociais. A convergência e mesmo eventuais sobreposições não fazem desabar o edifício da ciência; não precisamos negar as zonas embaçadas, elas ajudam a pensar e a se repensar.

13 De onde o incessante trabalho de produzir estados da arte, levantamentos, resenhas. E a importância do jornalis-mo científico e obras de divulgação, bem cojornalis-mo tecnologias comunicacionais que permitem acelerar trocas e construir redes de cooperação. Esta totalidade só existe como reconstrução permanente.

Estas e outras dificuldades frequentemente levantadas, sobre a diversidade do objeto de estudo ou a complexidade do processo comunicacional não me parecem realmente significativas. Acredito que o principal obstáculo não seja de ordem epistemológica (ao contrário, a diversidade de perspectivas alimenta a reflexão), ele se encontra nas próprias matrizes epistêmicas que liberam a autonomia dos processos de comunicacionais, sua incidência sobre a produção de conhecimento.

Fortes laços unem ciência e meios de comunicação. Historiadores, filósofos da ciência e epistemológos estão cada vez mais atentos à relação entre as ideias científicas e a imprensa (OLSON, 1997; EISENSTEIN, 1998) e ao papel da internet para construir redes de compartilhamento e colaboração científica. Como subes-timar o papel das revistas especializadas na constituição do grande arquivo de conhecimentos e na circular a informação científica entre os pares? E o que dizer do potencial trazido com os recursos discutidos pelas Humanidades Digitais?

(SVENSSON, 2016). Não seria razoável afirmar que a ciência poderia prescindir do apoio desta infraestrutura ou que esta fosse “neutra”; que sua forma não tenha nenhuma implicação na produção de conhecimento.

Mas o ponto é que na sociedade moderna, como vimos, simultaneamente se desenvolveu outro sistema de comunicação e outro tipo de conhecimento, proporcionado inicialmente pelos jornais. A formação da atualidade mediática gerou uma instância de visibilidade da sociedade que também é uma instância de geração de valores. Era inevitável, então, o encontro dos conhecimentos acadêmicos com a opinião pública (campo intelectual), levando a ciência para o campo do debate público, mas também o inverso, o espaço público para dentro da ciência.

Em La sociologie comme science Boudon indica o problema de duas sociologias:

Uma visa explicar fenômenos circunscritos submetendo-se aos pro-cedimentos de toda disciplina científica; a outra tende a lidar com as questões sobre a sociedade que animam a atualidade mediática. A primeira quer gerar conhecimento, a outra quer alimentar o debate público. Muito frequentemente, a segunda é mais visível que a pri-meira [...]. Obviamente, não há nada que impeça as questões sobre

a sociedade de dar origem ao trabalho científico, mas elas também atraem a ideologia e a verborragia, dois ingredientes poderosos para a visibilidade das ideias. (BOUDON, 2010, p. 15).

O autor descreve um tipo de conhecimento oposto ao acadêmico e totalmente ligado ao sistema mediático. Um fenômeno muito similar ao surgimento dos cha-mados Novos Filósofos (PINTO, 1994). Com o apoio de uma mídia especializada, estes opõem às temáticas da atualidade às da tradição filosófica; criam uma nova filosofia voltada para o mundo imediatamente vivido e que questiona a “filosofia acadêmica”. E mais que isso, a nova forma de pensar introduz-se na universidade, vira alternativa, nova teoria, novas tendências...

Trata-se, portanto, de formas da sociologia e da filosofia que não emergem da estrutura orgânica da relação entre disciplinas, mas destas com o sistema mediático.

Como um setor diretamente ligado à produção da atualidade, a reação da Comunicação me parece ainda mais difícil. O sociólogo liga a TV e vê alguém falando de sociedade; o filósofo lê as revistas e tem “autoridades” que não são do mundo acadêmico, propondo revolucionar o conhecimento. O acadêmico de Comunicação olha TV e jornal e vê as notícias, os filmes, a publicidade... é seu trabalho, mas se sua reflexão se cola às formas de produção e aos conteúdos, é arrastado pelos debates, apelos estéticos, vendas... Se é levado pela atualidade mediática, como pode vê-la? Como pode desnaturalizar sua relação com o sis-tema mediático?

Não é aqui o lugar de desenvolver este tema, nosso objetivo foi o de assi-nalar o interesse no desenvolvimento de um programa forte em Comunicação.

Pensar a Comunicação de modo integrar todas as dimensões colocadas à teoria da comunicação. Um aparato conceitual capaz de lidar com as várias atividades dos profissionais da área e que, ao mesmo tempo, forneça as condições para um diálogo interno e externo ao campo, sem a necessidade de mudar suas bases epistemológicas ou trocar de aparato conceitual (evitando a multiplicação de con-ceitos ad hoc, teorias de um caso só, etc.). Um programa forte em Comunicação pode ajudar na compreensão das novas condições de produção de conhecimento,

porque sua própria existência, bem como o desenvolvimento de suas teorias estão ligados ao esclarecimento das condições epistêmicas. O que coloca as bases de uma comunicologia da comunicação.

Esperamos que as páginas precedentes tenham mostrado que – devidamente equacionada e sem pretensões descabidas – é possível atender as condições da Comunicação como um saber autônomo, do tipo das ciências sociais, e o interesse em seu desenvolvimento.

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