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Comunicação, cultura e trabalho produtivo em Raymond Williams

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 175-179)

Como indicamos acima, no rol do pensamento marxista, nos anos 1960, impe-rou, sob o influxo do estruturalismo francês, uma interpretação determinista das formulações de Marx (2008) constantes do “Prefácio de 1859” à Crítica da Econo-mia Política a respeito das relações entre base econômica, superestrutura política e jurídica e as formas ideológicas correspondentes. O superdimensionamento da metáfora arquitetônica de Marx acabou levando a uma série de mal-entendidos conceituais, levando muitas vezes a interpretações mecânicas, algumas das quais terminavam inclusive por mesclar a superestrutura política e jurídica com suas formas ideológicas correspondentes, para facilitar a apresentação de um modelo dicotômico, que os teóricos da Escola de Frankfurt visavam justamente superar.

Outros autores, não obstante, dando à metáfora a sua devida dimensão, puderam utilizá-la de forma criativa e esclarecedora.

Desde a publicação de Cultura e Sociedade, em 1958, Raymond Williams (2011a [1958]) buscou uma chave de interpretação materialista da cultura a fim de contornar os problemas gerados pela interpretação determinista da metáfo-ra marxiana. Ao participar e tornar-se um dos principais expoentes do debate britânico sobre as relações entre cultura e sociedade (WILLIAMS, 2011a [1958]), Williams assentou seus argumentos na concepção de uma “longa revolução”

(WILLIAMS, 2012 [1961]), concebendo o conceito de “estrutura de sentimentos”

e, no âmbito de suas críticas ao maniqueísmo presente naquilo que chamou de

“teoria marxista da cultura” (WILLIAMS, 2011b), elaborou argumentos que dedicaram centralidade às comunicações (WILLIAMS, 2016), postulando, por exemplo, uma compreensão dos meios de comunicação como meios de produção (WILLIAMS, 2011c) ou oferecendo uma interpretação instigante da televisão como forma cultural (WILLIAMS, 2017), apresentada contra os argumentos próprios ao determinismo tecnológico.

A proposta de Williams era superar o que ele entendia como um equivocado dualismo fundante da análise da relação entre cultura e sociedade que persistia no marxismo vulgar. Recusando o papel de segunda ordem a que o mecanicismo do marxismo vulgar rebaixava a cultura, Williams elaborou o que convencionou chamar de “materialismo cultural”, focando “na produção de significados e valores por formações sociais específicas”, “no primado da linguagem e da comunicação como forças sociais formativas” e “na interação complexa tanto das instituições e formas quanto das relações sociais e convenções formais” – um tipo de “cultura-lismo” que compreende a cultura “como um processo (social e material) produtivo e de práticas específicas” e as “artes” “como usos sociais dos meios materiais de produção (desde a linguagem como ‘consciência prática’ material até as tecnologias específicas da escrita e das formas de escrita, por meio de sistemas mecânicos e eletrônicos de comunicação) (WILLIAMS, 2011d, p. 331-2).

Os elementos teóricos centrais da abordagem desenvolvida por Williams (2012 [1961]) desde The Long Revolution aparecem sinteticamente em um par de ensaios (WILLIAMS, 2011b e 2011c) em que se dedica a debater os problemas da teoria marxista da comunicação e da cultura. No primeiro deles (WILLIAMS, 2011b) se concentra exatamente em desfazer o que Williams aponta como os equívocos gerados pela compreensão vulgar das relações de determinação entre base e superestrutura. Williams buscou reposicionar o debate da determinação recorrendo a outro argumento de Marx no mesmo “Prefácio de 1859”, aquele que afirma que “é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008, p.

47). Procurando superar de alguma forma o debate entre estruturalismo e

histo-ricismo, Williams propunha reconhecer que determinação é algo que se origina

“nas próprias atividades dos homens” (WILLIAMS, 2011b, p. 44). Ao destacar as atividades dos homens, Williams oferece uma interpretação da afirmação de Marx e Engels (2007, p. 33) em A Ideologia Alemã, segundo a qual o primeiro ato histórico dos seres humanos é a produção dos meios para a satisfação de suas necessidades.

Nesse ponto, Williams (2011b) recorreu ao debate sobre o trabalho, a fim de caracterizar a noção que lhe parece mais apropriada de base, destacando aí, prin-cipalmente, uma discussão sobre as forças produtivas. Para ele, certos aspectos contextuais levaram Marx a adotar uma concepção de trabalho produtivo que lhe parecia estreita. Por outro lado, Williams sugere que o desenvolvimento in-dustrial do século XX conduziu à reafirmação da indústria pesada como o centro da concepção de base. Essa estreiteza, nos termos de Williams, empobreceria a análise das relações de determinação entre base e superestrutura, de maneira que, com foco na produção de mercadorias, o debate do trabalho produtivo na cultura caia num beco sem saída.

[...] essa noção tem se estreitado notavelmente e, em um contexto cultural, muito prejudicialmente, distanciando-se da noção mais central das forças produtivas, na qual, apenas para lembrar breve-mente, a coisa mais importante que um trabalhador produz é sempre ele mesmo, tanto na condição específica de seu trabalho quanto na ênfase histórica mais ampla dos homens produzindo-se a si mesmos e a sua história (WILLIAMS, 2011b, p. 49).

É esse argumento, que se concentra numa incorporação do que se convencionou chamar de caráter ontológico do trabalho, que vai conduzir Williams (2011c) à caracterização dos meios de comunicação como meios de produção. Combatendo tanto a avaliação própria ao marxismo vulgar, para o qual a comunicação, como superestrutura determinada, é algo de segunda ordem frente à base determinante, quanto o determinismo tecnológico, que avalia as forças produtivas a partir de uma concepção de trabalho que, para Williams, é limitante, a noção de meios de

comunicação como meios de produção reposiciona a teoria marxista da cultura e da comunicação, saltando para o primeiro plano seu caráter produtivo.

Sob esse prisma, Williams (2011c) apresenta a dimensão produtiva do que ele entende por modos de comunicação. Recusando uma separação estanque, própria ao determinismo tecnológico, entre comunicação natural e tecnológica, o autor reavalia a questão segundo a ótica do trabalho. Para Williams, a distinção se daria entre “os modos de comunicação que dependem dos recursos físicos humanos imediatos” e aqueles que “dependem da transformação, pelo trabalho, de material não humano” (WILLIAMS, 2011c, p. 75). Não que os modos de comunicação que dependem de recursos físicos humanos imediatos sejam, segundo Williams, tão-somente naturais, pelo contrário, eles são, como formas de produção social, resultantes de trabalhos que geram, por exemplo, as línguas faladas ou a comu-nicação não-verbal. A distinção, segundo Williams (2012c) está no fato de que os seres humanos desenvolveram meios de comunicação através de trabalho que transforma material não humano. Assim, não só o trabalho transformador que criou novos meios de comunicação, mas o próprio trabalho que, por meio de um material não humano (por exemplo, um microfone), transforma a comunicação que, também sendo trabalho, depende de recursos físicos humanos imediatos (por exemplo, a fala), formam o escopo de Williams.

Segundo Williams, os meios de comunicação são meios de produção visto que “[...] a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as for-mas distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações de produção” (WILLIAMS, 2011c, p. 69). Numa perspectiva de eman-cipação, para além de recuperar os meios de produção comunicativa que foram expropriados pelo capitalismo, para Williams tratava-se de instituir novos meios, ou seja, efetivar a “[...] produção de novos meios (novas forças e novas relações) de produção em uma parte central do processo material da sociedade [...]” de modo a alcançar “[...] uma realização mais avançada e mais complexa das relações pro-dutivas decisivas entre comunicação e comunidade” (WILLIAMS, 2011c, p. 86).

Toda a argumentação de Raymond Williams aponta para uma crítica veemente de uma perspectiva que ele declara como francamente burguesa e que se nega a entender a comunicação e a cultura pelo prisma do trabalho e da produção. Tanto no determinismo tecnológico, como nas perspectivas idealistas ou no materialismo vulgar, Williams reconhece um conjunto de bloqueios ideológicos que impedem observar a comunicação como produção. Recusando tais teorias, propõe-nos a comunicação e a cultura como produção da nossa própria existência, para usar os termos de Marx. Assim, coloca no centro de suas preocupações o conceito marxista de trabalho, dando um passo importante na construção de uma teoria marxista da comunicação e da cultura.

Contudo, ao dar pouca atenção ao conceito de trabalho em Marx, reduzindo o seu alcance ao contexto histórico de revolução industrial, Williams apega-se a apenas um momento da dialética do trabalho produtivo, sem atentar para a contradição, explicitada por Marx, entre a sua definição geral e a específica, entre uma definição ontológica do trabalho e uma definição ligada à sua condição su-bordinada no modo de produção capitalista. Não é possível explicar o ponto em detalhe, mas o fato é que Williams isola a definição de trabalho com que Marx inicia o capítulo 5 d’O Capital, sem se dar conta das questões que esse mesmo capítulo avança quanto ao caráter produtivo do trabalho para o capital. É justa-mente essa lacuna que a EPC brasileira se mostra capaz de superar, acompanhando os passos dados por Marx em seu livro decisivo, com o objetivo de fundar uma teoria marxista da comunicação.

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 175-179)