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A cientificidade em construção

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 57-65)

Por fim, nos dedicamos a pensar a possível conformação da cientificidade da comunicação enquanto fenômeno complexo, interdisciplinar e que interage com diversos outros campos do conhecimento.

Como dito anteriormente, o campo científico da comunicação, ainda em formação é pontuado por uma trajetória que, em se situando no ambiente da

comunicação midiática, sobretudo, a partir do século XX e do advento dos meios de comunicação de massa, se desenvolveu em interação direta com as pesquisas em sociologia e em psicologia, com uma certa preponderância da primeira. Na América do Norte o pragmatismo da Communication Research predominou e deu tom da aplicabilidade da potência da comunicação mediada nas sociedades de massa. Tendo sido muito efetiva no tempo do entremeio entre as duas gran-des guerras do século XX, assim como, a posteriori. Por outro lado, no ambiente europeu os estudos sobre o campo comunicacional midiático aconteceram em grande aproximação com o campo sociológico com aderência crítica.

Que se pontue que a grande diferença na condução das pesquisas teve como pontos de partida, objetivos distintos. Enquanto os estudos norte-americanos pro-curavam entender os efeitos da mass communication, a partir de visões inicialmente behavioristas e depois funcionalistas, no caso europeu, a intenção era diferente e os pesquisadores de Frankfurt partiam para críticas ao modelo de sociedade que se estabelecia e do qual faziam parte a comunicação e a cultura de massas, que se colocavam com potencial para modificar radicalmente as sociedades.

Ambas as escolas mencionadas se encontrariam no Escritório de Pesquisas Ra-diofônicas de Princenton em que dois expoentes representantes vieram a trabalhar juntos, Paul Lazarsfeld da Communication Research e Theodor Adorno oriundo da Escola de Frankfurt, que terminaram por desenvolver um relacionamento conflitivo em relação aos métodos. Lazarsfeld defendia a verificação empírica de uma hipótese, enquanto Adorno se vinculava às pesquisas especulativas. Sodré (2014, p. 67) assinala que terminou por predominar “[...] a tradição empírica em-butida no pragmatismo norte-americano, por sua maior adequação gerencial às pesquisas das agências de publicidade, das corporações de mídia e das agências governamentais, militares na maioria”.

“A comunicação seria em princípio uma experiência antropológica fundamen-tal” , nos diz Sodré (2014, p. 64), além de se constituir como um conhecimento sobre essa experiência, mas seria também a roda de engendramento mercadológico que estrutura um determinado tipo de indústria vinculada a aparatos e processo

tecnológicos que compõem a essência da comunicação de massa.

De todo modo a construção de conhecimento e cientificidade tem em geral, uma estruturação próxima à institucionalidade das academias e dos institutos de pesquisa, que disputam não somente o protagonismo das pesquisas e das teorias e hipóteses dos campos em determinadas temporalidades, como também, e, prin-cipalmente, disputam verbas que lhes permitem a continuidade das investigações com orientação científica. No campo de pesquisas comunicacional, a lógica da produção científica não se diferencia de outras áreas, o que tem levado a oposições muito mais do que a diálogos possíveis.

A marca da transdisciplinaridade nas pesquisas aderentes à comunicação é recorrente e tem comportado investigações com abordagens teórico-metodológicas distintas, o que por sua vez, dificulta o isolamento dos fenômenos da comunicação e o seu enclausuramento em métodos voltados exclusivamente para análise das manifestações da comunicação em narrativas ou discursos. A contextualidade, por sua vez, passa a compor o escopo dos observáveis tornando-os mais ricos e atrativos do ponto de vista da investigação orientada cientificamente, com vis-tas não somente a explicar os fenômenos, mas a compreendê-los, quebrando a dualidade entre as formas de cognição de um lado, assim como, possibilitando a construção de um lastro de conhecimento.

Sodré (2014) ao falar sobre pesquisadores que atestam que não existe um campo da comunicação, enquanto outros afirmam que efetivamente não se começou a estudar a comunicação, nos diz:

É uma afirmação enfática quanto à dificuldade de constituição do campo científico desse setor do conhecimento, que tem a ver com a ambiguidade institucional de suas condições de possibilidade.

Referimo-nos a condições capazes de serem satisfeitas no interior de eixos característicos da pesquisa científica, a saber, ontologia/

epistemologia ( primeiro, determinação daquilo que existe e que será observado; segundo, a natureza do conhecimento implicado), meto-dologia ( o procedimento formal) e axiologia ( valores e finalidades do conhecimento), que correspondem respectivamente a questões do tipo “ o que o pesquisador diz estar fazendo em termos acadêmicos),

“como está procedendo” e “ porque faz isso”. (SODRÉ, 2014, p.49).

Com o advento das tecnologias digitais a experiência temporal dos indiví-duos sofreu mutações, tanto quanto a percepção espacial. O encurtamento das distâncias entre as categorias de Koselleck (2015), espaço de experiência e hori-zonte de expectativas, tem provocado consequências sobre a memória coletiva, agora construída com a intermediação dos meios de comunicação, assim como, na projeção de um futuro que se encolhe em um presente que se alarga e se lança rapidamente ao passado.

No ambiente comunicacional midiático não há oportunidade temporal para compreensão dos fenômenos que circundam as sociedades. “Esta é a realidade com que tem de ligar a comunicação tecnológica enquanto às clássicas ciências sociais se reserva um estatuto temporal, o qual é possível para a consciência interpretar e saber” (SODRÉ, 2014, p. 77). Nesse cenário é que as conformações temporais mencionadas trazem para a epistemologia do campo, algumas consequências que partem de estudos sociológicos, antropológicos, psicológicos ou econômicos da comunicação que permanecendo com um direcionamento funcionalista, “[...] faz do estudo da comunicação algo parasitário de uma disciplina clássica do pensamento social, portanto, a saber reducionista e avesso ao pluralismo interpretativo” (SO-DRÉ, 2014, p. 77). A comunicação é vista e percebida como meramente funcional.

As ciências sociais afins ao campo da comunicação não conseguem explicar ou muito menos compreender, os fenômenos comunicacionais em sua totalidade.

No Brasil, alega Rudiger (2014), vários pesquisadores se lançaram na emprei-tada de construir a epistemologia da comunicação com vistas a uma ciência dis-ciplinar autônoma. O texto deste autor, confronta diversos acadêmicos brasileiros e suas pesquisas em visualidades dicotômicas procurando brechas nos estudos desses pesquisadores, quando abordam por exemplo, a situação da comunicação como campo ou disciplina, teoria ou epistemologia e ainda uma epistemologia da comunicação. No primeiro momento, Rudiger assevera que Immacolata Lopes resolve a questão ao observar que a palavra “comunicação” pode ser empregada

“para indicar uma disciplina, tanto quanto o seu objeto de estudo”. Disciplina inserida nas ciências humanas e que possui como característica um objeto de

múltiplas faces e dotado de interdisciplinaridade, sendo ainda um campo que se inter-relaciona com as demais ciências humanas, não se constituindo ainda como uma ciência da comunicação. Para Rudiger (2014), o desafio tem como ponto focal a distinção da comunicação das demais ciências, visto que a tematização isolada não se constitui como um critério epistemológico consistente. Em suma, conclui que a pesquisa em comunicação ainda não se constituiu como ciência, não possuindo sua própria epistemologia. É novamente em Lopes que Rudiger se apoia para fechar o texto, quando esta afirma que a pretensão de elaboração de uma epistemologia própria para comunicação como “uma teoria “abstrata e genérica, não parece ser o caminho mais apropriado” para desenvolver a pesquisa e, muito menos, para desenvolver-lhe a cientificidade” (RUDIGER, 2014, p. 414).

Em um ambiente não efetivamente distinto do analisado por Rudiger em re-lação a sua obra de 2002, Antropológica do espelho, Sodré efetivamente reconhece os dilemas da comunicação para se constituir como ciência e aponta caminhos para a construção de uma ciência do comum, que teria como escopo de ação os laços de interação comunitária até as intermediações promovidas pela mídia. “O comum como imanência despercebida na Antiguidade (a philia) e na Moderni-dade. A mídia e as tecnologias da informação como avatares da retórica e como reinterpretações do comum na contemporaneidade” (SODRÉ, 2014, p. 189).

Os caminhos para construção de uma ciência do comum, a ciência da co-municação humana, nos diz Sodré, passam pelo pensamento estratégico que visa associar a questão moderna à antiga noção latina de communicatio, como coesão social e de diálogo entre os deuses. “Diálogo, não como mero intercâm-bio de palavras, mas como ação de fazer ponte entre diferenças, que concretiza a abertura da existência em todas as suas dimensões e constitui ecologicamente o homem no seu espaço de habitação- portanto, o diálogo como categoria ética”

(SODRÉ, 2014, p. 192).

Para Muniz Sodré cujo livro Ciência do comum se apresenta como um apro-fundamento de momentos de pesquisa anteriores e que se lançam no sentido de pensar a comunicação e sua cientificidade, tais como, Antropológica do espelho

(2002) e As Estratégias sensíveis (2006), a comunicação é tanto a bios, como os laços que interligam, é tanto o comum como a inteligibilidade redescritiva, ou, a ciência do comum. Os desafios para o autor, se colocam no plano epistemológico, mas também deontológico, atravessado pela intencionalidade política.

Outro pesquisador brasileiro a desenvolver uma teoria para a comunicação com vistas a criar um ambiente científico para o campo é Ciro Marcondes Filho, para quem a comunicação não é algo que se transmite, mas um acontecimento relacional. Comunicação que só se estabelece quando o outro recebe e acolhe a fala de outro e se transforma com esse acolhimento. O cerne de sua teoria está no reconhecimento da comunicação como algo que transforma e inova e que tem na liberdade um pressuposto para se estabelecer, dando margens para novas interpretações. Para Marcondes (2008) as pesquisas em comunicação no Brasil, estão em sua maioria, situadas nas áreas afins do conhecimento científico. Para ele, “[...]pesquisar a comunicação é estudar o processo e a constituição da relação que se cria entre as pessoas comunicantes, é falar da ocorrência do acontecimento comunicacional, que tem caráter único, efêmero, irrepetível” (MARCONDES, 2008, p. 9).

Por fim, e, considerando o cenário compartimentado e diverso do conheci-mento sobre a comunicação, terminamos por concordar com alguns dos pesquisa-dores aqui mencionados, de que a comunicação ainda não se impõe integralmente como uma ciência individualizada, o que como afirma Sodré, em trecho transcrito acima, passa por tensionalidades políticas que tem lugar na disputa por poder entre os campos do conhecimento científico.

Por outro lado, também estamos em concordância com Sodré (2014) para quem as disciplinas das ciências humanas e sociais com quem a comunicação mantém interlocução, não conseguem dar conta do objeto da comunicação de forma holística, relegando-o comumente a uma funcionalidade pragmática. Logo, os esforços dos pesquisadores brasileiros no sentido de construção de um campo científico em torno da comunicação são mais do que válidos. Portanto, ponderamos

que esta é uma situação temporalmente definida com base no atual estágio do conhecimento em comunicação, mas é preciso ainda lembrar que as investigações cientificamente orientadas sobre os fenômenos têm como característica a situação contextual, espacial e temporal, nem sempre passíveis de trasladação para outros contextos, espaços e tempos.

A validade das investigações cientificamente orientadas e voltadas para o fe-nômeno comunicacional se refletem e a um tempo, são refletidas pela ubiquidade do referido fenômeno no contexto social, cada vez mais intenso em nossas vidas, tornando a contemporaneidade o tempo e o lugar por excelência, da experiência comunicacional.

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PESQUISAS EM COMUNICAÇÃO NO

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