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As dimensões do trabalho na Indústria Cultural segundo a Escola de Frankfurt

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 170-175)

O conceito de Indústria Cultural surge no fim da primeira metade do século XX na obra dos filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer, num

quadro conceitual interdisciplinar, articulando Weber, Marx e Freud, próprio aos frankfurtianos, que visava dar conta teoricamente de todo um conjunto de problemas colocados pela conturbada situação da época. A Dialética do Esclare-cimento é um livro de 1947 (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), escrito durante o exílio dos dois pensadores nos EUA, fugindo, como tantos outros intelectuais, da perseguição nazista. O conceito de Indústria Cultural é um ponto nodal na argumentação, centrada na categoria esclarecimento, entendida como conceito chave para a compreensão, não apenas do Iluminismo europeu, mas de toda uma razão crítica que se desdobra ao longo de um período histórico amplíssimo, cujas raízes mais antigas remontam ao momento da formação da mitologia grega.

A Indústria Cultural, por sua vez, é parte de um movimento de expansão da racionalidade administrada própria ao Capitalismo Monopolista. De outro modo, mais afeito a um projeto acadêmico do que ao engajamento político, a obra remetia ao postulado de Rosa Luxemburgo a respeito da antinomia “socialismo ou barbárie”: seguindo uma análise muito ampla que vai de Homero ao antisse-mitismo nazista, a obra de Adorno e Horkheimer formulava uma avaliação crítica a respeito da contradição entre as possibilidades postas de superação do capital, de um lado, e a recaída em regimes de exceção e dominação que viabilizavam o extermínio potencial de toda a humanidade, de outro. Perguntavam-se, assim, mais especificamente, porque, diante das condições de concretização de uma sociedade emancipada, a humanidade pode conviver com os horrores autoritários da primeira metade do século XX.

Para responder, os autores formularam uma paciente avaliação do conceito de esclarecimento, reconhecendo já no mito uma tentativa de relação racional, porém insuficiente, entre os seres humanos e o mundo, insuficiência essa que ainda persistia na racionalidade administrada própria à acumulação de capital.

A fim de descrever o mundo do conflito entre capitalismo monopolista, nazismo e stalinismo, os dois filósofos ofereceram, assim, o conceito de Indústria Cul-tural como um momento em que o esclarecimento funciona como mistificação das massas, um instrumento decisivo na exploração capitalista do trabalho. Ao

tematizar uma crítica a chamada cultura de massas, os autores reconheciam na Indústria Cultural um funcionamento específico do capitalismo para o qual o tempo livre significa fundamentalmente uma continuação do tempo de trabalho por outros meios. As bases conceituais se encontravam no programa interdiscipli-nar dos autores, que ia de Hegel a Freud, mas o esforço crítico também respondia às contradições de época.

Fugindo da perseguição nazista, rompidos com as perspectivas do socialismo realmente existente na URSS, Adorno e Horkheimer encontraram, assim como diversos exilados alemães no período, a configuração do capitalismo monopolista nos EUA. O estranhamento não poderia ser maior. Educados na cultura burguesa alemã, cujos resultados filosóficos e estéticos são reconhecidos como um ponto alto do liberalismo europeu do século XIX, viram-se diante da estonteante produção cultural estadunidense do início do século XX, resultante de estruturas comer-ciais como a Broadway, Tin Pan Alley e Hollywood, dentre outras, especialmente interessadas em valorizar o modo de vida crescentemente determinado pela lógica da cidadania pelo consumo. Obrigados a lidar com os resultados estéticos dessa produção cultural, enfrentando um ambiente acadêmico pautado pelo funcio-nalismo da Mass Communication Reasearch e, por sua vez, desprovidos de um aparato intelectual já definido que permitisse uma compreensão adequada da situação, os autores passaram a formular conceitos e categorias que os colocassem em condições críticas novas e decisivas. Amparados no conhecimento da teoria da reificação lukacsiana exposta em História e Consciência de Classe (LUKÁCS, 2003), Adorno e Horkheimer viabilizaram uma abordagem mordaz do que viram nos EUA, apresentando assim uma perspectiva materialista crítica original dos meios de comunicação de massa.

Para isso, tratava-se de apresentar um conceito que cumprisse pelo menos duas tarefas. A primeira consistia em repudiar absolutamente a ideia, implícita na concepção vigente de “cultura de massas”, de que eram as próprias massas que produziam tal cultura. Para os filósofos, essa ideia não podia ser mais equivocada.

Pelo contrário, ambos reconheciam que o que se apresentava efetivamente na dita

cultura de massas era uma estratégia de expansão do fenômeno da alienação, próprio do mundo do trabalho, ao tempo livre dos indivíduos. Se a alienação do trabalhador em relação aos instrumentos de trabalho, que é o pressuposto histórico fundamental da produção capitalista, faz com que, no tempo de trabalho venha a vigir a regra de que o trabalhador seja recorrentemente alienado do produto de seu trabalho segundo a aparentemente justa dinâmica da troca de equivalentes (a partir da qual o trabalhador troca sua força de trabalho por um salário condizente com as suas necessidades de subsistência, ou de reprodução, ficando o comprador capitalista com todo o excedente produzido pelo trabalhador no tempo de trabalho estabelecido), no tempo fora do trabalho, o trabalhador é alienado também das condições de produção e reprodução cultural, o que revela como completamente disparatada a ideia de que as massas produziam a cultura a elas imposta.

A segunda tarefa era forjar um conceito que, ao desmentir a noção de cultura de massas, colocasse o leitor em choque, um conceito que não fosse assimilável pela própria dinâmica produtiva capitalista, um conceito efetivamente crítico. Para isso, juntaram termos que, para sua educação burguesa europeia, não poderiam aparecer associados, a não ser expondo uma contradição. O termo indústria re-presentava a padronização, a produção em larga escala, o gesto mecânico do ser humano absorvido pela máquina, desprovido de criatividade e individualidade, enquanto cultura expressava justamente a atividade humana, as relações orgânicas dos seres em comunidade, o conjunto de pessoas e seus modos de vida, criativos e plenos. Indústria Cultural, portanto, configura-se como uma contradição nos termos, que expressa, na forma de conceito, uma contradição real: o amálgama próprio daquele contexto em que a massificação era a realização do esclarecimento como mecanismo de mistificação. Uma expressão, portanto, chocante, dando forma ao estranhamento diante das condições lamentáveis das relações sociais a que a humanidade havia chegado no início do século XX com seus pogroms, gulags, campos de concentração, holocausto e bombas atômicas, expressões, todas elas, do horror que ressoava nos sistemas de rádio, jornais impressos, anúncios publicitários, shows de entretenimento e diversões cinematográficas.

Ao cumprir essas duas tarefas, dentre outras, o conceito de Indústria Cul-tural se tornou relevante dispositivo crítico. Com ele, os aspectos da dominação pelo capital eram compreendidos numa avaliação da socialização como um todo.

Contudo, em que pesem as evidentes possibilidades de superação da análise mecanicista em que frequentemente recaíram os adeptos do modelo base-supe-restrutura – de autores marxistas cuja leitura dos argumentos de Marx (2008) apresentados no “Prefácio de 1859” à Contribuição à Crítica da Economia Polí-tica estava fortemente influenciada pelo estruturalismo francês – o conceito de Indústria Cultural foi geralmente remetido à condição de argumento puramente circunscrito ao âmbito da ideologia.

Ao negar enfaticamente que as massas produziriam a cultura de massas, os autores colocaram o problema do trabalho no centro da questão, configurando-a a partir de uma avaliação de caráter industrial da produção cultural no capita-lismo avançado, permanecendo, no entanto, no plano da filosofia, sem chegar a apreender a problemática própria da crítica da economia política, isto é, das particularidades dos processos de trabalho e de valorização, de exploração enfim, nas diferentes indústrias culturais, encarando a atividade rotineira dos artistas implicados na Indústria Cultural como envolto pelas obrigações da criatividade e pressionado pela padronização necessária ao sucesso comercial. Com isso, a construção de uma teoria da Indústria Cultural e da Comunicação pelo prisma da teoria marxista do valor-trabalho não se completa.

A área de estudos em Comunicação entendeu os diversos aspectos constitu-tivos dos mundos do trabalho apoiada no conceito dos dois filósofos alemães, nas relações entre o chão de fábrica e a casa, pelo prisma relevante, mas restrito, das dinâmicas ideológicas, sem avançar para a análise do próprio chão da fábrica de ilusões. Assim, embora explicitando corretamente o fato de que a mistificação, a falsa consciência, não era, no capitalismo monopolista, obra simplesmente de intelectuais independentes ou das instituições, ou aparelhos, como as igrejas ou a Escola, onde tradicionalmente se produz a ideologia, mas estavam submetidas a um sistema de produção de bens simbólicos de caráter industrial capitalista,

Adorno e Horkheimer não chegam a dar o passo decisivo do estudo dos próprios processos materiais de produção de sentido.

A crítica da Economia Política da Comunicação brasileira, ao contrário de outras que simplesmente rejeitam o conceito, repõe a problemática da Indústria Cultural em seu eixo ao compreender essa forma social para além de seu confi-namento no âmbito ideológico.

Comunicação, cultura e trabalho

No documento O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (páginas 170-175)