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A cidadania sob uma perspetiva ontológica

Capítulo I – Pressupostos e tendências das sociedades contemporâneas

6. Percursos e desafios da cidadania

6.1. A cidadania sob uma perspetiva ontológica

Decorrente do que se tem vindo a analisar, torna-se agora pertinente situar a vertente ontológica do conceito de cidadania, entendendo que o desenvolvimento pessoal e social de qualquer ser humano enquadra a amplitude desta dimensão.

Na realidade, não se pode dissociar o indivíduo da construção pessoal e social, que se opera em relação com os demais, num determinado contexto específico. Neste sentido, individualidade ("não dividido", do lat. indivisus, de in: não + divisus: dividido – o que não é divisível e, por isso, se torna único), pessoalidade (nas aceções grega – prosopon (máscara) e latina persona, ae, máscara, de per: através de + sonare: soar, ressoar) e cidadão – (da palavra civitas, que em latim significa cidade, e que tem seu correlato grego na palavra politikos: o que habita na cidade), tornam-se características inseparáveis, independentemente do estatuto social, da idade, da cor ou do território a que se possa pertencer. Numa perspetiva ontológica importa sobretudo salientar a autopertença autonómica como capacidade antropológica, antes da evocação dos direitos e deveres cívicos, supondo que estes últimos são inerentes à natureza da vida social e política.

Consequentemente, o sublinhado atribuído a esta visão ontológica não pode descurar todas as dimensões da cidadania (a politica, a social, a cívica), nas suas dimensões individual e coletiva, que, em última análise, se há de traduzir no desenvolvimento de uma cultura de respeito pela diferença, de uma cultura de não supremacia, seja ao nível local, nacional ou global.

Na sociedade atual, a construção desta perspetiva pode revelar-se bastante significativa, atendendo a que, mais do que nunca, as relações interpessoais se tornam, cada vez mais, múltiplas e diversificadas, podendo esta interinfluência fomentar o desenvolvimento tanto pessoal como social, na base de uma cultura de cidadania inclusiva e de responsabilidades multifacetadas.

A expressão Da-sein (ser-no-mundo), que atravessa todo o pensamento de Heidegger, traduz este “processo de constituição ontológica do homem, do ser humano e da humanidade. É na presença que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história” (Heidegger, 1989: 309). Na mesma linha de pensamento, Ortega y Gasset lembra que o ser

humano é sempre um sujeito situado (Ortega y Gasset, 2002). Também Paulo Freire refere que “os homens enquanto ‘seres-em-situação’ encontram-se submersos em condições espácio- temporais que influem neles e nas quais eles igualmente influem” (2001: 33). Este encontro consigo e com os outros num determinado espaço ou tempo, poderá possibilitar a cada ser humano a atribuição e a compreensão de significados sobre si em relação com os outros e com o mundo.

Porém, a circunstância de cada um, na atualidade, já não se circunscreve a espaços e tempos exíguos ou territorialmente delimitados. Ao contrário, nesta perspetiva ontológica de cidadania, a circunstância de cada ser humano encontra-se agora para lá dos horizontes dos seus próprios projetos de proximidade (mesmo vivendo neles e com eles), para se imb ricar na imensidão das alteridades e das diferenças, as quais permeia e pelas quais se deixa permear. É portanto uma circunstância espácio-temporal de todos os espaços e de todos os tempos e de múltiplas vivências.

Neste quadro, o conceito de cidadania, pela expressão de Joaquim Coelho-Rosa “remete para a condição ontológica dos humanos, não para a sua condição jurídica ou para a sua condição política ou para qualquer outra condição ôntica” (2000: 338). Ao contrário, a amplitude desta interpretação possibilita o enquadramento das diversas dimensões de cidadania, sejam elas de atribuição política, jurídica ou social, uma vez que a sua fundamentação dialógica sustenta os direitos e os deveres, no desenvolvimento das diferenças e no respeito que todas merecem. De facto, no contexto da atual sociedade globalizada, cheia de transformações e desenvolvimentos, no que se refere à (des)estruturação dos Estados-nação, ao esbatimento das fronteiras políticas e económicas, torna-se difícil de entender a cidadania como um atributo biológico (descendência) ou de identidade territorial. Tanto num caso como noutro, a história humana tem demonstrado as vicissitudes de tais interpretações, patenteadas nos problemas ainda vigentes de nacionalismos, de xenofobia e de exclusão.

Não obstante a evolução dos sentimentos globais de solidariedade, de multiculturalidade e do reconhecimento das diferenças, postulados em vários documentos e propósitos internacionais e nacionais, com sede histórica na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o certo é que ainda se continua a assistir, um pouco por todo o mundo, a manifestações de discriminação e de exclusão social. Estas manifestações tomam corpo em diferentes níveis, espaços e contextos, sejam eles de caráter local, nacional ou global, que se revelam em perspetivas de entendimento de valores, tradições e resistências que excluem a diferença, seja ela de minoria, de mudança ou de irreverência ante o estatuído.

Em Os lugares da exclusão social, Stoer, Magalhães & Rodrigues (2004), ao analisarem esta problemática, através do par simbiótico exclusão/inclusão social, percorrem os contextos sociais, culturais e educacionais, aos níveis local, nacional e supranacional, em que identificam os cinco lugares do impacto de exclusão social: o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território. Nesta análise, os autores tomam como referência os paradigmas das sociedades tradicionais, modernas e pós-modernas, na qual realçam os aspetos de exclusão nos lugares de referência, como se pode constatar pelo quadro que, a seguir, se apresenta:

Quadro I: Os cinco lugares de impacto da inclusão/exclusão social

Fonte: Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004

Lugares Paradigma Inclusão Exclusão

Corpo

Pré-modernidade Comunidade Estranho

Modernidade Normalizado Reabilitável

Pós-Modernidade Corpo como agência Inativo

Trabalho

Pré-modernidade Artesão/ comunidade Invalidez

Modernidade Assalariado Não-assalariado

Pós-Modernidade Trabalho em rede Fora da rede

Cidadania

Pré-modernidade Da cidade Estrangeiros

Modernidade Atribuída Etnicidade fictícia

Pós-Modernidade Reclamada Despossessão

Identidade

Pré-modernidade Local Sem identidade

Modernidade Individual/papel Estilos de vida

Pós-Modernidade Estilos de vida Despossuídos

Território

Pré-modernidade Comunidade Caos

Modernidade Estado – Nação Terra de ninguém

Pós-Modernidade Virtual/hetero Fora da Rede

Na continuidade do pensamento destes autores, o impacto da inclusão e da exclusão social nestes cinco lugares,

É estruturado pelas tensões que os constituem e pela simultaneidade que caracteriza a sua leitura na nossa época. Consequentemente, a ativação destas tensões é, por excelência, política, no sentido de que a simultaneidade de opções e de raízes está presente em todos os processos em que a emancipação/regulação, agência/estrutura e o self como sujeito/tecnologia-do-self são potencialidades/limites mobilizados, sobretudo, pelos processos políticos. Na medida em que estamos inseridos nestas dualidades, somos obrigados a lidar com elas, sendo impossível vivê-las como se não fossem nem uma coisa nem outra. (Stoer, Magalhães & Rodrigues, 2004:138).

Assim, e no âmbito das várias pertenças e lugares que nos envolvem, a luta pela inclusão social consistirá na afirmação e na gestão das diferenças de cada um, mais do que a generosidade discursiva sobre as diferenças, na tentativa de se querer construir um mun do próprio (ibidem: 141).

O sentimento e a realização das diferentes pertenças com que somos confrontados dia a dia, transporta-nos para uma renovação de consciência convivial capaz de minorar as relações de superioridade, sejam elas de caráter dialógico/discursivo, de identidade ou de território. Na perspetiva de António Magalhães, esta aceitação das diferenças inter e multiculturais sustenta-se na “afirmação da dialética do desejável-possível-impossível, o caráter não finalista dos processos e uma conceção conflitual, negociada e relacional da vida” (Magalhães, 1998:17). Em consequência, e tal como advoga este autor,

O multiculturalismo não pode partir de uma visão da diferença como se esta permanecesse como objeto do nosso ‘conhecimento’ e ação. Por outro lado, um espaço de relacionamento multicultural não é um espaço de fragmentação, mas antes de relação ao mesmo tempo conflitual e consensual, um processo nunca acabado, que remete para uma conceção de democracia como um ideal pleno de possibilidades muito desejáveis, mas nunca alcançado (…). A agência humana não sendo central, joga-se na atualização das possibilidades estruturais que este âmbito de atuação possa oferecer (Magalhães, 1998: 109).

Tais considerações alertam para a necessidade de reconhecimento mútuo das diferenças em que cada ser humano se afirma, na sua individualidade e socialidade, como pressuposto do verdadeiro desenvolvimento humano e das suas realizações situadas. A perspetiva do reconhecimento mútuo como forma de valorização de cada interlocutor aumenta a dignidade humana, fundada nos valores da liberdade e da inclusão e secundariza as perspetivas d a integração e da tolerância.

A pluralidade de perspetivas, de opiniões e de identidades transporta, em si mesma, a singularidade diversa e específica dos seres humanos, muito para além da sua origem geográfica, cultural, religiosa – a sua humanidade. Por isso, a aceitação da alteridade diferente, promove, por si só, a aceitação de si mesmo como diferente, e do outro como alter- ego. Deste modo, cai por terra o velho aforismo de estilo moralista que derrota a liberdade pessoal em substituição da liberdade do outro. De facto, não se trata de limitar ou terminar a liberdade pessoal para deixar emergir a liberdade do outro; ao contrário, preconiza -se o aumento e o desenvolvimento da própria liberdade sempre que se promove e desenvolve a