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Uma educação globalizante e globalizada

Capítulo II – Globalização e educação

2.1. Uma educação globalizante e globalizada

O processo de globalização, como já se sugeriu, abrange não só os domínios da economia e da política, como também o cultural. Na perspetiva de Waters (2002), é neste campo que a globalização assume maior relevância: “as trocas materiais localizam, as trocas políticas internacionalizam e as trocas simbólicas globalizam” (Waters, 2002: 8). Neste sentido, há como que uma espécie de secundarização ou subalternidade da economia e da política ao fator cultural, atendendo a que estas últimas se globalizam à medida que vão sendo invadidas pela cultura, isto é, à medida que as trocas que aí se desenvolvem se efetuem simbolicamente (ibidem).

Sem dar a primazia ao elemento cultural, Boaventura Sousa Santos lembra que a ideia de uma cultura global está presente nos principais intentos do projeto da modernidade. Porém, no domínio cultural, o consenso neoliberal é muito seletivo. Os fenómenos culturais só lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que, como tal, devem seguir o trilho da globalização económica (Santos, 2005), nomeadamente os produtos das indústrias culturais e das tecnologias da comunicação e da informação, entre outros.

Mário Vargas Llosa (2012) traduz esta tendência como a civilização do espetáculo. Para este escritor, prémio nobel da literatura (2010)

Quando uma cultura relega para o sótão das coisas passadas de moda o exercício de pensar e substitui as ideias pelas imagens, os produtos literários e artísticos são promovidos, aceites ou rejeitados pelas técnicas publicitárias e pelos reflexos condicionados de um público que não tem defesas intelectuais e sensíveis para detetar os contrabandos e as extorsões de que é vitima (Llosa, 2012: 36).

Enquadrada no âmbito do domínio cultural, a educação assume relevo central no processo de globalização. Como sublinha Susan Robertson, “é o teu cérebro que nós queremos” (Robertson, 2006: 73), referindo-se às estratégias delineadas e promovidas pelos “Estados competitivos” (ibidem: 75) que são por seu turno, protegidos por um conjunto de acordos globais sobre a égide, designadamente, da OMC – Organização Mundial do Comércio. A educação, não permanece, por isso, de fora das reformas instituídas pela corrente neoliberal (Pacheco, 2011).

Supondo que o conhecimento, a informação e a inovação científica e tecnológica se processam pela via da educação, uma nova ordem se instaura: a ordem do informacionalismo e do conhecimento (Robertson, 2006: 73). Em cumprimento do disposto nesta nova ordem, recriam-se as condições de florescimento dessas dimensões – as estufas de talentos (este é um trocadilho particularizado. A autora refere-se a “talentos de estufa”), garantindo aí as patentes e direitos de autor, a codificação do conhecimento tácito e o investimento nas tecnologias de ponta (ibidem).

Nas épocas de grandes mudanças, como é a atual, marcadas por sucessivas crises, de diferentes tonalidades, os termos da nova ordem tornam-se avassaladores e penetram suave e facilmente no nosso linguajar diário. Suportada pelo discurso neoliberal, que parte do pressuposto de que a economia internacional é autorregulável e capaz de vencer as crises sem a intervenção do Estado, a educação começa a dar índices de afastamento de pertença da esfera social para se demonstrar aberta e para funcionar no âmbito e ao serviço das lógicas do mercado.

Referindo-se ao crescente linguajar comum que vem permeando os mais variados contextos, sob o pretexto do conhecimento, “ao qual dizemos sim, como bons fiéis em uníssono” (ibidem: 73), Ghiraldelli identifica as palavras de ordem deste discurso:

Qualidade total, adequação do ensino à competitividade do mercado internacional, incorporação das técnicas e linguagens da informática, abertura das universidades aos financiamentos empresariais,

Se outrora o Estado funcionava como o “eixo organizador do social e do individual” (Magalhães & Stoer, 2006: 23-24), sobretudo no auge do Estado-providência, em que a saúde, a educação e a habitação estavam a seu cargo, agora, a proposta neoliberal preconiza um elenco de reformas que culminem na criação de um Estado mínimo. Na base desta proposta, o Estado emerge como o grande culpado das sucessivas crises e dos males socioeconómicos que as originam, desde a inoperância dos ministérios à ineficácia dos serviços, até aos gastos com a saúde, a educação e a cultura. Assim, a interpelação de transferência dessas áreas para o âmbito do privado adorna-se dos atributos da eficiência, da produção, da competência e inclusive da competitividade como forma de resposta às transformações e crises que se manifestam.

Refletindo sobre Políticas Educativas Nacionais e Globalização: Novas Instituições e Processos Educativos, Fátima Antunes (2004) sublinha, a propósito, que

A reconstituição do papel do Estado na provisão do bem-estar social parece passar, por um lado, pela instabilização e rarefação de fronteiras entre o domínio público, estatal e não-estatal, e o domínio privado, associável ao mercado e/ou ao terceiro setor, e por outro lado, pela retenção da (quase) exclusividade de algumas dimensões da governação (…) e a retirada (quase) completa de outros domínios (Antunes, 2004: 235).

A partir desta “miniaturização ou municipalização do Estado” ocorre um processo de transformação da soberania e do modo de regulação social

Que se exerce em rede num campo político muito mais vasto e conflitual onde os bens públicos, até agora produzidos pelo Estado – legitimidade, bem-estar económico e social, segurança e identidade cultural - são objetos de negociação permanentes que o Estado coordena com variável nível de subordinação”. Esse contexto possibilita o aparecimento de “várias formas de fascismo societal” que amplificam e consolidam regulações despóticas “transformando o Estado em componente do seu espaço privado (Santos, 1998: 60).

A par disso, explicita o autor, que

A despolitização do Estado e a desestatização da regulação social decorrente da erosão do contrato social (…), mostram que sob a mesma designação de Estado está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais e globais (…). Neste novo marco, o Estado é uma relação política parcelar e fraturada aberta à competição entre agentes de subcontratação política, com conceções alternativas de bem comum e de bens públicos (…). O Estado assume como sua apenas a tarefa de

coordenação entre os interesses e nestes contam-se tanto interesses nacionais, como interesses globais ou transnacionais (Santos, 1998: 59-61).

Segundo John Meyer, verifica-se uma acentuada convergência de influências estandardizadas, globais ou transnacionais, ao nível do currículo, dado que “são feitos grandes esforços para que as escolas se pareçam com um modelo-tipo, i.e. globalmente definidas e facilmente identificadas enquanto tais” (Meyer, 2000: 18-19).

Neste contexto, as escolas caracterizam-se por uma elevada “transferibilidade” (Gentili, 1996:34), uma vez que o mesmo modelo tem um “grande potencial para ser aplicado em diferentes contextos geográficos e com diferentes populações” (ibidem). No entender de Gentili, esta “transferibilidade” situa-se ao nível da “mcdonaldização da escola” (ibidem: 33), com impacto na globalização curricular, sujeita a perspetivas empresariais e produtivas. Por este ponto de vista, as escolas de sucesso e o sucesso da educação escolar, enquadram -se na subordinação às lógicas de mercado. Aliás, a tendência de orientação para o ensino profissional, que marca presença, em muitas escolas portuguesas, pode ser entendida como reflexo dessa perspetiva de supressão das necessidades constantes do novo mercado de trabalho.

António Teodoro sustenta que a evolução dos sistemas educativos nacionais, nomeadamente no contexto europeu, vai sendo comandada por um “sistema educativo mundial”, referindo-se à influência de instâncias intergovernamentais, nas decisões políticas relativas aos sistemas educativos nacionais, nomeadamente da OCDE, da União Europeia, da UNESCO e do Banco Mundial (Teodoro, 2002: 564).

Em diferentes registos de análise, Paulo Gentili (1995; 1996; 1999) faz uma crítica sobre a influência do neoliberalismo na educação e especificamente sobre a educação no Brasil, salientando que o Banco Mundial tem sido o principal propugnador das políticas educacionais, no âmbito de uma estratégia neoliberal decididamente pro-business (Gentili, 1995: 244).

Também é notório, no âmbito da União Europeia, o sentido de uma “europeização” educacional. Tal responde deliberadamente a desafios sociais e económicos, perante os quais a educação, em geral, e o currículo em particular, são chamados a desempenhar um papel central. Existem, de facto, em todos os Estados-membros do espaço europeu, critérios de uniformização da organização curricular a diversos níveis de regulação das políticas educativas e curriculares (Pacheco, 2006: 87).

A crescente valorização da educação e da formação nos textos fundacionais da União Europeia é uma situação inquestionável, mais ainda quando existe o propósito de construir a Europa do conhecimento. A este propósito, António Nóvoa refere que a intervenção política da União Europeia no campo educativo “tende para uma definição de educação em diagonal ao desenvolvimento de formação profissional” (Novoa, 1998: 99-100), o que mostra a subjugação “da educação ao contexto económico e ao mundo do trabalho” (ibidem).

Segundo Costa Rico (1995), estamos perante um projeto educativo europeu que se caracteriza pela adoção de um conjunto articulado de programas de financiamento comunitário na área da formação e de animação de intercâmbios e de parceria, que vão configurando sistemas escolares nacionais cada vez mais aproximados entre si. Fátima Antunes chama-lhe uma “dinâmica de europeização das políticas educativas públicas nacionais” (Antunes, 2001: 203), as quais reafirmam a necessidade de manter, quer as funções tradicionais de educação, como a socialização e a promoção de valores, quer o desenvolvimento de competências-chave para o ingresso no mercado de trabalho.

A existência de medidas no sentido da uniformização de conteúdos curriculares faz-se, prioritariamente, em áreas-chave do conhecimento e nas designadas áreas de Formação Pessoal e Social, a que não são alheios, por questões políticas, os temas da cidadania europeia e do multiculturalismo.

A legitimação das políticas educativas e curriculares faz-se, assim, numa primeira instância, pelo recurso ao mandato externo, desempenhando as organizações internacionais para- universais (por exemplo, ONU, OIT, GATT, BIRD, SFI, AID, FMI),

Um decisivo papel na normalização das políticas educativas nacionais, estabelecendo uma agenda que fixa não apenas prioridades, mas igualmente as formas como os problemas se colocam e equacionam, e que constituem uma forma de mandato, mais ou menos explícito, conforme a centralidade dos países (Teodoro, 2003: 33).

A existência de organizações intergovernamentais (por exemplo, OCDE, OTAN, EFTA, OEA, OUA) origina um segundo nível de regulação, de natureza supranacional, sobretudo se seguirmos o caso da União Europeia. Neste sentido, a agenda educativa nacional é fortemente dominada pela agenda supranacional, no plano organizacional da União Europeia, também influenciada pela regulação transnacional.

Apesar da existência das regulações transnacional e supranacional com vertentes nacionais, as políticas educativas e curriculares têm “características de um centralismo estatal, visível na

aditiva montanha de normativos que traduzem de forma clara o fenómeno burocrático” (Pacheco & Moreira, 2006: 99).

A regulação também se processa a nível regional. No caso da organização política portuguesa, ela é, no entanto, mais ao nível dos processos do que dos fins, já que estes são definidos, na sua generalidade, pelo nível nacional, embora se reconheça que a educação é um lugar privilegiado da autonomia regional, “nomeadamente na sua vertente formal, enquanto sistema educativo, e nas orientações que a regem e que a tornam específica no todo nacional” (Silva, 2002: 1).

Por último, assiste-se à dimensão local de regulação, que se impõe através do sistema e cultura organizacional de cada escola e da rede de parcerias com que esta interage, nomeadamente com as autarquias locais. Trata-se de processos micro, “assumidos por atores que interagem, estrategicamente, num espaço de conflitos e indefinições” (Pacheco & Moreira, 2006: 100), dentro de lógicas e interesses próprios.