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Características e reflexos dos modelos burocrático e político na organização escolar

Capítulo II – Globalização e educação

2.3. Características e reflexos dos modelos burocrático e político na organização escolar

Assim, diante da pluralidade de perspetivas de análise sobre os modelos organizacionais da escola portuguesa e conscientes de que nela estarão presentes atributos prevalentes dos vários modelos, daremos maior atenção às perspetivas do modelo burocrático-racional e do modelo político, com enfoque na análise dos diferentes poderes existentes, quer pela via normativa, quer pelas lideranças e pela interação relacional dos seus membros. Os trabalhos de Formosinho (1984), Afonso (1995), Lima (1996), Estêvão (1998) e Sarmento (2000) reforçam o direcionamento para este enfoque de análise.

Os fundamentos do modelo burocrático-racional encontram raiz na teoria da burocracia de M. Weber. Esta teoria assenta no pressuposto de tornar qualquer organização racional, isto é, de adequar os meios aos objetivos pretendidos, a fim de garantir a máxima eficiência possível no alcance desses objetivos (Chiavenato, 1983). Na perspetiva de Weber (1976), a burocracia tem um caráter racional e a norma, a finalidade, o meio e a impessoalidade objetiva dominam a sua conduta.

No desenvolvimento da sua teoria, Weber destitui de sentido as formas estruturais de dominação que não têm um caráter racional e procura que todos os problemas sejam antecipadamente pensados e suas resoluções perfeitamente tipificadas num conjunto de normas. Na defesa da racionalidade sustenta que

A precisão, a rapidez, a não ambiguidade, o manejo de documentos, a continuidade, a discrição, a unidade, a subordinação estrita, a eliminação de conflitos, as despesas de pessoal e material, tudo isso foi francamente melhorado na administração burocrática por funcionários individualmente instruídos (…). A sua natureza específica, bem acolhida pelo capitalista, desenvolve-se tanto mais perfeitamente quanto mais a burocracia for desumanizada, quanto mais ela conseguir eliminar tudo o que escape ao cálculo (Weber, l976: 45-48).

O conjunto de dados apensos a este modelo organizacional tem merecido críticas de vários autores, dos quais se salientam Crozier (1963), Motta (1990), W. Hutmacher (1995), Licínio Lima (1998), entre outros. Globalmente adjetivam-no de ritualista, legalista, com excesso de

formalismo, de autoridade e despersonalização e refratário à inovação, donde resultam condutas centralistas e conformistas.

Atendendo a que numa organização burocrática tudo é decidido no topo, todos os comportamentos são previsíveis. Uma vez que a vida privada não interfere na vida profissional, todas as tarefas estão padronizadas e todos os resultados podem ser previamente quantificados. Alguns autores têm testado o grau de burocratização da realidade escolar, pela comparação das dimensões abstratas do tipo ideal de burocracia com os dados empíricos observados.

Na sua tese de doutoramento, João Formosinho (1984), identifica na escola portuguesa características da burocracia veiculada por M. Weber, constatando a prevalência de um centralismo burocrático relativamente ao currículo – com uma pedagogia burocrática onde as normas pedagógicas são de aplicação universal e impessoal em aulas com duração ideal – e à admissão de pessoal auxiliar das escolas. Segundo este autor, a escola rege-se pelo legalismo ou normativismo:

Pela uniformidade – normas iguais para todas as escolas;

Pela impessoalidade – não são tomados em consideração os condicionalismos de ordem pessoal; Pelo formalismo – todos os documentos são escritos (normas, decisões, instruções, …) quer os provenientes dos serviços centrais, quer mesmo os que resultam de decisões ao nível da escola; Pelo centralismo – as normas gerais são da competência dos serviços centrais e não da escola, sendo tudo previsto com antecedência;

E pela hierarquia – o que exerce um cargo tem autoridade sobre o que está imediatamente abaixo da cadeia hierárquica (Formosinho, 1985: 7-9).

Do mesmo modo, Etzioni (1964, 1974), Glatter (1995) e Hutmacher (1995) consideram, embora em especificidades diferenciadas, que as escolas se enquadram nas organizações de tipo burocrático, seja pela predominância de regulação e do exercício do poder (W. Hutmacher, 1995), ou pelo controlo das elites (Etzioni, 1974) e pela definição dos objetivos educacionais (Glatter, 1995), exaltando assim as características racionais e legais da burocracia.

Apesar da visibilidade evidenciada das características da burocracia presentes na escola e de este ser considerado o modelo mais perene (Estêvão, 1998), existem muitas dimensões – como as relações entre os diferentes atores – não consideradas por este modelo (Lima, 1998). Também a este propósito, João Formosinho (1985) refere existir uma notória contradição, senão mesmo um conflito, entre a impessoalidade burocrática e a pessoalidade pedagógica.

De facto, ao prevalecerem nas escolas critérios de natureza pedagógica sobre os administrativos e financeiros, possibilita-se o desenvolvimento do empreendimento, da invenção e da inovação direcionado aos diferentes atores educativos (Hutmacher, 1995). A estrutura administrativa da escola continua, no entanto, demasiado rígida, formalizada e normativa, “baseando-se no pressuposto de que as dinâmicas de êxito exigem elevados graus de estabilidade e regularidade” (Bárrios, 1999), o que tem proporcionado atrasos, insucessos e vacilações quanto ao rumo da educação.

Simultaneamente, face à renovação das finalidades educativas enquadradas nas constantes metamorfoses sociais, económicas e profissionais, este modelo parece dar sinais de crise e até de alguma incompatibilidade. Por outro lado, as últimas tentativas de reforma do sistema educativo, da criação do cargo dos novos diretores das escolas e da polémica avaliação dos professores, parece ter feito renascer a cultura de centralização e organização hierárquica que predomina neste modelo.

A pluralidade de focalizações teóricas sobre o entendimento da escola como organização revela, por si só, o desprezo pela hegemonia de um único modelo de análise, bem como a crescente necessidade de concatenação entre eles. Como tem sustentado Licínio Lima (1996, 1998, 2001) este objeto de estudo – a escola como organização – constitui-se como um “objeto polifacetado” (Lima, 1996: 27) e de abordagem multiteórica.

Também Chester Barnad considera que, dentro das organizações formais, existem sempre organizações informais (Barnard, 1971). Segundo este autor, o entendimento da escola como organização formal não pode descurar o lado informal organizacional que existe dentro dela. É dentro deste contexto que se compreende que, sobretudo a partir da última década do século passado, se tenha assistido ao despontar “da crítica aos modelos racionalistas de análise, através da emergência de novos paradigmas e configurando uma situação de pluralismo teorético sem precedentes” (Lima, 1996: 6).

Entre nós, isso tornou-se visível pela utilização de diferentes perspetivas de análise, nomeadamente através do modelo político (Afonso, 1995), da perspetiva da cultura organizacional (Sarmento, 1994; Torres 1997), do modelo institucional (Sá, 1997), do modelo da ambiguidade (Lima, 1998), do modelo político e (neo)institucional (Estêvão, 1998; Monteiro, 2001), e da perspetiva micropolítica (Sarmento, 2000).

A análise que se pretende efetuar, numa escola concreta, não pode, pelas razões expostas, circunscrever-se a um único modelo de análise. No entanto, a ausência de enquadramento num quadro paradigmático torna ainda mais difícil essa tarefa. Dado que interessa analisar o modo como se estrutura a organização escolar, nas suas principais dimensões, nomeadamente

no que se refere às questões da democracia e da participação, do exercício da cidadania, do poder e da autoridade, onde confluem identidades e estilos de vida plurais dos atores organizacionais, o modelo político emerge como uma das principais dimensões essenciais para a compreensão das vivências desses atores, dado que pressupõe “uma entidade política, quer dizer, (...) um sistema construído por indivíduos e grupos em interação que p erseguem interesses diferentes (…), defendem distintas ideologias através do uso do poder e de outros recursos” (González,1994: 50-51).

A possibilidade atribuída às escolas de criar autonomamente os seus projetos educativos e curriculares permite a inferência de uma “racionalidade política” (Silva, 2002: 32) entre os diferentes órgãos instituídos (Conselho de Escola, Conselho Pedagógico e Direção). Por outro lado, a perceção das vivências escolares diárias, sob o enquadramento da perspetiva micropolítica poderá possibilitar a análise sobre os estilos de liderança, a influência dos atores, o processo de tomada de decisão, a convergência/divergência com as lideranças e a distribuição dos recursos humanos (Paula Kleine-Kracht & Kenneth Wong, 1991).

No âmbito deste enquadramento, a perspetiva micropolítica constitui-se como quadro de análise essencial das lógicas e dinâmicas de ação que se desenvolvem no contexto da organização escolar. Na perspetiva de Manuel Sarmento, estas lógicas de ação podem ser entendidas como “conteúdos de sentido, relativamente estáveis e consolidados, com que os atores sociais interpretam e monitorizam a ação nas organizações escolares, ordenando, ainda que de forma precária e provisória, a realidade organizacional aparentemente fragmentada e dispersa” (Sarmento, 2000: 147).

Também Ball aplica o conceito de micropolítica à organização escolar, referindo que “a investigação da escola baseada em dados terá que dar atenção a conceitos como os de poder, diversidade de objetivos e estratégias, disputa ideológica, conflito, interesses, atividade política e controlo” (Ball, 1987: 25).

De forma mais radical, Hoyle, refere-se à compreensão da micropolítica da escola como o pôr a descoberto o lado obscuro da vida organizacional, as máfias organizacionais, as agendas ocultas, os jogos políticos (Hoyle, 1988).

As indicações de Hoyle (1988) e de Stephen Ball (1992, 1994) adquirem importância fundamental para este estudo, uma vez que a leitura do exercício de cidadania numa escola concreta, aliada à presunção de que a vida democrática aí se manifesta, constitui um importante contributo para o desenvolvimento pessoal e social dos seus atores.

Friedberg, 1977; Boudon, 1984), que evoca a construção da análise da ação social de Max Weber (1997) e a noção de sistema de ação concreta (Friedberg, 1995).

Na atualidade, os contributos da sociologia da ação assumem importância relevante na análise da organização escolar, uma vez que pressupõem que as organizações não podem ser estudadas apenas pelos normativos, estatutos, organigrama e outros documentos oficiais, mas sim pela ação organizacional. Ao secundarizar os aspetos formais, orienta o seu enfoque para as relações informais e o sentido que os atores sociais dão à sua própria ação numa afronta quotidiana a situações de mundos distintos, procurando constantes ajustamentos (Boltanski & Thévenot, 1991).

Estes fundamentos teóricos tornam-se essenciais para uma visão panorâmica e holística do exercício da cidadania no contexto da organização escolar concreta. Neste sentido, a focalização no desenvolvimento pessoal e social e no exercício da cidadania dos diferentes atores da escola, não pode descurar a compreensão e a descrição do funcionamento dessa mesma organização, nem as lógicas de ação subjacentes aos seus interlocutores.

As lógicas de ação enquadram-se na linha de pensamento de Max Weber, que caracteriza a ação social como “aquela em que o sentido intentado pelo agente ou pelos agentes está referido ao comportamento de outros e por ele se orienta no seu decurso” (Weber, 1997: 21). Para este sociólogo, a ação social está fundada em quatro lógicas de ação: a ação tradicional; a ação racional em relação aos fins racionais; a ação racional em relação aos valores; e a ação baseada na afetividade (Weber, 1983: 75-76).

Ligado ao conceito de ação social encontra-se o conceito de poder, atendendo a que, no contexto dos sistemas de ação concretos “não há campo neutro nem estruturado na medida em que não há ação social sem poder, e que todo o poder supõe e constitui estruturação do campo, ou seja, uma regulação dos comportamentos dos atores implicados” (Friedberg, 1995:115).

No sentido da desconstrução das intenções e finalidades que orientam a ação dos atores organizacionais, “o paradigma das lógicas de ação foi criado para dar conta da diversidade de interpretações possíveis dos fenómenos observados (…), uma maneira de definir o sentido que o ator dá à sua ação” (Bernoux, 1999: 47).

No que concerne ao contexto da organização escolar, Bacharach & Mundell (1999), ao distinguirem duas lógicas de ação – a lógica da responsabilidade e a lógica da autonomia profissional – fornecem um contributo importante para o entendimento dos sentidos que os atores da organização escolar atribuem à sua ação. Ao considerarem estas lógicas de ação congruentes e pautadas pelo modelo burocrático e pelo modelo político, respetivamente,

demonstram a possibilidade de definição e especificação das relações entre meios e objetivos (Sarmento, 1999).

No caso da lógica de ação da responsabilidade burocrática, trata-se da definição das relações meios-objetivos, atendendo a que estas “podem limitar a incerteza de uma forma racional” (ibidem: 127). Na lógica de ação da autonomia profissional, ligada ao modelo político, a “incerteza é algo que se impregna nas organizações e que não pode ser eliminada facilmente por uma definição racional e pela especificação das relações meios-objetivos” (ibidem). Uma outra proposta conceptual, para a análise da ação organizacional da escola, é apresentada por Licínio Lima (1998, 2001). Situado no estudo da organização escolar, este autor apresenta uma distinção fundamental de planos organizacionais analíticos, a ter em conta na análise da ação organizacional: o plano das orientações para a ação organizacional e o plano da ação organizacional. De acordo com esta proposta, torna-se possível analisar a ação organizacional sob dois planos que, consoante as situações, podem assumir formas distintas e/ou até complementares.

Com efeito, tal como demonstra o Quadro II, o plano das orientações para a ação organizacional corresponde globalmente ao desenvolvimento de regras que, por diferentes formas e contextos, orientam os atores da organização. No segundo plano, a ação organizacional diz respeito àquilo que efetivamente é produzido ou cumprido. É no âmbito deste plano que o autor desenvolve a sua perspetiva sobre o “modo de funcionamento díptico da escola como organização”, assente nos modelos burocrático e da ambiguidade.

Quadro II: Proposta teórico-concetual para a análise organizacional da escola

Fonte: Lima (2001: 57). Planos organizacionais analíticos Estruturas organizacionais Regras organizacionais Níveis organizacionais Tipos de focalização analítica Plano das orientações para a ação organizacional

Latentes Formais Superficial Normativa

Ocultas (cripto-estruturas) Não-formais Intermédio Interpretativa (scricto sensu) Informais Profundo Plano da ação organizacional Manifestas Efetivamente

No primeiro modelo sobressai a monoracionalidade, a ordem e a objetividade. No segundo, a pluriracionalidade sustenta, em certa medida, a ambiguidade, as regras não formais e a subjetividade. É neste quadro de referência, tal como expressa o autor, que os atores atualizam o seu próprio plano de ação e em que as margens de “autonomia relativa” lhe possibilitam, na consecução dos seus interesses, um certa “infidelidade normativa” (Lima, 1998: 176).

Porém, como se tem vindo a referir, as lógicas de ação no quadro da organização escolar ultrapassam a mera análise de atuação dos seus membros, já que esta ocorre num determinado tempo e num contexto ambiental específico. Desta consideração, emerge a noção de contingência, enquadrada no modelo sistémico das organizações, onde são realçadas as variáveis exógenas à organização que influenciam sobre a estrutura e os comportamentos dos atores organizacionais. Por este particular, como defendem Crozier & Friedberg,

Torna-se uma ilusão querer procurar a explicação dos comportamentos empíricos observados na racionalidade da organização, nos seus objetivos, funções e estruturas como se tratasse de um conjunto de dados aos quais os indivíduos não poderiam mais que adaptar-se e que acabariam por interiorizar para guiar a sua conduta (Crozier & Friedberg, 1977:55).

De forma diferente, e como bem sublinha Carlos Estêvão,

O entendimento do espaço escolar sublinha claramente a dimensão política e também ética da escola, que justifica a sua compreensão como arena social e política, pelo relevo dado ao poder e privilégios, aos interesses e influências, às racionalidades e argumentações, às práticas (micro)emancipatórias ou de subjugação, às dinâmicas de coordenação da ação (Estêvão, 2001: 71).

A tentativa de perceção e interpretação dos sentidos de ação dos diferentes atores da organização escolar, no concreto das vivências e práticas diárias, obriga por isso a concatenar esta pluralidade de dinâmicas, de forma a evidenciar a possibilidade do desenvolvimento pessoal e social e do exercício da cidadania ativa dos seus atores.