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Justiça e direitos humanos na era da globalização

Capítulo I – Pressupostos e tendências das sociedades contemporâneas

4. Justiça e direitos humanos na era da globalização

O processo de globalização tem feito emergir um défice democrático, uma crise da democracia e da cidadania um pouco por todo o mundo, tem acentuado conflitos e tem desenvolvido tensões graves que podem comprometer ou têm comprometido a paz mundial e a convivência pacífica entre os povos e nações, acentuando que vivemos um período de transição marcado pelo contraste vincado entre desenvolvimento e desigualdade (Patrocínio, 2004).

Entendendo o ideal de cidadania como “prática que desafia as injustiças” (Nogueira & Silva, 2001: 89), o estádio da cidadania civil (o primeiro estádio da cidadania segundo a conceção de Marshall) não representou progresso para todos. Ao contrário, como adverte Isabel Carvalhais,

Dentro da própria cidadania, a inclusão tem realizado uma função excludente, na medida em que a injustiça verificada na distribuição da capacidade real de exercício e de benefício dos direitos consagrados capacita alguns cidadãos, ao mesmo tempo que incapacita outros (Carvalhais, 2004:167).

Esta incapacitação faz-se notar através dos crescentes processos de pobreza e de exclusão social que colocam em questão o próprio conceito de cidadão. Nesta leitura, a exclusão tem constituído um dos maiores obstáculos ao exercício pleno da cidadania, sobretudo quando, a falta de recursos económicos básicos afeta as possibilidades de participação na vida social e as clivagens entre ricos e pobres dão origem a uma “cidadania dual” ou à existência de “cidadãos de segunda classe” (Torres, 2001: 155).

No contexto da globalização fundada em razões económicas, o valor da justiça torna-se assim num “subproduto do mercado (…), quando a ação do Estado se limita apenas a satisfazer direitos sociais de baixa intensidade ou a dar assistência aos mais desfavorecidos” (Estêvão, 2004: 117) e, consequentemente, a vivência da cidadania torna-se restrita e longe dos pressupostos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que a fundamentam. Lembra-se que esta proclama que “a liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana”. Como refere Sen (1997), ainda que o mercado seja um espaço de liberdade onde reina a desigualdade, tal não significa que possa ser “amoral” ou que tenha que ficar à margem da justiça e dos direitos.

As preocupações acerca do impacto dos ideais de homogeneização assumem uma tonalidade crítica na expressão de Helena Araújo que adverte para o facto de haver vários grupos que

Se sentem a viver uma cidadania de subalternidade, ‘como Cidadãos(ãs) de segunda classe’, em grande parte, pela inexistente margem de intervenção a que deveriam ter acesso para a distribuição de recursos, pela forma como as desigualdades económicas se mantêm e por uma homogeneização que não os tem em conta (Araújo, 2005: 13).

Isabel Carvalhais explicita esta realidade de injustiça e de constrangimento à afirmação da cidadania, quando esta fica remetida à categoria de qualquer coisa como ‘minoria étnica’, ‘residente permanente’, ‘estrangeiro legal’ ou ‘ilegal’, trabalhador temporário imigrante’, ‘imigrante permanente’, ‘estudante estrangeiro’, ‘refugiado’ ou ‘exilado político’. Enfim uma categoria que, para todos os efeitos o declara não-cidadão (Carvalhais, 2004).

Ora, esta situação, continua a autora, é tanto mais incompatível com a composição multinacional e multicultural de muitas sociedades, quanto mais o discurso da legitimidade política assenta na ideia de universalidade dos direitos humanos, o que à partida deveria pressupor “a construção de sociedades mais includentes, mais solidárias e mais comunicativas entre todos os seus membros” (ibidem: 14). É de realçar também que, tanto a palavra cidadão,

como a palavra cidadania, encerram a ideia de respeito, de direitos, de dignidade e de humanismo (Fraser & Gordon, 1995: 27-28).

De facto, o que se torna visível é que à medida que se afirma a conexão entre progresso e globalização, uma outra conexão entre globalização e exclusão se desenvolve, o que possibilita a aceleração de desigualdades, assimetrias e disparidades da sociedade atual. Como afirma a propósito Adalberto Dias Carvalho,

A nossa (...) época, se trouxe a globalização como princípio económico e político, não é evidente que, com ela, nos tenha assegurado a universalização da contemporaneidade. Muito pelo contrário, verifica-se, por um lado, com o notório crescimento da prosperidade de uma parte da população, o agravamento concomitante das injustiças e, portanto, da dificuldade de acesso generalizado aos conhecimentos e aos bens; por outro lado, o autofechamento crescente da identidade de alguns grupos ou a periferizacão sistemática de pessoas e regiões sob o anátema da exclusão (Carvalho, 2000: 7).

Young (1990) considera que só existirão princípios corretos de justiça quando todos os grupos sociais, incluindo os habitualmente marginalizados, oprimidos ou excluídos, forem capazes de participar na formulação destes mesmos princípios. Segundo esta autora, “o pluralismo cultural democrático exige um sistema dual de direitos: um sistema mais geral de direitos que são os mesmos para todos, e um sistema mais específico de políticas e direitos conscientes de grupo” (ibidem: 174).

Estêvão (2006) considera que deveria existir, por parte dos Estados, um esforço para assegurar os diferentes direitos. Contudo, aquilo a que se assiste é

À reinterpretação dos princípios constitucionais na linha de uma lógica mercadológica da política, transformando-se, assim, as suas constituições, pela sua executivização ou administrativização, num código subserviente aos programas do Governo, e os direitos numa espécie de manifesto de interesse meramente retórico sem qualquer ancoramento à realidade e aos deveres (Estêvão, 2006: 32).

No entender deste autor, interessa repensar a justiça na sua dimensão política e sociológica, tal como os direitos, numa teoria de democracia, “concebida dentro do paradigma da ‘democracia comunicativa’, ampliada nas vertentes da cosmopoliticidade e da eticidade para melhor se adequar aos desafios da globalização” (ibidem). Simultaneamente, a esfera da educação enquanto espaço de dialogicidade, deverá ser convocada em termos do seu contributo para a cosmocidadania, assente “numa ética da justiça conciliada com uma ética do cuidado, onde os direitos humanos se universalizam e, ao mesmo tempo, se ‘afetivam’ (ibidem).

5. Entre a tendência de homogeneização cultural e a afirmação das identidades