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A necessidade de reconceptualização do espaço e do tempo

Capítulo III – O papel do DPS e da educação para a cidadania numa sociedade de tensões,

3.2. A necessidade de reconceptualização do espaço e do tempo

Decorrente da imbricação entre o global e o local ressalta um outro aspeto que merece centralidade de análise: a necessidade de reconceptualização do espaço e do tempo.

Um dos traços mais marcantes e visíveis da contemporaneidade está ligado à compressão do espaço e à superação dos ritmos temporais de outrora. O caráter instantâneo da velocidade da comunicação e da informação originou significados e interpretações diferentes do espaço e do tempo. Não os extinguiu, mas recriou a forma como nos relacionamos e como organizamos o espaço e o tempo. Neste sentido, Castells afirma que

O novo sistema de comunicação transforma radicalmente o espaço e o tempo, as dimensões fundamentais da vida humana (…). O espaço de fluxos e o tempo atemporal são as bases fundadoras de uma nova cultura, que transcende e inclui a diversidade dos sistemas de representação historicamente transmitidos: a cultura da virtualidade real (Castells, 2002: 492).

O espaço e o tempo, entendidos nas suas formas isoladas e afastadas, dão agora lu gar a um termo hifenizado “espaço-tempo” que permite uma compreensão mais vasta e complexa dessa mesma compressão.

De facto, não terá grande interesse considerar o espaço e o tempo como entidades autónomas, ignorando que no atual contexto, tendem a fundir-se numa mesma realidade, agora ampliada em complexidade e tornada visível no âmbito escolar. Na verdade, nem as sociedades nem a escola se furtam à sobreposição dos múltiplos fios espaciais e temporais que, entretecidos, misturam camadas, recortam singularidades e relativizam temporalidades. Esta nova conceção convida a olhar para a extensão e a espessura do tempo, que permite a compreensão dos

processos de transformação e dos modos de vida inerentes a essas mudanças. Como afirma Waters,

Como podemos ver nos mapas de âmbito global, também o espaço se tornou uma dimensão social universal cuja realidade é independente da localização social individual. A libertação do tempo e do espaço é um acontecimento completamente modernizador, porque permite a organização estável da atividade humana através de vastas extensões do espaço-tempo – é um pré-requisito para a globalização (Waters, 2002: 47).

Do mesmo modo, Thomas Popkewitz mostra que os conceitos temporais estão a ser substituídos por conceitos espaciais:

Mapas, campos discursivos, territórios, comunidades imaginadas, geografias institucionais, espaços ideológicos, topografias da pessoa, etc. por sua vez, os espaços sociais são construídos, não como conceitos geográficos, mas como discursos que produzem identidades (Popkewitz,1999: 27-28).

Esta perspetiva, transporta-nos para uma esfera onde estas identidades se misturam e entrelaçam com recortes de histórias comuns e ao mesmo tempo singulares que, paulatinamente, esboçam novos sentidos de comunidade e de cidadania. Porém, tal como refere Boaventura Sousa Santos (1998), isto pode traduzir-se num curto-circuito temporal: o presente surge de tal modo dramatizado, que o passado parece uma causa sem efeito e o futuro um efeito sem causa, provocando um efeito de cegueira e de perceção pela ausência de fio condutor.

Neste curto-circuito temporal, as novas formas de estar e de sentir presentes nas sociedades atuais projetam espaços de relação complexos e de confrontos geracionais, nos mais variados contextos e domínios, e que ultrapassam uma certa cultura de fronteira, outrora definidora de ação ou de postura axiológica. De facto, nas mais variadas áreas e domínios da atividade humana (no trabalho, no lazer, na saúde, na escola, na vida afetiva e sexual) assiste-se a alterações profundas, (Giddens, 1996; Toffler,1980; Santos, 2003; Magalhães & Stoer, 2006) o que obriga à aprendizagem de novas e múltiplas relações desterritorializadas.

Ao mesmo tempo, as dificuldades trazidas pelos processos de compressão e de expansão do espaço e do tempo, obrigam a uma desabituação da perceção da continuidade e a conviver com as lógicas da dispersão e da singularidade diferente, seja individual ou comunitária. Consequentemente, na procura de reconciliação dos espaços e dos tempos, a aceitação das diferenças, tal como a questão da sua compreensão, tornam-se os valores culturais centrais da nossa época. Porém, tal como adverte Vargas Llosa, há que distinguir entre

identidades/culturas e tudo o que nelas se “pratica, evita, respeita e abomina” (Llosa, 2012:33), sob pena do “indivíduo se desindividualizar e se tornar massa, regressando, de maneira inconsciente, aos tempos primitivos da magia e da tribo” (ibidem: 37). Este autor retrata esse regresso nas telas da exaltação da música e dos desportos como fenómenos de massificação, promovidos pelas indústrias de diversão e pela publicidade – a “mãe e mestre mágica do nosso tempo” (ibidem: 32).

Seguindo a perspetiva de Alvin Toffler (1980), na análise das três vagas de mudança, perante tais reconfigurações, torna-se necessário encontrar formas de convergência e convivência, entre o que emerge e a tradição relevante. A pertinência desta reconfiguração convida a uma mudança de olhar e de perspetiva sobre o sentido da cidadania, das identidades e do desenvolvimento das pessoas e das sociedades. Dada a particularidade desta investigação, sobre o desenvolvimento pessoal e social e a cidadania, a mesma pertinência obriga a perspetivar a escola como agente que trabalha essas diversas identidades, bem como as suas projeções individuais e coletivas.

3.3. O contributo do desenvolvimento pessoal e social e da educação para a cidadania para a formação do aluno

Como se tem vindo a argumentar, a globalização não é um fenómeno novo. Edgar Morin (2002) refere que já no século XVI se assistiu a um processo semelhante. Este autor fala, por um lado, da “mundialização da dominação, da colonização e da exploração” (Morin, 2002: 78) e, por outro lado, da “mundialização das ideias humanistas, emancipadoras, internacionalistas, portadoras de uma consciência comum da humanidade” (ibidem).

Numa sociedade em constante transição, as transformações que cada cidadão vai experienciando, possibilitam a abertura de horizontes críticos de perceção das ruturas e, ao mesmo tempo, solicitam/impelem a aquisição de uma nova consciência que permita mapear a análise, a compreensão e as vivências desta era. A perceção destas ruturas é retratada, em diferentes âmbitos e análises por diversos autores, conforme se vem convocando: Giddens (2001), Morin (2002), Castells (2003), Santos (2005), Magalhães & Stoer (2006), entre outros. Em 1996, na conhecida obra Projeto para uma Ética Mundial, também o pensador e teólogo Hans Kung caracterizou, de forma curiosa, a sociedade atual. Fê-lo através da utilização do prefixo “pós-”:

- pós-eurocêntrica - por estar a emergir uma conjuntura policêntrica;

- pós-colonialista e pós-imperialista - perante o fenómeno das nações unidas ou federadas e cooperantes;

- pós-capitalista e pós-socialista - por estar em vias de desenvolvimento uma economia ecossocial de mercado;

- pós-industrial - por ser uma sociedade do setor dos serviços e das comunicações;

- pós-patriarcal - por em termos político-sociais, se desenhar um relacionamento de maior parceria entre os sexos;

- pós-ideológica - por ser uma sociedade orientada para a pluralidade e para a globalidade;

- pós-confessional - porque, apesar de emergir gradualmente com dificuldade, se esboça uma comunidade multiconfessional e ecuménica (Kung, 1996).

Estas adjetivações dão conta de processos de mudança em vários campos, nomeadamente no social, no político e no cultural. Para fazer face a estas ruturas e ser capaz de refletir sobre elas, é necessário munir-se de uma consciência robusta e dinâmica, capaz de saber lidar com as tensões que essas mesmas ruturas vão produzindo, muito além da postura passiva ante a derrocada e a emergência. Refiro-me a uma sistematização das tensões da sociedade atual, que evidencie possibilidades de interpretação e questionamento desta nova cultura de vivência e de experiência, em ordem a uma atuação consciente e responsável ou a uma cidadania madura. Relembra-se, a este propósito, que a sistematização das tensões efetuada por Jacques Delors (1996), enquanto Presidente da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, continua a ter grande relevância e pertinência problematizadora, não obstante a distância temporal em que se situa:

- A tensão entre o global e o local; - A tensão entre tradição e modernidade;

- A tensão entre as soluções a curto e a longo prazo;

- A tensão entre a indispensável competição e o cuidado com a igualdade de oportunidades;

- A tensão entre o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de assimilação por parte do homem;

- A tensão entre o espiritual e o material (Delors, 1996).

Entre a ponderação da perceção das ruturas e a necessidade de desenvolvimento crítico e consciente, quanto às tensões da contemporaneidade, cabe a cada um questionar-se pela trajetória que procura efetuar no seio das constantes metamorfoses e pelo seu papel na defesa da afirmação humana e cidadã. Por outro lado, cabe à sociedade criar estruturas e condições que permitam gerir as diversas tensões existentes, permitindo a todos ter um papel ativo e

proativo enquanto cidadãos. Neste contexto, assume especial relevância o contributo que as áreas de Desenvolvimento Pessoal e Social e de Educação para a Cidadania poderão dar, quer em termos da formação do indivíduo, quer na garantia de igualdade de oportunidades para todos.

Sendo certo que as crises podem levar a “saídas regressivas ou progressivas” (Morin, 1998:147), elas deixam, no entanto, um espaço de abertura e de ação à mente humana reflexiva e recriadora de si mesma e da sociedade em que se insere. Tal como Savater, procura afirmar-se a “condição ativa do homem” (Savater, 2003: 26) da qual depende a nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie, e que ninguém se pode dispensar de escolher, “conjugando adequadamente conhecimento, imaginação e decisão no campo do possível” (ibidem: 32).

Como bem proferiu Mia Couto, na oração de sapiência realizada no Instituto de Ciências e Tecnologia de Moçambique, no dia 7 de março de 2005,

A razão dos nossos atuais e futuros fracassos mora também dentro de nós. Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós (…). Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos (…). É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar todos os sapatos que atrasam a nossa marcha coletiva (Couto, 2005).

Segundo este autor, não podemos entrar na contemporaneidade com o atual fardo de defeitos, vicissitudes e preconceitos. Torna-se urgente mudar de atitude, para se conquistar uma condição melhor. Mia Couto refere ainda a necessidade de “nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho (...) onde as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós” (ibidem). O mesmo autor questiona:

O que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projetos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor (Couto, 2005).

Tal mudança de atitude é descrita por este autor, em 2005, através de uma excelente metáfora, na qual propõe o descalçar (deixar à porta) sete sapatos sujos:

- Primeiro sapato: A ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas; - Segundo sapato: A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;

- Terceiro sapato: O preconceito de quem critica é um inimigo; - Quarto sapato: A ideia que mudar as palavras muda a realidade; - Quinto sapato: A vergonha de ser pobre e o culto das aparências; - Sexto Sapato: A passividade perante a injustiça;

- Sétimo sapato: A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros (ibidem).

Se, por um lado, a perspetiva de Mia Couto assume contornos de prevenção, por outro torna- se importante também desdenhar quaisquer arautos da desgraça, da dissolução antropológica e da desesperança.

Neste contexto, convoca-se ainda o pensamento de Carl Rogers, que se revela de uma acuidade atual profunda:

Quando o homem é menos do que um homem integral, quando ele se recusa a tomar consciência dos diversos aspetos da sua experiência, temos nesse caso, de facto, todas as razões para receá-lo e recear o seu comportamento, como o demonstra a atual situação do mundo. Mas quando ele é plenamente homem, quando ele é um organismo integral, quando a consciência da sua experiência, esse atributo especificamente humano, funciona plenamente, pode-se ter então confiança nele, o seu comportamento é então construtivo. Nem sempre será convencional. Será individualizado. Mas será igualmente socializado (Rogers, 1985: 105).

É precisamente aqui, no âmbito desta perspetiva, que se assume que a educação para os valores e para o desenvolvimento pessoal e social adquire forte relevância, seja ao nível da informação percetiva e crítica, seja ao nível do desenvolvimento de uma consciência verdadeiramente cidadã que, por uma atuação responsável, promova formas de realização individual e comunitárias. É minha convicção que um esforço significativo neste sentido poderá, de forma substantiva, minimizar custos relativos à crise de cidadania evidenciada em posturas de indiferença perante a vida social a que se tem vindo a assistir. Trata-se de reformar o pensamento para organizar o conhecimento, ensinar a condição humana, iniciar a viver, enfrentar a incerteza, aprender a tornar-se cidadão, o que, no campo do ensino se deverá manifestar em preocupações reflexivas, para além das informativas. Dando como certo que uma base sólida de informação se torna prenúncio de maior liberdade de escolha e de ação, também assumo que isso, por si só, não basta. Há que procurar, como refere Edgar Morin (2002), uma formação mais preocupada com cabeças bem-feitas do que com cabeças bem cheias.

Retomando a perspetiva ontológica da cidadania e relacionando-a com a educação escolar, pode afirmar-se que “os humanos não nascem indivíduos para, depois, se socializarem (como dizem que cabe à escola fazer). Bem pelo contrário, os humanos nascem sociais e a educação é a construção da sua individualidade” (Coelho-Rosa, 2000: 338).

A partir desta perspetiva, que coloca a pessoa no centro da vida social, criam-se condições favoráveis a práticas de relações interpessoais mais humanizadas e à criação de sentidos de inclusão, num apelo contra os sentidos históricos e sociais de superioridade, que António Magalhães e Stephen Stoer sintetizam através da expressão “A diferença somos nós” (Stoer & Magalhães, 2005).

Alargando esta perspetiva ontológica da cidadania à educação escolar, poder-se-á, em meu entender, suscitar redimensionamentos sobre todo o processo de ensino-aprendizagem, onde as estratégias e as práticas educativas se processem numa orientação para o desenvolvimento das competências da vida pessoal e social, como eixo central do desenvolvimento das demais competências. Este aspeto parece fulcral para a concretização desta investigação, pois subentende as práticas de cidadania na escola, mais do que uma educação para a cidadania. É a partir de práticas educativas em e na cidadania, situadas nos projetos específicos de aprendizagem e de ação, que podem emergir experiências e vivências reais de empenhamento e de envolvimento dos diferentes atores no espaço escolar, e consequentemente visíveis na vida social, perspetivando o desenvolvimento pessoal, comunitário, cultural, económico, entre outros.

O contributo da área de Desenvolvimento Pessoal e Social é crucial, numa escola cada vez mais marcada pela diversidade de manifestações identitárias. Nesse sentido, torna-se relevante mostrar o seu papel neste espaço onde se encontram e confrontam o global e o local, as extensionalidades e as intencionalidades (Castells, 1999: 27-33) em ordem à estruturação da autoidentidade.

Um dos problemas que se coloca nas vivências das pessoas na sua vida diária relacional, nos contextos sociais, laborais, familiares, escolares etc., está ligada ao (des)encadeamento de interesses e motivações. Na realidade, a aceitação de que cada ser humano é diferente, não supõe, por si só, a aceitação dessa mesma diferença (Magalhães, 1995: 114). O mesmo se passa na perceção das culturas, religiões e estilos de vida diferenc iados. As situações de dominação e de exclusão “assentes num modo de produção de poder pela diferença desigual” (Santos, 2001: 46), demonstram esta evidência.

instâncias particulares de identificação e diferenciação, entendido como um processo em que, a autoidentificação e a alter-identificação se encontram sem nunca se corresponderem absolutamente” (Cabral, 2002: 8).

Deste modo, a identidade vai-se desenvolvendo “na base de identificações e diferenciações, fundadas em interesses e motivações (…) cruzando semelhanças com diferenças no decorrer da existência social quotidiana (…) e caracterizada por uma plasticidade temporal” (ibidem:8- 9), que vai desde a “unidade social primária (família), passando pelo cruzamento de outras entidades, até à afirmação da sua própria identidade” (ibidem: 22), entendida como “processo construtivo e resultante das afetações do engajamento com outros agentes sociais” (ibidem:21).

Relacionando identidade pessoal com interesses pessoais, Pina Cabral reafirma a efemer idade e a volatilidade da assunção da unidirecionalidade identitária

Uma vez que os agentes sociais são passíveis de se alterarem consoante as condições que encontrarem - mais ainda, este potencial de automutação não pode ser concebido como unidirecional, pois todas as identificações autodefinicionais são passíveis de reversão, desvio, bifurcação ou redução (…), pelo que toda a formação identitária é, de facto, uma transformação identitária” (Cabral, 2002: 22).

Este aspeto torna-se importante para a compreensão do papel e da atuação quotidiana da educação escolar, na proposta de projeção, formação, reformulação e transformação das identidades dos seus agentes. Efetivamente, a ausência de propostas de transformação das dinâmicas educacionais da escola, passíveis da reversão e aggiornamento, atribuem-lhe uma função desajustada da sua peculiaridade.

Neste sentido, a escola adquire centralidade na resolução da aparente oposição entre as extencionalidades e as intencionalidades (Castells, 1999), ao possibilitar o entrecruzamento da vida na escola e da carga curricular com as experiências singulares da comunidade envolvente e dos intervenientes do processo educativo.

Admitindo que, atualmente, uma boa parte do desenvolvimento pessoal e social se realiza na escola pelas aprendizagens, importa, porém, não descurar toda a realidade que a envolve e que, em última análise, se manifesta nela. Dessa forma, será possível preparar melhor as novas gerações para as suas vidas como seres individuais e atores sociais responsáveis, permitindo encontrarem o seu lugar no mundo do trabalho e tornando-os cidadãos de pleno direito nas comunidades a que pertencem, nos seus países e num mundo do futuro.